Respondendo a muitos pedidos, deixo a sugestão de leitura de «O Vendedor de Passados», um romance singular de José Eduardo Agualusa, editado em 2004, e exactamente o penúltimo romance do autor angolano, que editou em 2007 o «As Mulheres do Meu Pai». Aplaudido internacionalmente, este «O Vendedor de Passados» continua a ser muito procurado e é já um livro de culto da Literatura de Expressão Portuguesa. (Ver página da internet de José Eduardo Agualusa na listagem Lugares de Autores deste blogue).
Dando forma à asserção de Montaigne: "Nada parece verdadeiro que não possa parecer falso”, o romance apresenta uma urdidura de criatividade notável. A acção decorre na Luanda contemporânea, numa casa de "madeira sempre fresca", repleta de livros que falam, no seio da "floresta imensa" envolvida pela noite, como um mar.
À entrada, os espanta-espíritos agitam-se pela brisa emitindo um rumor de água o que a faz parecer " um velho navio a vapor" ou "um barco cheio de vozes cortando a custo a lama pesada de um rio". A lama, a "alta" sociedade angolana, procura neste barco " espelhos capazes de iluminar" as suas vidas opacas. A casa pertence ao albino Félix Ventura, "o vendedor de passados", o que trafica secretamente memórias, “como outros contrabandeiam cocaína”. Foi adoptado por um alfarrabista que o encontrou, menino, dentro de uma caixa com exemplares de “A Relíquia” de Eça de Queirós. O velho criou-o, crendo-lhe num desígnio superior. Tem uma namorada, Ângela Lúcia, que adora paradoxos, e de quem fala como quem se esforça por dar “substância a um milagre”.
Os seus clientes são prósperos empresários, políticos, generais, e toda uma burguesia angolana, emergente, sequiosa de distintos passados, mesmo que os tenha de comprar falsos. A sátira é feroz, apimentada pelo humor inteligente: " Temos um presidente de fantasia. Um governo de fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia" e uma cidade que "é uma feira de loucos" com patologias ainda por catalogar.
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Com Félix vive a outra personagem central: Eulálio. É uma osga-tigre, que impressiona e perturba pelo riso quase humano. É a companhia de Félix com quem mantém uma estranha telepatia. Cumpre a função de narrador participante, omnipresente e, quase sempre, omnisciente - deixando que o leitor conclua a psicologia das personagens. Dá-nos a conhecer "o albino", reproduzindo-nos os seus longos solilóquios, descreve-nos os espaços físicos e psicológicos, dá-nos conta de todas as "figuras" que entram na casa para comprar sonhos – só no último capítulo a narração é feita por Félix Ventura, que persiste na ilusão que alguém o escute, uma vez que o seu fiel ouvinte Eulálio, morre. É, também, ele que nos mostra a verdade da mentira de todo o enredo, e a sua linha ténue, pois só é possível ser revelada através dos seus 6 sonhos, em 6 capítulos.
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Cabe, ainda, a esta personagem a reflexão filosófica, que o texto nos propõe, sobre a memória, sobre a verdade e a mentira, a verosimilhança e a inverosimilhança: « A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento", todos efabulamos e "todos temos recordações falsas, embora alguns sejam totalmente falsos». Por outro lado, "a verdade é improvável" porque a mentira está por toda a parte:
"A própria natureza mente. O camaleão disfarça-se de folha para iludir a própria borboleta"; "Abomino a mentira, porque é uma inexactidão. Também a verdade costuma ser ambígua. Se fosse exacta não seria humana".
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José Buchmann é a personagem que irrompe pela casa para comprar, não um passado, mas um presente que lhe elimine o passado, o que faz subverter a natureza da ocupação, até aí "inocente" de Félix Ventura. Os acontecimentos precipitam-se, numa vertigem de surpresa, e as explicações são-nos dadas, sempre "mais à frente", em Analepses que nos deixam atónitos. Parece ser um jogo que o autor nos propõe, o Xadrez da vida, espelhado num Xadrez ficcionado, composto num Xadrez narrativo em que o Xeque-mate surge num golpe de imprevisibilidade.
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Maravilhado com a metamorfose da sua nova identidade, Buchmann passa a frequentar assiduamente a casa de Félix, até que um dia leva consigo um mendigo louco, com um cheiro nauseabundo, ex-agente do Ministério da Segurança do Estado, que o "desmascara" e o passado irrompe-lhe pelo presente: Buchmann é Pedro Gouveia, português, pai de Ângela, a namorada de Félix. Acontece o amor e um crime e um corpo escondido, sepultado debaixo de uma buganvília que grita denunciadoramente, mas que ninguém ouve.
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Com o presente enterrado, tudo pode voltar ao normal, mas não é isso que acontece. Os equívocos da memória têm inúmeros matizes e eis que aparece na casa um "Mascarado" que quer comprar um passado que o liberte de todas as máscaras; quer trocar a verdade impossível da sua vida por uma mentira simples e vulgar, não um passado glorioso, mas humilde, sem brilho, para atingir a liberdade.
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Indubitavelmente, com este "Vendedor de Passados", Agualusa mostrou-nos um fazedor de sonhos. Afinal, "Deus deu-nos os sonhos para que possamos espreitar o outro lado". Inesquecível.
Agualusa, José Eduardo ;«O Vendedor de Passados»; Ed Dom Quixote
© Teresa Sá Couto
3 comentários:
dele, lerei em breve "Estação das Chuvas" e "Um estranho em Goa"...
Beijinho grande
CSD
Desses dois, não li o «Um estranho em Goa», mas está na agenda. Logo confrontamos opiniões ;-)
Tenho aqui o «As Mulheres do Meu Pai» para ler.
Deste «O Vendedor de Passados» cativou-me a imprevisibilidade do enredo e a urdidura que, por aquela via, estabelece também com o leitor.
Outro Beijinho Grande
Teresa
Acabei de o ler...
http://numadeletra.com/36133.html
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