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sábado, 7 de fevereiro de 2009

Os fios da poesia de Ana Luísa Amaral

Dar a voz ao poema. Deixar que ele encontre o papel. O verso molda-se «até onde se quer». Ele pode ser «tanto montanha como campo lavrado ou montra da cidade». Mas ele é sempre corpo, braços, cabeça, coração. O verso é isso tudo num amplexo humano ao mundo: «A agonia do espaço, a tortura do tempo,/ e assim, a luta: /longa necessidade, /em sobressalto: /a alma». Isto diz-nos Ana Luísa Amaral, nome grande da actual poesia portuguesa.

Depois de «A Génese do Amor», livro de 2005 com o qual venceu o Prémio Correntes d’Escritas 2007, a autora traz-nos «Entre dois rios e outras noites», Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE) 2008, para mostrar com que fios se tece a linguagem do silêncio, qual a matéria da poesia e que halo o liberta e lhe dá forma.

Radicada na memória, a poesia de Ana Luísa Amaral tem a originalidade de rasgar esse tempo, pois a poesia vive de «desconjunções» e do avesso, precisa de uma urgência, «o olhar que fala, fala de um ponto outro»: «As linhas todas tortas outra vez, /e a meia muito em seda e muito preta, / espreitando da gaveta, /enovelada e do avesso /em verso».
«Teia de espelhos», jogo entre «dois rios e outras noites», o poema é, então, o resultado do acaso: «Que mística haverá /neste colocar versos, uns sobre os /outros, peças de jogar, pirâmides / de plástico ou madeira, /os faraós ausentes? //Convoco o sol, que é meu, /mas não aquece / E sou quase completa nessa /imperfeição».

Nas «outras noites» para muitos encontros da alma com a palavra, surgem poemas como este «à distância do céu»:

Horror é conhecer

O fundo do abismo
ou da muralha
saber até à precisão mais certa
as unhas de distância
para o céu

Horror é conhecer

O vento mais macio
a bandeira mais clara
a que anuncia
mas sem dentes nem
mãos

Horror é conhecer:
tudo o resto se cura
com a vida

Fortíssimo ao longo de todo o livro, o jogo entre a memória e a urgência do novo olhar irrompe assim no poema sobre a alma oval das pontes:
(…)
«Podem ser do que forem
as pontes de que falo,
que nada lhes retira a alma mais oval
como a do espelho
que tive há muito tempo.

III
Tive um espelho em criança
que me lembrava um rio,
me fez lembrar um rio,
as suas pontes.

Falei. Que o coração possa Sonhar –

Também, a ideia do poema como lugar dos sonhos, urdidores de histórias de utopia, acompanha este livro e está bem patente no longo e belíssimo poema «de sonhos e além: o guardador», em três andamentos, sobre um pastor estatutário que desejou um dia «além de guardar sonhos, /gravar uma paisagem», e «gravou-a num sonho, /que, um dia, tresmalhado, /o encontrou». Veja-se um extracto do final do poema:

(...)
E o pastor-estatuário,
que guardara e gravara o que de mais ninguém,
viu como o aguardava tudo, ou quase:
os mais perfeitos prados,
o absoluto e recortado amor,
em sonho: o mais tangível.
E aquilo que os seus olhos contemplavam
não tinha jeito ou modo
em tempo algum

E desejar
era maior que tudo
– o mais vivo navio
para a viagem

Entre dois rios e outras noites, Ana Luísa Amaral; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

À procura da «Génese do Amor»

Na Antiguidade Clássica, a mitologia fecundava a criação artística do Amor. Eros, o Amor, enleava Psique, a Alma, numa teia de deslumbramento e dor, de encontro e perdição, num jogo com regras para serem quebradas. Mostrava-se a génese de uma corrente que o poeta “fingidor, que finge tão completamente” tem vindo a cinzelar ao longo dos tempos.

O livro de poesia «A Génese do Amor» de Ana Luísa Amaral atinge-nos de imediato por essa reflexão: o distanciamento entre o amor ficcionado pelo poeta, que o constrói como portentosa arte de contemplação, e o outro, o amor real. Verdade e imaginação ou a fusão de ambas; até que ponto o poeta “chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente?».

Seja como for, o poeta tem de cumprir o seu Destino: a sua Alma é encantada e o Amor tem de ser cantado. Disse-nos isso, Camões: «Vencido está de amor Meu pensamento / O mais que pode ser Vencida a vida, / Sujeita a vos servir e Instituída, / Oferecendo tudo A vosso intento» e com a pena do engenho vai transformando-se «o amador na coisa amada, / Por virtude do muito imaginar».

Versejar o amor – Topografias de pele e vento

O livro abre com «Topografias em quase dicionário», numa alusão à corporização do amor na escrita: «era bom ter no verso / as formas todas, essas palavras todas». Parece que já tudo se falou sobre o amor e, por isso, quer-se «Reaprender o mundo / em prisma novo», a «aprendizagem de um olhar» que falta, encontrar palavras que saibam «de paisagens de dentro: Que cores? Quantas molduras?».
Invoca-se a inspiração, pede-se ao vento a essência que traga o som do «alaúde azul» para que fiquem em verso todas as formas e sons. Falar de amor é ter um mapa de viagem com um abismo, um precipício. Tudo o que se sabe do amor é um enigma que a pele relembra: «os teus dedos traçaram / ligeiríssima rota no meu corpo / e a curva topográfica / sem tempo / aí ficou, como sorriso, ou foz / de um rio sem nome». É suave o dedilhar da autora; é doce o som que se desprende dos versos. Talvez por essa evidente limpidez, Ana Luisa Amaral leva-nos ao mergulho no indizível que é o amor.

À procura da Génese do Amor – Camões, o seu cultor

À procura de um sentido para a Génese do Amor, a autora recupera Camões ou não fosse ele a génese de tudo, a inspiração para todos os cultores do amor: «sabendo esta vida, / a vida em verso, / maior às vezes / do que a outra vida, / como depois de nós, /muito depois, / alguém, que será muitos / falará». Assim, com o mito “a escorrer na realidade”, estes olhos antigos dão-nos notícias da arte do grande sentimento.

Explanando-se o processo da criação literária do amor, a autora cria diálogos entre figuras reais e fantasiadas pelas reais, criadores e musas: Camões, Dante, Petrarca – poeta de quem Camões herdou «artes de amar» –, Natércia, Catarina, Beatriz e Laura. Diz Natércia a Camões, incitando-o ao canto: «Meu brando amor, / fala comigo antes, /não deixes que os meus olhos / assim fiquem, / vagos, ainda antigos, / sem saudades / Seduz-me novamente, /traz-me versos / em que queira sentir / que em ti navego». Ora, é sabido que o repto das musas sempre foi aceite pelo nosso Poeta cativo do Amor: «ou fui que sonhei / esse momento / e nunca houve mais / que supor crer: / por ele me perdi / no desejo de em ti / me desejar perder?».

A musa que é apenas verso, ou o poeta e a criação do amor literário, está patente, por exemplo, no diálogo entre Natércia e Laura: «E porque não existes, / minha amiga, / tal como eu sou a dúvida do sonho, / a matéria insensata / da palavra, / a coisa já cantada, / a unir-nos somente: / o destino comum / de sermos nada, / – sendo, no verso, /feminina gente».

Gravar «em palavra / o que nem foi / de tempo», imprimir «a fogo em verso» para além do infinito, é esclarecido por Camões: «mesmo que não houvera / disto nada / e tudo isto fosse só / de dentro / Mas pouco importa isso, / minha amada, / se o pensamento / engenha o que se passa»; «A tanto enfeite / na palavra dita / acrescenta-se o lume / da palavra / A tanto enfeite / no que é só palavra / acrescenta-se a dor / do que é em verso».

O grito inteiro de Camões

Acredito, porém, que foi a junção das duas metades – amor ficcionado e amor sentido – que revelou o grito «longo e inteiro: / inesperado: / o lume» de Camões, que hoje ainda nos serve de referência. Parece ser essa também a “visão” da autora, podendo ler-se, na última meditação de Camões sobre o amor, encontro e perdição, mas razão de viver: «Nasceste-me sem musa / e sem cuidado // Foste, palavra minha, / o mantimento / que trouxe a jornada, / e alimentaste a génese de tudo / nas visões / mais amargas / Ainda que em silêncio, / diz-me agora / de como pode ser / contentamento / este fogo de luz: / cruel morada // Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo: / Eu: queimando por versos / um segundo, / tu, por um som, / ardendo eternidade».

A autora conclui que o amor talvez seja quase quasar, esse corpo celeste distante com energia assombrosa, mas com um buraco negro, o precipício no seu centro: «Talvez um intervalo cósmico / a povoar, sem querer a vida: / talvez quasar que a inundou de luz». Quase quasar, porque há ainda a pele, «E a pele também não chega: / pequeno meteoro em implosão.».

Assim se entroniza o amor; «Estátua em lume», sagrado e profano, vivido sempre em solidão, «visão na penumbra serena de algum claustro».

A Génese do Amor, Ana Luisa Amaral; Editora Campo das Letras, Porto, 2005

© Teresa Sá Couto