segunda-feira, 25 de abril de 2011

"K3", Nuno Dempster

(Texto editado no sítio da Orgia Literária, hoje, 25.04.2011)


A escrita sutura feridas, e K3, de Nuno Dempster, comprova-o. Nome do temível aquartelamento na Guiné, K3 reergue-se, mais de quarenta anos depois, num objecto artístico admirável: um poema longo que solta o grito amordaçado e denuncia a solidão larga, ultrapassando a memória do seu autor ao plasmar a nossa memória colectiva, silenciada, inquietante e incómoda da Guerra Colonial.

O poema desenvolve-se em torno de dois centros de interioridade tão fundos quanto os subterrâneos do aquartelamento homónimo: o passado, que contém o futuro do presente, e o presente, «a altura do exorcismo». Se o nervo central se constrói cronologicamente – desde a partida do Cais de Alcântara do «alto navio negro e a sua carga» de força juvenil amansada pelos «velhos facínoras», até ao regresso –, a memória, assente nos anos que Nuno Dempster esteve como mobilizado no K3, esculpe as linhas da névoa, desnuda a ideia, «pensa o sentimento, sente o pensamento», como o enunciado no poema «Credo Poético» de Unamuno.

«As recordações serão coágulos de sombra / calcados quais velhas brasas / na chaminé. A recordação será a chama / que ainda ontem picava nos olhos apagados», escreveu Pavese em versos talvez lidos no K3 por Nuno Dempster que refere no poema ter levado consigo livros do poeta italiano. Consciente de que trazer o passado para o presente é enfrentar o tecido esburacado da memória, Nuno Dempster surpreende-nos quer pelas relações estabelecidas, quer pela argumentação aduzida para as sustentar, compondo a teia temporal com fios que se ligam às naus da glória da Expansão, para mostrar como se pagaram as «dívidas antigas do passado», para cantar, agora, a «gesta lusitana, / escrita desta vez / ao contrário, mesquinha e pobre / por sob os decassílabos heróicos, / em um coral de vozes atonais.». As vozes que se ouvem são de anti-heróis encharcados do «napalm» lançado dos T-6, atravessados pelas rajadas das brownings e pelo «assobio das granadas / que rebentam depois no cérebro, / no coração, nos ossos trémulos», e que, sem terem entendido a guerra, avançam «de bruços no poema» que os agasalha, num notável processo artístico de reconfiguração do velho no novo, muitas vezes ao ponto de duvidarmos qual é qual, com o autor a levar-nos, inclusive, ao laboratório do poema:

«Por vezes regresso a este tempo verbal, / nada disto morreu. // A lancha tinha parado na memória, / e foi necessário um tempo novo / para ela prosseguir Cacheu acima, / connosco e com os mesmos fuzileiros, / todos já com cabelos brancos, // pois vi Gilmour cantar Comfortably Numb / do topo dos seus sessenta anos / […] / E eu, que não fui ungido / por nenhum deus, / tenho todos os tempos / na sua divisão inevitável, / até o futuro, / que era então esta estrofe, / escrita lentamente sobre / o desembarque em terra alheia» (p. 27).

Rastreados ao longo das 63 páginas, o desamparo de uma geração de jovens e o sentido de orfandade encontram na escrita processos cénicos de grande força dramática, formas de se interrogar a estranheza do sujeito perante a representação de um papel que não é o seu ou perante uma realidade que o envolve e esmaga: a despedida no cais de Alcântara, onde o sujeito lírico assiste à sua própria passagem como se se visse num filme, orientado por vozes de «altifalantes anacrónicos», enquanto, confuso, «sentia o sangue de a vida não ter prazo / e, em queda, a eternidade de ser jovem / com a morte adiante, / que um grito colectivo rasurara»; «eu a ver-me num barco»; «E eis-me a representar com estes negros / o papel dos antigos marinheiros»; a analogia do palco da guerra com jogos de vídeo de «assassinos digitais que matam por matar».

Contra a rasura, o poema ergue-se com os «Mais de três mil homens / metidos / em camuflados, / alguns choram e tentam esconder-se», pouco lhes valendo o ópio das quimeras das raparigas que «nuas esvoaçam / de sonho em sonho», quimeras que perderiam na escuridão inextinguível do mato, porquanto lhes ficaria gravada no ADN com promessa de «nova solidão» para o resto das suas vidas; ergue os que regressariam em «caixões selados, secretos», porque «“os filhos mortos deitam um cheiro insuportável”, / diziam os paisanos», os mortos pela pátria que voltariam a morrer nela em «funerais anónimos»; ergue-se contra o mesmo esquecimento votado ao paquete que os levou e que se finaria «de ferrugem e artrite» no Mar da Palha.

Neste projecto de escrita em que o pensado é o sentido, o poema de Nuno Dempster activa, também, um sentimento de pertença aos lugares da memória de África, num pacto secreto e veemente com o passado: «as minhas botas eram / surdina em movimento, / seguiam outras botas / por trilhos proibidos, / no odor enjoativo das acácias, // não mais o consegui tirar da pele, / senão esta manhã, / em que pensei deixá-lo no poema, // até ao ponto / de a sua evocação me recordar / a saudade imprecisa de África» (p. 28); «eu era aqueles putos negros / de olhar astuto / no k3 e agora em Colibuia.» (p. 48); «E chega-me esta gente como um peso, / não me sai da lembrança, / não me sai do poema, / acompanhou-me oculta até hoje, / um crime por julgar / que eu deveria ter testemunhado / num tribunal que sei não existir / para pobreza tão funda. // Oh, terreiro nu de Colibuia, // onde nem flor se vê, / nem erva cresce, / as cabanas em volta, / pó não sei de que vidas miseráveis, / levantado por botas militares // e pés negros que nunca vi dançar, / batendo de alegria, ritmados.» (p. 49).

K3 sucede ao poema Londres, ambos títulos incontornáveis que fazem de Nuno Dempster um dos mais notáveis escultores da memória da actual poesia portuguesa. «É da torre mais alta do meu pranto / que eu canto este meu sangue este meu povo», escreveu o poeta José Carlos Ary dos Santos; em K3, Nuno Dempster diz-nos de forma clara, inviabilizando toda a ambiguidade, qual a missão do seu poema que é, afinal, a missão da sua escrita: «não sei de ninguém / que cale esta viagem / nas cabeças dementes e na minha, / e possa devolver os pássaros / aos choupos; / e o vagaroso ritmo, às colheitas; / e a inteireza do lódão, / aos homens, // de modo a que o navio não navegue / no fluxo da memória / e as palavras não contem, / quietas sob os mortos, / no seu inviolável cofre de silêncio.» (p. 15).


K3, Nuno Dempster; &etc, 2011


* ler aqui texto sobre Londres, de Nuno Dempster


© Teresa Sá Couto

Página de Amadeu Baptista

O poeta Amadeu Baptista, uma das vozes incontornáveis da Literatura Portuguesa, já tem página na rede. Finalmente. Aqui: Amadeu Baptista. O seu lugar passa a estar também neste espaço, com link na coluna à esquerda, em Lugares de Autores.
Com vasta obra publicada, Amadeu Baptista acaba de editar Estrela de Bizâncio, edição Livro do dia, Prémio de Poesia e Ficção de Almada 2005. Na imagem, o autor com o seu novo livro e outros dois títulos: Antecedentes Criminais - Antologia Pessoal 1982-2007, de 2007, editado pelas extintas Edições Quasi; O Ano da Morte de José Saramago, &etc, 2010.

(clicar na imagem para aumentar)

Extracto de Estrela de Bizâncio:

«Que escrevo eu? A respiração do feno, os lancinantes pedidos de socorro? Escrevo o que passa, a pressa, o adiamento? o que é precário?

Um lugar é mais lugar quando dele se quer partir, o pão frutifica, o espírito cresce, salvos pela música talvez tenhamos paz.

Acredito no lugar transitório, junto ao lago, de onde possa ver as aves em trânsito quando se erguem os mortos, e meu pai. O seu compasso aberto mede, milímetro a milímetro, o diâmetro do desfiladeiro e quantifica o número dos vivos no presente. O passado não é certo quando tomado pelo futuro. Os homens viajam, apenas, com uma cobra no coração, mais ou menos profetas, mais ou menos poetas, com um corpo excelso e angular. Pela palavra fixam a pulsação, o silêncio, rebentam a pedra, procuram a origem do lençol freático onde possa ser possível unir a cepa: encharca-se a terra e aguarda-se, procura-se um lugar enxuto, todas as coisas invisíveis ficam no olhar e podem explicar-se, a carpa e o salmão são o peixe esperado, deitam-se as redes, aguarda-se de novo e fala-se, diz-se o que se tem a dizer, sem tempo, sem âncora.».  (p.32)

sábado, 9 de abril de 2011

"Rosa do Mundo"

Faz 10 anos neste mês de Abril, e é obrigatório mencioná-lo sempre que se fala de poesia: Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro, com a chancela da Assírio&Alvim, foi um projecto ambicioso da Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, e hoje é-nos indispensável.

Reúne poesia de todo o mundo, desde o ano 1000 até ao século XX, com apenas um poema por autor, textos facilmente localizáveis devido aos cinco úteis índices: de Autores; Culturas/Países/Povos; Traduções/Versões; Recolhas/Selecções e Índice Geral. 

O grandioso empreendimento resulta de um trabalho colectivo dos organizadores, tradutores, especialistas dos locais donde provêem os poemas, coroado com o esmero de quem gosta de fazer livros. O resultado é um objecto vivo onde se ouvem as vozes das civilizações, que desperta paixão, belo, de capa dura forrada a tafetá azul-escuro, protegida com sobrecapa, resguardos das 1919 páginas de conteúdo sagrado impresso em folhas de papel fino, como o das edições da Bíblia.


Cinco textos:

Nessa noite, uma casa, de repente, ergueu-se do chão e partiu flutuando.
Estava escuro e diz-se que um sibilo violento se ouviu, enquanto voava.
A casa ainda não chegara ao destino, quando as pessoas que nela moravam
lhe pediram que parasse. A casa parou.
Não havia óleo de baleia, quando pararam. Então, apanharam neve fresca,
acabada de cair e puseram-na nas lâmpadas e ela ardeu.
Tinham chegado a uma aldeia. Um homem veio até à casa e disse:
Vejam, estão a queimar neve nas lâmpadas. A neve pode arder.
Mas logo que pronunciou estas palavras, as lâmpadas apagaram-se.

Árctico, Esquimós, trad. José Alberto Oliveira, p.p. 147, 148

***
Na gota de orvalho o sol brilha:
a gota de orvalho seca.
Nos teus olhos, o teu brilho:
e eu tão vivo.

América, Aztecas; versão de Herberto Helder p.159

***
Eu não sei se estiveste ausente.
Eu deito-me contigo, e levanto-me contigo.
Nos meus sonhos tu estás junto a mim.
Se estremecem os brincos das minhas orelhas
eu sei que és tu que te moves no meu coração.

México, Nahuas, trad. José Agostinho Baptista, p.210

***
Nigrim escreveu um livro que não tem qualquer jeito;
Comprei, mesmo sabendo que a obra era mazinha.
Nigrin, desta maneira, tirou duplo proveito:
Da parvoíce dele, e bem assim da minha!

Roménia, Cincinat Pavelescu (1872-1934), trad. Doina Zugravescu, p.1183

***
Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno
ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos
semelhantes a folhas que não caem. Principia agora
a luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se
mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.

Portugal, Fernando Guimarães, p.1675