segunda-feira, 22 de junho de 2009

«Palinódias, Palimpsestos» de Albano Martins

São infinitos os caminhos da palavra, mas também são inextinguíveis o poder criativo e depuração de Albano Martins. Palinódias, Palimpsestos comprova-nos que é precisamente o carácter inesgotável da palavra que nos permite agasalho e apaziguamento, porque quando tudo nos falta e nos sentimos murados, resta-nos ainda a palavra com a sua garupa.

«Não ponhas o dedo /na ferida. Deixa /a dor respirar /em segredo», diz-nos o poeta, num poema minimalista, de quem aprendeu com o silêncio a faísca certeira da luz. E é por essa torrente luminosa de paz interior que nos atinge, que Albano Martins é um dos maiores poetas vivos de Língua Portuguesa.

Como o título indica, o livro propõe a reflexão sobre a poesia enquanto arte que labora com o material mais esquivo, mas por isso mesmo desejável: a palavra que abre caminhos que se desmultiplicam (palinódias), sempre inquieta, ora escondendo-se, ora deixando-se transparecer, em proximidade com Palimpsestos: Nem sempre as palavras /dizem o que diz /o seu sentido. São /às vezes máscaras /perfeitas, outras /como sudários, rostos /esculpidos no mármore /das lágrimas. São /umas vezes /parábolas; outras, /palinódias, /Palimpsestos.

Num exercício íntimo, intenso, os poemas procuram lugares onde o poeta e a palavra se interceptem, se reconheçam e se fundam: vim /para saber /se eras tu /a quem dei /o meu nome. São caminhos de identidade que Albano percorre há mais de meio século dando-nos dele regularmente notícias e, agora, neste seu “relatório”, mais depurado do que nunca.
Com jovialidade e energia raras, enfrenta-se a rasura, para que a escrita se perpetue e com ela os ecos do silêncio, tessitura da palavra, mistério e razão da criação:

Que não. Que não sabes,
dizes. Também
a água não sabe, e nunca
diz não, e nunca
se desdiz.

Rigoroso, no conteúdo e na forma, o poeta revela o trabalho árduo que o relacionamento com a criação exige. A disposição dos versos nos poemas obedece a uma perfeição geométrica, contribuindo para o desafio da multiplicidade de leituras. E assim se atesta que o amor, todo o amor, tem de ser vivido de olhos bem abertos:

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.

Cumprir-se a missão para se cumprir o ser, sempre com persistência, apesar dos escolhos, é uma das grandes lições que o poeta nos dá e com ela robustece-nos a existência:

Lembra-te: ainda há pouco
havia à beira
do caminho
algumas pétalas. Agora
há lama e nela
afundas os sapatos. E outro
caminho não conheces. E outro
também não há.

Poro a poro, a pele das palavras

Maestro das sensações, Albano acompanha o ardil da palavra, corteja-a para lhe saber o sentido, o seu próprio sentido, o seu /sentido próprio, conhece-lhe os movimentos, os segredos, despe-a, ama-a e, cúmplices, poeta e palavra, que dizer uma é dizer outra, constroem a história da paixão:

Se a mão
desliza
sobre o papel,
se a pele
reconhece
a pele, o dedo
encontrou
o seu anel.

Na urdidura da conquista, cabe ao poeta o papel de encontrar sempre uma forma para jogar o jogo da sedução com o Tu, a palavra. Mas a sedução de Albano, com ímpar sentido de partilha, atinge, também, outro Tu: o leitor que, enredado na dádiva, passa a deter o poema moldando-o ao seu "tu" interior".

«Como a palavra, Só o dardo /conhece o alvo. Só o dardo /sabe o nome /da ferida. /O seu lugar». E o lugar das palavras de Albano, sabe-o o poeta, é aquele em que a pele das palavras, das que ele libertou, encontra outra pele que passa a ser a sua casa. Deixem-se outros poemas:

À maçã
não lhe perguntes
quem é.
Outra forma
não há
de lhe reconhecer
o sabor
***
Arrefece,
dizias. É o frio,
disse eu,
que te acaricia
a pele. Que nela se aquece. Que nela
se esquece.

***
Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio

***
Não digas
beijo, diz a boca. Não
digas rio, diz a fonte. Diz
apenas.


Palinódias e Palimpsestos, Albano Martins; Editorial Campo das Letras, Porto 2006


© Teresa Sá Couto

(to Artur)

2 comentários:

jorge disse...

Pelo prazer que sempre me proporciona a leitura deste blogue, aqui fica o prémio com que foi agraciado!

http://babeldojorge.blogspot.com/2009/06/premio-lemniscata_22.html

Teresa disse...

Eis o verdadeiro espírito da "coisa": "dou biscoito a ti, dás biscoito a mim" rsss

Obrigada, Jorge! :))))

Teresa