domingo, 19 de junho de 2011

Novo "Segredo" de Sérgio Luís de Carvalho

São segredos do tempo, desvendados no silêncio da escrita, que Sérgio Luís de Carvalho há anos que nos traz. Eis, pois, mais  uma excelente notícia em vésperas de férias: O Segredo de Barcarrota, o mais recente romance histórico do autor, está a chegar às livrarias e será apresentado no próximo dia 02 de Julho, às 18.30, na Fnac do Chiado. Uma vez mais, a apresentação será feita por Miguel Real.

Ver AQUI textos meus sobre obras de Sérgio Luís de Carvalho.

Extracto deste O Segredo de Barcarrota:

«Nessa noite, Frei Miguel de Santa Cruz viu o diabo surgir-lhe junto ao altar da igreja de Nuestra Señora do Soterraño fora das normais aparições de domingo e vestido como se fosse um frade com um hábito castanho e branco. O diabo, como sucede com as coisas do outro mundo, tem sempre vários rostos e alguns até que são familiares a quem o consegue ver. Podia surgir-lhe como rústico, meretriz, tecelão, perneta, fidalgo, viúva, alcoviteira, narigudo ou menestrel. Podia aparecer-lhe como camaleão, gato branco ou burro manco, como vagabundo ou cardeal. O que o demo não perdia nunca, fosse como fosse que surgisse, era um adocicado odor a ervinhas fumegantes, um leve linguajar ciciado, uns belos e profundos olhos negros capazes de enfeitiçar qualquer mortal e a mão direita deformada, resultado, segundo parece, de uma antiga peleja com S. Jorge durante a qual o santo o ferira com a lança.
Frei Miguel estava junto ao altar-mor limpando o pó a um livro de cantochão grosso, respeitoso e calhamaçudo...
(como convém a livro sacro)
... e apanhou um susto tão grande com essa sua visão extra-dominical que até deu um pequeno grito e quase deixou tombar o dito livro no chão da estreita ábside.
"Eu sei, velho, eu sei, não é costume veres-me em dia de semana, não é? Eu prefiro azucrinar-te o juízo depois da missinha de domingo, é bem verdade, que nessa altura ainda a igreja cheira a incensório e a turíbulo e não ao fedorento suor dos teus paroquianos. Mas que queres? Nem eu posso escolher tudo como desejo. É um abuso..."».  (p.p. 97, 98)

sábado, 18 de junho de 2011

Novos poemas de Casimiro de Brito

Titula-se Amar a Vida Inteira e é o novo livro de poemas de Casimiro de Brito a ser lançado no dia 21 de Junho, às 18h30, na Casa Fernando Pessoa. A apresentação está a cargo de João Barrento e a leitura de poemas será feita por Casimiro de Brito e pela actriz Sílvia Brito.

Segundo o autor, Amar a vida inteira é, embora autónomo, o terceiro volume do Livro das Quedas, poema no qual trabalhará até ao resto dos seus dias, e vem sendo escrito desde 11 de Maio de 1996, altura do nascimento de Diana, a sua filha mais nova.
 
São “quedas” de amor que este livro contém, o amor físico (entre homem e mulher) com a palavra ora a sugerir, ora a explicitar os rituais sexuais, as sensações e os instintos, na linha, aliás, de outros textos recentes do autor sobre o tema e que já são uma sua marca inconfundível; é, ainda, um exercício de indagação de um destino entregue à “grande arte” do “mel raro” da mulher.


(ver AQUI  textos meus sobre outras obras de Casimiro de Brito)




Dois poemas:

26

Murmuro dia e noite as leis
do amor, a ruga do desejo que no teu corpo
se converte em luz; um corpo que não se afasta
do meu olhar, estejas perto
ou longe. Em ti deitado
regresso às terras do pai
de onde nunca parti. Património
do meu canto errante, jamais
decantado. De que outras acções de guerra
me ausento bebendo e tecendo
o álcool do tempo? Murmuro
dia e noite
as leis incertas do amor. (p.39)

59

Quero apenas ser chão, dizes,
entrando para dentro dos meus olhos
como se eu fosse uma casa
desarrumada. Essa casa sou eu.
As tuas mãos amaciam as arestas
que me doíam, a tua boca, ainda luminosa,
descobre uns veios
desamparados. Subitamente
há uma fonte que começa a
brotar. Alguma coisa arde.
Um pequeno animal obscuro
sangrento e feliz
que não conhecíamos. (p.78)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Parabéns a Rui Zink

Uma festa que vale por duas: o aniversário de Rui Zink e o do seu Hotel Lusitano acabado de reeditar pela Planeta. Com vitalidade incólume, Hotel Lusitano – ou Portugal visto por dois estrangeiros – surge, tal como há 25 anos, na hora certa: comprovam-no a escrita célere, o olhar rebelde e limpo sobre quem somos e a ironia fina remexida com humor inteligente e contagiante. Imperdível.

(clicar na imagem para aumentar)

Extracto:


«Mas uma coisa pela qual não se é preso em Portugal é por urinar na rua. Toda gente urina em todo o lado, como os Índios. Congratulei-me com a descoberta, pois sabia do episódio de um amigo meu que, em Cleveland, certa noite regressava a casa aos esses e, precisando de evacuar águas numa esquina, fora apanhado pela lei em flagrante delito, levado a tribunal e por pouco não era acusado de exibicionismo na via pública e condenado, sabe-se lá, a um ano de prisão ou mais. Também os Estados Unidos são chatos, de vez em quando. Neste plano, prefiro Portugal: ao menos mija-se à vontade. E o cheiro também não parece incomodar ninguém. Uma pessoa habitua-se a tudo, veja-se o caso daqueles guerreiros espartanos que comiam fezes para endurecer o corpo e o espírito. Talvez até que a merda não sirva só de fertilizante para a terra, mas também para o corpo e o espírito. Quem sabe?
.
Estudante aplicado, tomei nota: os portugueses são um povo de jardineiros. Fazem chichi contra as paredes para Lisboa germinar. ».


(p.p. 79, 80, da edição de há 25 anos)