quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Novo livro da poeta Ana Paula Tavares


A poeta angolana Ana Paula Tavares tem novo livro: Como veias finas na terra, com a chancela, uma vez mais, da Caminho, colige, em 51 páginas, poemas curtos tecidos com palavras de brilho, sílabas claras, sinais perdidos nas dunas, areias, fontes, manhãs, noites de lua.

Com escrita ritualística, marca da autora, celebram-se vozes antigas da mulher africana no chão que se confunde com o seu próprio corpo, para desse chão atingir a universalidade do ser. «Aqui as pedras já não são pedras. O /sopro de vida que as /habita é um resto da fala antiga /de que são feitos os versos.», «Aqui a música pode ouvir-se na mão /curvada /búzio /sobe /o ouvido», lê-se nesta poesia que assim nomeia as suas próprias características.

São, pois, sons, sabores, texturas, desejos, cicios de perdas, de ganhos, de quimeras, que impulsionam as palavras, veias desta poesia. Para ler e sentir demoradamente. (texto meu sobre a poesia da autora, AQUI)

Poemas:

Quantas coisas do amor
P’ra ti guardei
Coisas simples como estar à espera
Manter o pão quente
Deixar o vinho abrir-se
Em mil sabores
Guardei-me das tentações
das sombras do desejo
das vozes
dos segredos

seria muito pedir-te
que me veles o sono
só mais uma vez.

***
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas.
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.

***
Detenho-me no cais
Ainda não é a hora
Eu sei
Há barcos de um lado
E comboios antigos de toda a parte
Ainda não é a hora
Eu sei
Detenho-me no cais
Eu sei não é ainda a hora
As pessoas deslizam
Acertam as suas vidas
Pelos relógios

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Citações e Pensamentos na busca do saber

É fácil encontrarmos nas nossas livrarias livros que coligem citações, aforismos e toda a sorte de textos breves dos mais diversos autores. Na internet, o fenómeno atinge o foro do bizarro, descredibilizando-se, com variantes quase intermináveis dum mesmo texto e muitas vezes atribuídos a autores diferentes. Todavia, e como em todas as coisas, há que distinguir o trigo do joio, o que é feito de forma séria e exigente, do que não o é. Procurando o trigo, encontramos os livros de citações e pensamentos, organizados por Paulo Neves da Silva que é, também, o timoneiro do Citador, lugar da internet que, julgo, dispensa apresentações.
.
Acabado de chegar às livrarias, o Citações e Pensamentos de Padre António Vieira junta-se a outros quatro tomos de trabalho árduo, dedicado e metódico, de anos, cuja edição se iniciou, finalmente, no ano passado, pela Casa das Letras que abraçou o projecto de Paulo Neves da Silva: os Citações e Pensamentos de Fernando Pessoa, em Abril de 2009, já na 5ª edição, Citações e Pensamentos de Friedrich Nietzsche, Agosto de 2009, Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva, Novembro de 2009, e Citações e Pensamentos de Eça de Queirós, Abril de 2010 (capas na imagem; clicar para aumentar).

.Segundo Paulo Neves da Silva, a quem agradeço a disponibilidade para me contar o percurso desta sua missão maior de serviço público - dito assim porquanto é legitimado pela pertinência e qualidade das recolhas -, que começou a dar frutos em 2005 com a publicação, também pela Casa das Letras, de O Livro das Citações, uma compilação de citações por temas - com cada citação acompanhada doutra que a contradiz -, os Sabedoria Irreverente, em 2006, O Livro das Reflexões e Pensamentos, em 2007, duas edições de autor, e o Dicionário de Citações, de 2009, editado pela Âncora.

Sobre o recentíssimo Citações e Pensamentos de Padre António Vieira, acrescente-se que compreende 650 citações e 170 textos temáticos, sendo referenciados 147 sermões, resultado da pesquisa por 30 volumes da obra do genial orador seiscentista. De fácil consulta, e com uma piscadela de olho à ludicidade da leitura, os cinco títulos disponíveis são susceptíveis de guiar o leitor menos familiarizado com os autores e incentivá-lo a procurar os textos integrais; um movimento para a procura do saber que se aconselha, ainda, para as estantes das bibliotecas das nossas escolas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Electri-cidade, Vitor Oliveira Jorge

(texto editado no sítio da Orgia Literária em 29.11.2010)

Procurar «o movimento da curva», posicionar-se no «entre», no «estar imediatamente antes / Do que vem imediatamente depois», deixar o corpo, que está no turbilhão da curva, deflagrar e tecer o próprio sudário: assim nos chega Electri-cidade, o último trabalho poético de Vítor Oliveira Jorge, que reúne, em 260 páginas, textos longos em verso e prosa poética.

Assumidamente metapoética, esta poesia busca a elasticidade do pensamento, a soberania da imagem, sendo a acção mobilizadora enunciada claramente no texto: «Criar uma espécie de tensão; partir de terra em terra; montar a tenda, repetir a cena, variar as luzes», «representar que nem um louco», «com os dentes todos pretos de tinta. Dando mordidelas textuais no ar». O resultado é a «hemorragia de versos, / Como longas escadarias, / Cada degrau pedindo outro, / Cada sala desembocando / Numa próxima, de outra cor. / Cada imagem apresentando outra imagem» (p. 97), em estilo vertiginoso, esfuziante e torrencial, patente também no desenho estrófico, com versos de tamanho muito desigual. «Por que nervo passa este movimento? / Por onde se pode começar a esquadrinhar / Esta geografia?» (p. 162). E começa-se pelo corpo, onde se ancora, fortíssima, esta poesia: o corpo antigo que é noite e quer ser iluminado, a «escaldar / de luzes e reflexos e notas e sons, que gargantas / Espalharam no ar denso ao longo dos séculos», esquadrinhado em círculos e espirais, poema após poema, muitos deles afigurando-se-nos como paráfrases de outros – e estará aqui um aspecto negativo deste compêndio, pela ideia que se nos agarra de poemas que seriam projecto ou estudo doutros, e que uma revisão e selecção cuidadas seguramente eliminariam para conferir homogeneidade à colectânea.

A explosão do corpo espraia-se por «arquitecturas» que o envolvem e que configuram o seu drama: o quarto, a cama, paredes, tectos, praças, «o enxadrezado do chão», recantos das esquinas, drama bem patente neste «A força das horas»:
[…]
as manhãs às vezes começam ao contrário, como se fossem noites atrasadas.
a cama é então um lugar de conforto e de martírio, confundidos no mesmo corpo,
na mesma penumbra.
há um desalinho no passado e no futuro.
e no presente as pernas cruzam-se sem se encontrarem.
os lençóis suam.
um peso cai das roupas estendidas,
dos dias anteriores,
da opacidade das janelas,
onde
não se roçam pombas, Nem se abrem candeeiros.
apenas fragmentos se erguem acima do colchão,
à procura […] (p. 11)
.
Passento, o corpo é enredado no frenesim da criação poética: «odor que excita as narinas», tensão de ossos, músculos, tendões, uma «máquina tremenda, uma vontade / Do corpo vivo, esticado, com luzes / Nas extremidades: / Com luzes nos pés, nas mãos, // Um corpo todo aberto, / Todo erguido no vento» (p. 137), com que se procura, afinal, uma respiração, dito assim em belíssimos versos:
.
O corpo odeia as superfícies, o corpo
Foi feito para voar. Mas o maldito peso
Prendeu-o ao solo, e o maldito tempo
Colou os dias uns aos outros. (p. 77)
.
Do corpo, em cruzamentos, entre «Trapézios», destacam-se as mãos, os pés e o centro. Das mãos saem «estradas», «escadas», «veias», «velas / que os pássaros cruzam / furando os panos», e o texto «acaba sentando-se / no fundo de si mesmo», no chão enigmático que é a folha branca do poema: «passaram-se de facto / aqui / já muitas, talvez demasiadas, coisas! // e um emaranhado de linhas / pousa no chão» (p. 85). Ostentando a sua «nudez total», está a planta do pé, o «pé terrivelmente nu sobre as superfícies». O centro é emanação, cópula, luxúria, «esperma», «vulva», a «intumescência» dos lábios, com a palavra a almejar o poder ilimitado, como uma «cerejeira coberta de frutos brilhantes e carnudos, vermelhos na sua totalidade prestes a rebentar de dentro de si mesma» (p. 133). Também assim se edificam os três elementos – cântico, culto e altar – do Grande Segredo da palavra, da «Flor» que, alucinada, «cresce sobre a coluna» para Dizer, ao mesmo tempo que foge «para dentro / de um cabelo enorme», intacta, «porque todo o seu íntimo / Está na reserva inviolável», numa conclusão a ressumar o esforço de Orfeu na sua descida ao inferno para reunir, no canto, a sua dispersão: «Subimos todos conduzidos / Pelo baixo profundo / Do Segredo»; trata-se do «Grande Desejo» – e «desejos e apetites são asas», na formulação de Novalis – de «estoirar com os balões solitários», todavia com a consciência de que se «caminha para o desconhecido», dito assim, num texto em prosa:

(...) as noites adensam-se para dentro de si mesmas mais que os dias, porque está escrito: não olharás para dentro das janelas. Podes interrogar-te sobre quem estará por detrás, por dentro, de cada janela apagada, ou acesa. Mas jamais saberás quem é. (p. 130)
Finalmente, no corpo, e por via dele, veicula-se a noção da escrita como sacrifício: «sempre com o mesmo fervor do centro» a mesma ânsia de janelas acesas em pleno dia, subir o turbilhão para se ir ter a um lugar que não se conhece, ou encontrar o objecto da demanda «como vestígio, um olhar entre dois pontos de interrogação»; é o corpo entre corpos na pista dos sacrificados; é o desejo de dispersão e aniquilamento do corpo que «assoma às varandas, para se evaporar», se diluir com a atmosfera, se volatilizar: «É o momento das janelas, do trespasse do corpo através dos espelhos. // Por que não tínhamos inventado isto antes, afinal, por que percorre-/ mos tão longo caminho sobre gumes de obsidiana, quando os pés se / podiam desmaterializar!» (p. 256).
São focagens e desfocagens de uma deambulação consciente de ter de arrostar com a solidão, e se apazigua encontrando o «Ouro» na simplicidade do seu lar, a sua toca no fundo duma rua sem saída, lugar de «paz infinita», referido num texto de carácter biográfico titulado, precisamente, «Ouro» (p.169). Na assunção da nudez absoluta, surgem textos como este:
[…]
trago-te o meu coração
Arrancado ao peito, com veemência,
Com violência
E estendo-o à tua surpresa
Como um seixo do rio, macio, suave,
Limpo. Tão limpo, tão nu.
Eis o meu Sagrado Coração
Desprevenido. (p. 70)


«As curvas são feitas para isso / Para nos colar ao momento seguinte / E como gatos espetarmos o focinho / Nessa procura obsessiva», lê-se neste Electri-cidade. «O poder de tornar as obsessões, que são experiências enérgicas do mundo exterior e interior, em formas tendentes a dispor-se numa forma fundamental, isso é o acto por excelência poético», diz Herberto Helder. Vítor Oliveira Jorge procura que a palavra – esse gesto «com que se atam sentimentos» e se desnuda a alma – seja a voz fundamental, e esculpe um canto lírico com lugar próprio na actual poesia portuguesa.


Electri-cidade, Vítor Oliveira Jorge; Edições Colibri, 2009


© Teresa Sá Couto