segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Duas novidades de Literatura infantil

Enquanto as aulas não começam, há que ocupar com qualidade o lazer das crianças. Das muitas actividades ao dispor dos pais, os livros proporcionam sempre momentos de brincadeira mágica, desenvoltura psicossocial e gáudio sempre novo, com a mais-valia de fundarem cumplicidades geracionais, devido à experiência partilhada entre crianças e adultos.

Os que têm a seu cargo crianças – e que seguem há alguns anos as minhas propostas de Literatura infantil, com comprovada atenção – sabem ao que me refiro; aos que estão mais distantes do convívio com miúdos e, por isso, menos alentos à literatura infantil, lanço o desafio: detenham-se, mesmo que de vez em quando, nestes livros e reencontram formas inauditas de afecto, aventura, surpresa e encantamento há muito perdidos.

O livro «A Minha Mãe» de Anthony Browne e «Elmer e o Passarão» de David McKee são duas novidades de Literatura infantil traduzida, editadas pela Caminho. Vocacionados para leitores iniciais, são dois projectos estéticos e narrativos bem distintos que em comum carregam o zelo e a alegria na transmissão de lições de vida.

O livro «A Minha Mãe» contém grandes Ilustrações – na dimensão, e na força pictórica – acompanhadas de frases curtas, tipo legenda. Página a página, imagens e texto vão dando forma a uma narrativa sobre a mulher e mãe da sociedade actual: o carácter multifacetado da mulher empresária e dona de casa, uma «Malabarista brilhante» do dia-a-dia que não se esquece do tempo do afecto aos filhos.

Inventivas, as ilustrações apresentam esta mãe na intimidade do lar, com um roupão florido donde sobressaem corações rubros, pois é desse espaço, alicerce da união, que surge a narração pelo filho ou filha, que a retrata com olhar atento, reconhecimento e admiração desmedidos: ela é a «cozinheira fantástica», «a mulher MAIS FORTE do mundo», «rija como um rinoceronte», a «jardineira mágica» que «consegue fazer crescer TUDO», uma «SUPERMÃE» que podia ser bailarina, astronauta ou estrela de cinema. Omnipresente, o padrão florido e festivo do roupão fortalece a dádiva maternal – o roupão transforma-se numa confortável poltrona – e fortalece jubilosamente a mensagem do amor correspondido, mesmo quando a mãe ruge «como um leão».
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«Elmer e o Passarão» é uma fábula e marca o regresso do famoso elefante dos quadrados coloridos e dos seus amigos – uma saga de sucesso que já vai em cerca de uma dezena de títulos. No movimento narrativo, uma vez mais, as aventuras e o ardil ao serviço da resolução de problemas. Há que enfrentar um passarão, que surge na comunidade dos animais disposto a ditar regras e a apoucar os pequenos pássaros, um fiel representante dos indivíduos narcísicos e arrogantes que os miúdos irão, seguramente, encontrar ao longo da vida. Elmer tem, então, a ideia da qual nasce um plano que se põe em prática: chamar um «pássaro mesmo grande a sério» para se aferir do ego despótico do passarão. O pássaro de respeitosas dimensões que surge no céu e que faz zarpar o passarão é, afinal, um pássaro desenhado com todos os passarinhos. Temos, assim, uma história diferente ao serviço de uma máxima antiga e infalível: A união faz a força.
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As ilustrações, como em toda a série do Elmer, são de cores fortes, vibrantes e alegres, repletas de animais expressivos, incentivam a imaginação das crianças que, seguramente, tecerá muitas outras narrativas… Para comprovar.
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© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

As mudanças do Acordo Ortográfico

Editado Guia sobre a nova ortografia

A Editorial Caminho acaba de lançar um utilíssimo Guia que colige as mais significativas mudanças ortográficas do português europeu, consequência da recente rectificação do Acordo Ortográfico de 1990, que continua a gerar celeuma em Portugal, mas também no Brasil, cá e lá contestado por uma grande facção de editores, escritores e outros praticantes atentos da língua. Questiona-se, sobretudo, onde está a unificação da língua, bandeira dos promotores para legitimarem as novas mudanças ortográficas, unificação que também eu, após análise atenta deste guia, não consigo vislumbrar. Todavia, abstenho-me, tanto quanto possível, de comentários – sobre a forma e a decisão política que engendrou a rectificação do Acordo – para que não estorvem as conclusões que cada um pode tirar dos exemplos que aqui selecciono.

Com participação da linguista Maria Helena Mira Mateus – que tem, entre outros títulos da especialidade, editada na Editorial Caminho a magnífica Gramática da Língua Portuguesa, de 2004 –, o livro compreende três grandes partes, de fácil consulta e inequivocamente esclarecedoras: as «Regras que mudam», «Lista alfabética das palavras cuja grafia muda» e «Formas verbais cuja grafia muda». O alfabeto passa a ter as letras k, w e y.

A abrir, nas «Regras que mudam», apresenta-se e explica-se a nova restrição do hífen em palavras com os prefixos anti- e co-, pelo que passar-se-á a escrever copiloto, antirreflexo e cooperação. Mantêm-se hifenizados os prefixos ex-, pré-, pró-, bem- e não-: ex-diretor, pré-seleção, pró-ativo, bem-vindo, não-católico.

As formas monossilábicas do verbo haver perdem o hífen, como há muito se pratica no português do Brasil: há de e não há-de. Também neste princípio de identidade brasileira que dita a regra e justifica as excepções, surgem as polémicas subtracções dos acentos tónicos, consoantes mudas, maiúsculas e a letra h em início de palavra:

–como no Brasil se escreve tônico e no resto dos países de língua oficial portuguesa se escreve tónico, as duas formas passam a ser oficiais;

– o acento que distingue palavras homógrafas é suprimido, passando a escrever-se pelo (pêlo, substantivo), indistintamente da proposição pelo (por+o); por (verbo pôr), indistintamente da proposição por; para (em vez de pára, verbo parar). Excepções para o verbo pôr, que mantém o acento para se diferenciar da preposição por e a forma dêmos, do verbo dar que se escreverá opcionalmente como dêmos ou demos. Acrescento que a polémica desta medida prende-se, sobretudo, com a confusão dos tempos no presente e no pretérito perfeito dos verbos terminados em –ar que, no português de Portugal, ao contrário do Brasil, é bem distinto: "nós andámos na cidade", distinto de "nós andamos na cidade"; "gostámos das férias", distinto de "gostamos das férias", etc., o que obriga a um estudo do contexto para se decifrar a correcta mensagem e, consequentemente, a compreensão de enunciados. Acresce que a eliminação do acento nalgumas palavras de português de Portugal faz com que a palavra passe a ter um sentido oposto para o qual ela existe: não se entenderá para-fogo (em vez de pára-fogo) um auxiliar do fogo e não o oposto? Ver entre os exemplos, no final.

– na queda das consoantes mudas, passa a escrever-se ação, atual, ótimo, adoção, assunção, etc. quando a pronúncia no Brasil executa as consoantes, as palavras passam a ter duas grafias, como por exemplo, recepção no Brasil, mas receção em Portugal, e, onde a pronúncia é variável, mantém-se essa variação, sendo aceite, por exemplo, amígdala e amídala;

– passam a escrever-se com minúsculas os nomes dos meses, estações do ano, pontos cardeais, com opcionalidade maiúscula ou minúscula para formas de tratamento, lugares, e títulos de obras: janeiro, verão, norte, professor ou Professor, avenida da Liberdade ou Avenida da Liberdade. Há a ressalva para a grafia dos nomes próprios de pessoa que pode ser mantida….

– como no Brasil se escreve úmido e em Portugal e nos restantes países de língua oficial portuguesa se escreve húmido, as formas mantêm-se; explica-se que se emprega h inicial quando é «etimologicamente válido, excepto quando a grafia sem h se encontra já inteiramente consagrada pelo uso. Para esclarecimentos adicionais, os autores deste guia remetem para o portal da Língua portuguesa que fornece toda a informação relativa à Língua: http://www.portaldalinguaportuguesa.org

Da extensa «Lista alfabética das palavras cuja grafia muda», seguem outros exemplos, com a grafia antiga e a palavra ou palavras (aceitando-se variantes e excepções – com palavras em itálico da variante brasileira) regulamentadas:

Abdómen – abdómen, abdômen
Abjecto – abjeto, abjecto
Actividade – atividade
Agro-alimentar – agroalimentar
Anti-salazarista – antissalazarista
Director – diretor
Ejectar – ejetar, ejectar
Fracturar – fraturar, fracturar
Gastronómico – gastronómico, gastronômico
Pára-lamas – para-lamas
Pára-vento – para-vento
Pára-raios – para-raios
Pára-fogo – para-fogo
Pêra – pera
Reacção – reação
Recta – reta
Rectilínio – retilínio, rectilínio
Sub-raça – subraça
Sub-reino – subreino
Tecto – teto, tecto
Tramóia – tramoia
Vêem – veem

Voca Bulá Rio - As palavras que mudam com o Acordo Ortográfico, ILTEC - Instituto de linguística Teórica e Computacional; Editorial Caminho, Lisboa, Junho 2008

© Teresa Sá Couto

sábado, 9 de agosto de 2008

Magia a Preto e Branco

Chama-se Milton, é um gato preto e branco e determina duas obras de arte arrebatadoras. «Eu Milton» e «Mas onde se Meteu o Milton?» são os dois álbuns narrativos da consagrada da autora suíça, mas de origem iraniana, Haydé Ardalan, que escreve e faz as ilustrações. Editados pelas Editions La Joie de Lire, e com Prémio no concurso «Os mais belos livros suíços» de 1997, estes portentos acabam de ser editados em Portugal pela Editorial Caminho.

São dedicados aos leitores iniciais, dos 6 aos 9 anos, mas tiraram o fôlego aos graúdos. Se o fascínio se solta logo com a observação exterior dos dois pequenos objectos rectangulares, à medida da fome das mãos pequenas, esteticamente poderosos, com capa rija cartonada e lombadas forradas a tecido negro, o interior confirma e dilata o espanto: com talento desmedido, executam-se arrebatadoras ilustrações a negro e branco que dão forma à matizada personalidade do herói felino. E comprova-se que o mundo feito com estas duas cores é um arco-íris.

Em «Eu Milton», a personagem apresenta-se na primeira pessoa a estabelecer o diálogo directo e cúmplice com os novos amigos leitores. O felino apresenta a sua fisionomia, as suas competências – os cheiros e o dote para a caça – e a sua psicologia: os esgares, as fúrias, os amuos, a curiosidade e a preguiça, entre outros. A linguagem é simples e vibrante, como se quer para os iniciados na leitura; as mensagens são curtas e acompanhadas das ilustrações enérgicas, num conjunto que concorre para os sorrisos que se desprendem a cada folhear.

Em «Mas onde é que se meteu o Milton?» surge uma narrativa na perspectiva do leitor detective. Ao longo de trinta páginas vão-se apresentando respostas à pergunta inicial, ao mesmo tempo que se acompanham os hábitos, as travessuras, os gostos e os medos do gato preto e branco. As ilustrações, novamente da cor do felino, traçam a cartografia do júbilo dos leitores, de qualquer idade, observadores e descobridores de um universo estético singular. A mesma linguagem simples soma aos substantivos, adjectivos e advérbios, expressivos advérbios de modo: simplesmente, discretamente, totalmente, confortavelmente, exactamente, visivelmente, evidentemente, entre outros. E é caso para se dizer que esta é uma colecção para ser seguida apaixonadamente, pelos miúdos, pais e educadores.
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Eu, Milton e Mas onde se meteu o Milton?, Haydé, Editorial Caminho, Lisboa, 2008
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© Teresa Sá Couto

O Reino de Gonçalo M. Tavares

Fim da tetralogia sobre a decadência do Reino humano
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Numa era em que os indivíduos são mais reconhecidos pelas capacidades técnicas do que pelos valores humanos, haverá lugar para a espiritualidade? Na engrenagem mecânica do homem que, com movimento incessante e controlado, avança na conquista do poder sobre os outros, haverá lugar para o aperfeiçoamento moral? Numa sociedade que exige a destreza técnica, qual o lugar dos inaptos? Que dor e que morte são permitidas?

Fortíssimo, no centro do seu Reino, Gonçalo M. Tavares levanta-nos todas aquelas questões em Aprender a Rezar na Era da Técnica, título que fecha a tetralogia dos seus Livros Pretos sobre os subterrâneos da alma. Corolário da dissecação humana, o romance plasma a posição de Lenz Buchmann no mundo, reputado cirurgião de mão direita exímia no bisturi e que, por isso, não precisa de ser «um homem bom». São 375 páginas de desassossego, divididas tematicamente em três grandes partes – «A Força», «Doença» e «Morte» –, cada uma com subdivisões minudentes; uma execução da narrativa em fragmentos, característica da escrita de Gonçalo M. Tavares, que faz de cada subdivisão um golpe cirúrgico na alma de quem lê. (Ver entrevista da Orgia Literária a Gonçalo M. Tavares)

Aprender a Rezar na Era da Técnica vem juntar-se aos veementes Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser e Jerusalém. Na sequência destes títulos - onde se inclui, também, o Água, Cão, Cavalo, Cabeça -, o autor executa a narrativa a partir de centros de irradiação que configuram a decadência do Reino humano, pelo que cada livro é um capítulo de uma tese maior sobre o homem: a relação entre o pensamento e o corpo, a vontade e a mão que a executa, a ideia e a cabeça que lhe dá forma, e a incapacidade do acto quando o corpo entra em falência.

O poder alimenta-se do medo
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Perturbante, o texto desperta-nos para a técnica das mãos que nos manipulam e para as ideias que exploram as nossas fragilidades. Habituado a dominar, Lenz Buchmann vê na actividade política uma nova escala da sua técnica, outra ciência que não a médica, com a vantagem do «número de pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no sentido físico, no sentido do bisturi que interfere no tecido». Fascina-o a forma reverente e subserviente com que os cidadãos cumprimentam o Presidente da câmara da cidade, «um fenómeno mágico que o levou à decisão de entrar para o Partido «e lutar por conquistar os lugares mais altos», «operar a doença de uma cidade inteira», «sentir o prazer de dar aquela comida estranha que o poder dava aos seus soldados e funcionários, aquela comida de energia quase mágica, comida que saciava os estômagos da população de um modo não material, mas igualmente eficaz».

Dar-lhes «algum pão e algum medo», numa engrenagem que se quer com movimento contínuo, defende Lenz nas suas estratégias discutidas com Kestner, o presidente do Partido: «seremos tanto mais fortes quanto mais conseguirmos infiltrar na população esta mistura: movimento rápido e temor. Não os deixar parar para que não deixem de ter medo. Não deixar de os amedrontar para que não parem»; «Havia, portanto, dois medos, e não apenas um. O primeiro medo arrancava as coisas da sua imobilidade e o segundo, o mais poderoso, mantinha as coisas em movimento».

Lenz conhecia as divisões do medo, pois preparou-se contra ele em miúdo, tendo por mestre o pai, que idolatra e cujos ensinamentos aprimora. Militar, o pai fechava os dois filhos à chave num compartimento da casa vazio e escuro por cometerem «a ilegalidade de mostrar medo»: «perder tudo: perder a razão, perder o domínio». Lenz «aprendeu a existir assim. Preparou-se, cresceu, tornou-se forte»

A técnica na vertigem do domínio

Brutal, o texto dá-nos a técnica calculista de um indivíduo de inteligência e cultura raras, mostrando-nos que a natureza racional do homem é a sua grandeza e o seu drama. Se a dialéctica mão-utensílio favorece o desenvolvimento cerebral, Lenz vê na caça e na lei do bosque as premissas de execução do Reino a que «jurou lealdade, o Reino de quem ataca e de quem sabe que há elementos que se preparam para o atacar»: «existências eram, afinal, peças de caça, num resumo extraordinariamente sintético também das relações humanas». Mais: segundo Lenz, «o lutador não abdica à vontade do outro; isso é fraqueza, e fraqueza é doença. A justiça não é um conceito humano mas numérico.».

Segundo Edgar Morin, a caça fez o hominídeo «hábil e habilitado», espevita a inteligência porque faz o homem «lutar com aquilo que há de mais hábil e de mais manhoso na natureza, o animal presa e o homem predador, pois ambos eles se dissimulam, esquivam, enganam. Leva-o ainda a encontrar e a entrar em concorrência com tudo o que há de mais perigoso: o grande carnívoro. A caça estimula as aptidões estratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a audácia, a manha, o logro, a armadilha, a emboscada.».

Com o mapa de combate estendido na «mesa do seu mundo», sua razão de existir, Lenz define a sua posição perante o adversário, procura a presa grande, enforma a ambição, impulsiona-a com o desprezo pelo outro, com «Vingança e ódio, esses afectos recônditos de combustão lenta», como disse Nietzsche, mas também a inquietar-nos com outra verdade humana, dita assim por B. Russel: «a vida perderia o seu sabor se não houvesse ninguém para odiar».

Lenz, para quem «a competência não se define com o coração», está no centro, pois «o centro tem tudo», é no centro que está «o início da explosão». Para isso, «contabiliza os pontos decisivos do próprio corpo»: «em primeiro lugar a cabeça», o «crânio, aquele conjunto de ossos que protege o instrumento de percepção do mundo» e onde abundam «capacidades e desvios surpreendentes». Porém, «o importante é o caminho central: o cérebro serve para não nos deixarmos matar. Exige habilitações máximas aos nossos inimigos. (…) O cérebro, visto de perto, e entendido profundamente, tem a forma e a função de uma arma, nada mais», defende Lenz. Foi a ordem dessa arma interna que o levou a pegar na arma de caça e disparar sobre a própria mulher e sobre um louco, desfazendo-lhes as cabeças.

Duas forças em dessincronização

Verdadeiro tratado sobre a reflexão humana, este romance de Gonçalo M. Tavares instiga-nos à meditação profunda que escasseia nesta era da vertigem técnica, alerta-nos para a falência do projecto da imortalidade e para o facto do valor do homem ser «igual ao de qualquer produto insignificante». Será que só o achamento desta verdade garante a paz interior?

O pai de Lenz ensinara aos filhos que a natureza parecia também «depender de alavancas com a forma da mão humana» e alertara-os para «o momento em que a natureza se torna guerreira», cabendo ao homem, com raciocínio técnico, dominá-la. Lenz tem a vontade, a técnica e o domínio, mas um «mecanismo de degradação», um tumor na cabeça, tira-lhe peso à mão direita que, amolecida, não consegue executar a vontade; a vontade de Lenz de matar o presidente do Partido para o substituir, depois a vontade de se suicidar, como fez o pai que deu um tiro na cabeça quando se sentiu em decadência física: a homens da sua estirpe só uma morte violenta seria permitida; só um fraco morre de forma fraca e morrer de doença é um humilhante sinal de fraqueza.

Assim, «o centro mudava de posição», deslocava-se: Lenz perde, primeiro, as capacidades físicas, depois, mentais, e até o sarcasmo que usava sobre os outros passa a ser usado sobre ele. Há, então, que se contar com dois tempos, que raramente se encontram: o tempo planeado, previsto e o outro tempo, o tempo real, em que acontecem as coisas, o «tempo visível» que não obedece a qualquer mecanismo que o homem controle. A situação de Lenz assemelhava-se à do pequeno rato cinzento, caçado por uma ratoeira, que aparece com a cabeça quase separada do corpo: «duas forças pareciam ter agido sobre ele» e o corpo não conseguiu suportar os seus efeitos simultâneos: «uma força que queria encurtar – talvez a vontade do rato (ou seria a intenção da ratoeira, encurtar?) – e outra força que queria esticar ao máximo.».

«Nos pântanos os motores não funcionam», diz o texto. E Lenz, que «pretendeu a matar os vestígios do Espírito Santo que existem no corpo de cada um», por serem sinal de fraqueza, deixa-se ir na tranquilidade da luz que o chama para o descanso derradeiro.

Aprender a Rezar na era da Técnica, Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, Lisboa 2007

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O Vendedor de Passados

Respondendo a muitos pedidos, deixo a sugestão de leitura de «O Vendedor de Passados», um romance singular de José Eduardo Agualusa, editado em 2004, e exactamente o penúltimo romance do autor angolano, que editou em 2007 o «As Mulheres do Meu Pai». Aplaudido internacionalmente, este «O Vendedor de Passados» continua a ser muito procurado e é já um livro de culto da Literatura de Expressão Portuguesa. (Ver página da internet de José Eduardo Agualusa na listagem Lugares de Autores deste blogue).

Dando forma à asserção de Montaigne: "Nada parece verdadeiro que não possa parecer falso”, o romance apresenta uma urdidura de criatividade notável. A acção decorre na Luanda contemporânea, numa casa de "madeira sempre fresca", repleta de livros que falam, no seio da "floresta imensa" envolvida pela noite, como um mar.

À entrada, os espanta-espíritos agitam-se pela brisa emitindo um rumor de água o que a faz parecer " um velho navio a vapor" ou "um barco cheio de vozes cortando a custo a lama pesada de um rio". A lama, a "alta" sociedade angolana, procura neste barco " espelhos capazes de iluminar" as suas vidas opacas. A casa pertence ao albino Félix Ventura, "o vendedor de passados", o que trafica secretamente memórias, “como outros contrabandeiam cocaína”. Foi adoptado por um alfarrabista que o encontrou, menino, dentro de uma caixa com exemplares de “A Relíquia” de Eça de Queirós. O velho criou-o, crendo-lhe num desígnio superior. Tem uma namorada, Ângela Lúcia, que adora paradoxos, e de quem fala como quem se esforça por dar “substância a um milagre”.

Os seus clientes são prósperos empresários, políticos, generais, e toda uma burguesia angolana, emergente, sequiosa de distintos passados, mesmo que os tenha de comprar falsos. A sátira é feroz, apimentada pelo humor inteligente: " Temos um presidente de fantasia. Um governo de fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia" e uma cidade que "é uma feira de loucos" com patologias ainda por catalogar.
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Com Félix vive a outra personagem central: Eulálio. É uma osga-tigre, que impressiona e perturba pelo riso quase humano. É a companhia de Félix com quem mantém uma estranha telepatia. Cumpre a função de narrador participante, omnipresente e, quase sempre, omnisciente - deixando que o leitor conclua a psicologia das personagens. Dá-nos a conhecer "o albino", reproduzindo-nos os seus longos solilóquios, descreve-nos os espaços físicos e psicológicos, dá-nos conta de todas as "figuras" que entram na casa para comprar sonhos – só no último capítulo a narração é feita por Félix Ventura, que persiste na ilusão que alguém o escute, uma vez que o seu fiel ouvinte Eulálio, morre. É, também, ele que nos mostra a verdade da mentira de todo o enredo, e a sua linha ténue, pois só é possível ser revelada através dos seus 6 sonhos, em 6 capítulos.
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Cabe, ainda, a esta personagem a reflexão filosófica, que o texto nos propõe, sobre a memória, sobre a verdade e a mentira, a verosimilhança e a inverosimilhança: « A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento", todos efabulamos e "todos temos recordações falsas, embora alguns sejam totalmente falsos». Por outro lado, "a verdade é improvável" porque a mentira está por toda a parte:
"A própria natureza mente. O camaleão disfarça-se de folha para iludir a própria borboleta"; "Abomino a mentira, porque é uma inexactidão. Também a verdade costuma ser ambígua. Se fosse exacta não seria humana".
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José Buchmann é a personagem que irrompe pela casa para comprar, não um passado, mas um presente que lhe elimine o passado, o que faz subverter a natureza da ocupação, até aí "inocente" de Félix Ventura. Os acontecimentos precipitam-se, numa vertigem de surpresa, e as explicações são-nos dadas, sempre "mais à frente", em Analepses que nos deixam atónitos. Parece ser um jogo que o autor nos propõe, o Xadrez da vida, espelhado num Xadrez ficcionado, composto num Xadrez narrativo em que o Xeque-mate surge num golpe de imprevisibilidade.
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Maravilhado com a metamorfose da sua nova identidade, Buchmann passa a frequentar assiduamente a casa de Félix, até que um dia leva consigo um mendigo louco, com um cheiro nauseabundo, ex-agente do Ministério da Segurança do Estado, que o "desmascara" e o passado irrompe-lhe pelo presente: Buchmann é Pedro Gouveia, português, pai de Ângela, a namorada de Félix. Acontece o amor e um crime e um corpo escondido, sepultado debaixo de uma buganvília que grita denunciadoramente, mas que ninguém ouve.
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Com o presente enterrado, tudo pode voltar ao normal, mas não é isso que acontece. Os equívocos da memória têm inúmeros matizes e eis que aparece na casa um "Mascarado" que quer comprar um passado que o liberte de todas as máscaras; quer trocar a verdade impossível da sua vida por uma mentira simples e vulgar, não um passado glorioso, mas humilde, sem brilho, para atingir a liberdade.
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Indubitavelmente, com este "Vendedor de Passados", Agualusa mostrou-nos um fazedor de sonhos. Afinal, "Deus deu-nos os sonhos para que possamos espreitar o outro lado". Inesquecível.

Agualusa, José Eduardo ;«O Vendedor de Passados»; Ed Dom Quixote

© Teresa Sá Couto