segunda-feira, 27 de abril de 2009

«Nos Joelhos do Silêncio»

Nos joelhos do silêncio nasce a palavra iluminada. Dessa textura de solidão, de desamparo, irrompe, soberana, a esperança no futuro. Heliodoro Baptista é um arquitecto da luz que brota da grande mãe humilhada: África. Porque «os continentes são da mesma raça» e «os homens do mesmo barro», a aldeia e a estrada deste poeta moçambicano são também o nosso sítio e um caminho nosso. Tanto mais que a palavra que caminha é de expressão portuguesa.

Mia Couto, que prefacia este livro, escreve que «Nenhum silêncio cala a poesia. A única verdadeira prisão de um poeta é não haver luz. Essa luz que constrói a vontade de futuro. E essa luz está dentro dos poetas.». Heliodoro diz que «Depurar a escrita, a casca das palavras, é ensinar ao leão que temos no peito, a comer, sempre primeiro, o fígado, mas especialmente o coração.». Digo eu que só a poesia entende o coração. E esse entendimento tem-no este livro.

A voragem da palavra quando há fome de viver

Ajoelhado no chão africano, a prece do poeta tem a raiva da insubmissão e o arrebatamento apaixonado pela terra: «Moçambique expatriou-se. É possível / encontrá-lo num mapa por fazer. / Ou, numa esquina do mundo, a tocar / viola com os dedos dos pé», porque as mãos lhe foram usurpadas. Sempre país dos outros, território a quem «enforcaram o céu e o sol», é uma terra, «um lugar de abandono, / Naufragado: sem rios nem mares», onde não há nem mortos nem vivos, onde se construiu «o limbo da estupidez».

Porém, Heliodoro é o poeta que sabe que o poema é uma arma carregada de futuro. E, «sonhador subversivo de verve em riste», «Coaxa o poeta em frenesim demencial. / Ele, ontem lagartixa, é já desenvoltura.». Entende-se porque escolheu algumas palavras de Gabriel Celaya, para introdução da sua própria poesia. Diz este autor que a poesia «Son gritos en el cielo, y en la tierra son actos.(...) canto respirando». É pela palavra que o poeta moçambicano respira. É com ela que se liga à vida. É com ela que reaprende o amor: «Queremos confiar no amor (melhor, na paixão!) / sem nada perguntar: apenas saber, pedir e receber / um pouco do que damos. Que não nos roubaram!». E assim, num diálogo de sabedoria, o poeta abarca o mundo para revelar a esperança: «Nos meus escuros acrílicos impera o pincel; / só a alegre voz ressumbra: Bebe o mel do fel!».

Os titãs do poder: há os políticos e há os poetas

Perseguido e aprisionado na sua terra, nela persistiu, teimosamente, sem nunca a abandonar. Mas a poesia faz-se de pão ázimo, e em Heliodoro isto é manifesto: «Recordo o tanto mal que me fizeram/ como se bebesse um misterioso vinho. / Até à última gota da garrafa.». Contra os poderosos, tem o fel que não guarda, pois tem também a palavra que o depura: «Batem à porta; uma pancada com odor perverso; /pombos em voo, se pintam de êxtase do poente. / Já não há nada debaixo do sol, excepto este verso, / fugaz calorescência, impressão digital de mim».

Mia Couto diz que Heliodoro dá visibilidade aos recantos sombrios da alma moçambicana. Com efeito, ele parece estar «onde o coração do povo chora / águas das lágrimas da chuva», numa cumplicidade com o povo que «está nas mãos / dos que fazem orgias com as barrigas da fome». E esclarece que «Se os governos não decapitam o povo / é porque, sem ele, nem se designavam: / até os abutres bateriam em retirada.». O poeta conhece «homens e mulheres que, na água / afugentam até os maiores crocodilos.». Sabe que «Hoje, os cães passam e a caravana ladra.». Por isso, «solta a profecia da indulgência e do amor. / Não devemos ter medo nem da pobreza; jamais / da prisão e do exílio.».

Perante os opressores, o «Desfecho» só pode ser assim: «Como em outros poetas, também em mim, anuí: / não há a probabilidade de me render. / E se o horizonte oscila, em seu remexer, / me cago no tédio, para todos e para ti!».

Nos Joelhos do Silêncio, Heliodoro Baptista, Editorial Caminho, Lisboa, Junho de 2005

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Poesia que negou a mordaça do silêncio

Toda a criação é incompatível com a censura. Durante os anos de mutismo imposto pela ideologia politica do Estado Novo, ou de criação artística controlada, a arte literária livre encontrou a voz do NÃO com que se exprimiu. Recuperamos aqui rasgos de alma amotinada, estampidos que desassossegaram o silêncio cortado pela bala das palavras. São palavras com o peso da consciência e que erguiam «a fogo e a ferro /um palácio de força e resistência». Uma vez mais, o fulgor sanguíneo e a rebeldia da poesia iluminam-nos e ensinam-nos a combater a inoperância e a resignação.

Se aqui faço uma homenagem à luta por Abril, invoco também Soeiro Pereira Gomes, o autor do pungente romance "Esteiros", dedicado aos "filhos dos homens que nunca foram meninos», cujo centenário de nascimento se celebrou no passado dia 14 de Abril.

O sentimento amotinado gera o ódio

Sabemos que calando-se um sentimento de injustiça gera-se o ódio. Os vergões e as cicatrizes que os poetas sofriam levavam-nos à configuração da ira, a levantarem as vozes, a assumirem-se como arautos das coisas que doíam.

Filhos de um deus selvagem, os poetas semeavam no terreno proibido a sua verdade, «Esta força selvagem e secreta, /Esta semente agreste que trazemos /E gera heróis e homens e poetas.». José Carlos Ary dos Santos vai ao abismo da raiva dizendo que «Chocalhamos a raiva quando calha /quando não calha calha-nos a vez / e falha-nos a voz e somos a escumalha /dum país vasilhado e pretoguês. / Ai dom Sebastião / tão tão tão / tão encoberto que pouca gente sabe /que o nevoeiro encobre /um português suave.». O poeta traça a sua missão onde «Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado não!».

Em "Turismo" por este seu/nosso país, diz-nos, ainda, gritando a denuncia: «Visitar este país /até à última gota: /O porco e o Porto a bola e a bolota /o que é como quem diz /itinerar a derrota. /Tudo tem lugar no mapa /Paris Washington Moscovo /Em Itália vê-se o papa /em Lisboa vê-se o povo. // Aqui ao pé do vento forjamos o lamento /dum país que se vende a peso nos prospectos /tanto de sol ardente tanto de cal fervente /e uma nódoa de céu nos xailes pretos. /Aqui ao pé do fel gritamos o segredo /do que parece fácil neste país de luz: /é apenas fome. /É apenas medo. /É apenas sangue. /É apenas pus.».

O poeta José Gomes Ferreira regista com a palavra o seu posicionamento ideológico, liberta a sua ampola de sangue, arremessa o seu grito de ordem, e ri, ri muito, para irritar os tiranos: «Sim, o meu filho está preso, /os nossos filhos, os nossos sonhos estão presos por dentro dos gritos. /Fechados à chave para se construir melhor o silêncio/ – e eu rio. //Rio /e escrevo nas paredes a giz: /FAZ DA TUA DOR UMA ARMA /para sofrer menos. / Covarde.».

O eco e o triunfo da Palavra proibida

Mesmo que algumas palavras sejam proibidas, elas são sempre vivas. Mesmo que mudas e anuladas, há palavras que, vivas, ficam hibernadas, protegidas de uma qualquer cilada, mas que ecoam no seio e por meio de outras palavras. Ary dos Santos dá-nos esse jogo ciciado, ou o que não se diz dizendo: «o coma das palavras não nos deixa /gritar que temos fome. /Todas as coisas morrem uma a uma /à míngua de outro nome.». E assim «a palavra será faca /o sentido será gume /a imagem será chama /mas a matéria é o lume. /Lume dos nervos riscados /pelo fósforo do medo /lume dos dentes serrados /pela goma dum segredo.».

José Gomes Ferreira, com a energia que lhe conhecemos, incentiva o grito, a raiva, o protesto contra um mundo forrado de muros: «Ó camponês, /não me dês /os bons dias. /Nem tires o chapéu /à morte dos dias. / Berra! /Não queiras o céu /antes da terra». É objectivo da palavra que recusa amarras, penetrar, para libertar, outras almas humilhadas pelo enxovalho da prisão. É este o caminho trilhado por Ary dos Santos: «Abre os olhos e vê. Sê vigilante / a reacção não passará diante / do teu punho fechado contra o medo /Levanta-te meu povo. Não é tarde. /Agora é que o mar canta é que o sol arde /pois quando o povo acorda é sempre cedo.». Poeta de palavras resolutas, dele recebemos a seiva que nos impele ao combate. É, afinal, o combate, o que nos espera a vida inteira:

«Lutar é tudo quanto sou capaz. /Não me pari para viver em paz. /Tudo o que eu sou é menos do que eu quero.», e ainda, «Isto vai meus amigos isto vai /um passo atrás são sempre dois em frente /e um povo verdadeiro não se trai /não quer gente mais gente que outra gente. //Depois da tempestade há a bonança /que é verde como a cor que tem a esperança /quando a água de Abril sobre nós cai. /O que é preciso é termos confiança /se fizermos de Maio a nossa lança /isto vai meus amigos isto vai.».


Bibliografia consultada: José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Ed. Avante, Lx, Julho 2002; José Gomes Ferreira, Poesias II e IV, Dom Quixote

outro texto meu sobre Poesia da Resistência, AQUI

© Teresa Sá Couto

sábado, 18 de abril de 2009

Os 167 anos de Antero

(texto editado no site Orgia Literária a 17 de Abril de 2009)
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Antero de Quental nasceu a 18 de Abril de 1842, na cidade de Ponta Delgada, S. Miguel (Açores) e foi ali que pôs termo à sua vida inquieta, em 1891, provavelmente em busca do sossego e da unção, que enunciou assim: «Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou afinal meu coração.// Dorme o teu sono, coração liberto, / Dorme na mão de Deus eternamente!».

Figura emblemática da Geração de 70, promotor da Nova Ideia de um Portugal evoluído, Antero, que sonhava ser «um cavaleiro andante», que escreveu o «Causa da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos três Séculos», pronunciado no Casino Lisbonense em 1871, registava nas «Odes Modernas»: «O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade: /Justiça, é esse o tema imenso do sermão: /A missa nova, essa é a missa da Liberdade: E órgão acompanhar … a voz da Revolução!».

A par do postulado social e ideias revolucionárias, Antero cinzelou uma poética de espiritualidade e assombro que marcaria as gerações vindouras, não de forma quieta, mas inquieta e magistralmente pungente. Que força anteriana é esta que nos sacode e sobressalta a cada verso, inesgotável em cada leitura, é o mistério e a razão do assombro. Lermo-lo é não só homenageá-lo, mas também permitirmo-nos o sopro divino de alguém que ousou meter-se dentro de si, e a sós consigo, para sentir muito para além de nós.

Definir Antero de Quental é intenção irrealizável. Diz sobre essa inexequibilidade, Oliveira Martins: «Eu não conheço fisionomia mais difícil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. (…) Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade. É destas crises que nasceram os seus versos, porque Antero de Quental não faz versos à maneira dos literatos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como soluços e agonias. Mas, apesar disso, é requintado e exigente como um artista: as suas lágrimas hão-de ter o encontro de pérolas, os seus gemidos hão-de ser musicais. (…) A sua poesia é escultural e hierática, e por isso fantástica.».

Miguel de Unamuno diz que «Antero de Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito, pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão enquanto viver a memória dos homens, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da Esfinge».Também José Calvet de Magalhães fala da vida angustiada do poeta. Antero «é um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa». Esta síntese entre a razão e a emoção irrompe singularmente na arte literária anteriana. Enquanto poeta, é místico, enquanto crítico, um filósofo: «O sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligência, combatem-se às vezes dilacerando-se.».

A síntese entre a razão e a emoção

Devido ao seu temperamento, Antero não se deixou levar pelas correntes optimistas e explorou, com sentido de vivência inigualável, o cerne da fragilidade humana, a decepção e o pessimismo, dando lugar a um Eu marcadamente nocturno e niilista: «Aqueles que eu amei, não sei que vento / Os dispersou no mundo, que os não vejo.../ Estendo os braços e nas trevas beijo / Visões que à noite evoca o sentimento.../ Outros me causam mais cruel tormento / Que a saudade dos mortos...que eu invejo.../Passam por mim...mas como que têm pejo / Da minha soledade e abatimento! /Daquela primavera venturosa / Não resta uma flor só, uma só rosa.../ Tudo o vento varreu, queimou o gelo!».

Desde o início, revela-se a caminhada de busca da felicidade, de «Um palácio da Ventura» que concretize um sonho. O caminhar é, porém, inglório e só traz adversidade e desilusão: «Sonho que sou um cavaleiro andante. /Por desertos, por sóis, por noite escura, /Paladino do amor, busco anelante /O palácio encantado da Ventura! //Com grandes golpes bato à porta e brado: /Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…/Abri-vos, portas d´ouro, ante meus ais! / Abrem-se as portas d´ouro, com fragor…/Mas dentro encontro só, cheio de dor,/ Silêncio e escuridão – e nada mais!».

A relação conturbada do Eu com o mundo irrompe, não raras vezes, em fúrias de desespero reveladoras da sua tragédia mental: «Se nada há que aqueça esta frieza / Se estou cheio de fel e de tristeza, / É de crer que só eu seja o culpado.».Amadurecida a vida, a relação com Deus surge como uma procura racional de um ideal transcendente. O descanso merecido, o apaziguamento, que Antero nos mostra assim: «Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram /Ninho e filhos e tudo, sem piedade…/Que a leve o ar sem fim da soledade /Onde as asas partidas a levaram…/ Deixá-la ir, a vela, que arrojaram /Os tufões pelo mar, na escuridade, /Quando a noite surgiu da imensidade, /Quando os ventos do Sul se levantaram…/Deixá-la ir, a alma lastimosa, /Que perdeu fé e paz e confiança, /A morte queda, à morte silenciosa…/Deixá-la ir, a nota desprendida /Dum canto extremo…e a última esperança…/E a vida…e o amor…deixá-la ir, a vida!».


© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Imperecível «Sedução» de José Marmelo e Silva

São raras as narrativas que resistem à poalha do tempo. Esculpida há 50 anos com fogo sobre a pedra, reeditada em 2007 pela Campo das Letras, Sedução de José Marmelo e Silva (1911-1991), comprova o seu imperecível fulgor. O seu autor, incompreendido no seu tempo, viria a ser condecorado em 1988 pelo presidente da República com o grau de Comendador da Ordem de Mérito. E é o mérito literário que nos avassala na leitura de cada página da sua escrita.

Sedução é publicada em 1937, seguindo-se Depoimento (1939), O Sonho e a Aventura (1943), Adolescente (1948), Adolescente Agrilhoado, 1.ª edição acrescentada (1958). Em 1968 publica O Ser e o Ter seguido de Anquilose, e em 1983 Desnudez Uivante. Além deste Sedução, acabou de chegar às livrarias Adolescente Agrilhoado – do qual darei, aqui, conta – também pela Campo das Letras que tem, ainda, editada a Obra Completa de José Marmelo e Silva, com o título Não aceitei a Ortodoxia. Um compêndio de fascínio, garanto!

Considerada «Obra-prima», por Baptista Bastos, narração da «força do desejo», por Urbano Tavares Rodrigues, um «livro de combate, um livro indisciplinador», segundo José Saramago, «Sedução» define, descarnando, a obsessão sexual, alcançando, arrojada e ironicamente, a repressão de uma sociedade machista e hipocritamente asséptica. Deixarmo-nos seduzir pela obra de José Marmelo e Silva começando pelo seu título de estreia é permitirmo-nos o espanto e a felicidade desmedida de uma leitura excepcional.

«Há no amor ignorâncias subterrâneas. Há muito que aprender no livro do Eros», lê-se neste Sedução, onde irrompe, sarcasticamente e com ironia inaudita, a questão ainda actual, que espanta ainda mais pela época em que foi escrita: a dos homens presos na sexualidade machista e as mulheres presas na repressão sexual de uma sociedade comandada pelos homens.

Eduardo, o magistral narrador da história, e Noémia são dois irmãos, ela mais velha dez anos, filhos de um homem com quem a mãe casara contra vontade e que morreu louco depois de delapidar o património da família. Noémia ficara solteira, consequência de ter sido abandonada pelo noivo, a mãe vivia numa «apatia quase santa, quase seráfica» e cabia a Noémia – que deixara a aldeia junto à Serra para exercer advocacia em Coimbra, e que, amiúde os visitava – os comandos económicos da família. Eduardo, o homem da casa, nunca aceitara este domínio feminino da irmã – tendo-o como «o jugo de Noémia» – que apresenta como sendo «mirrada, abstinente, horrivelmente feia», com «tíbias tortas, descarnadas» e «mesmo algum bigode…uma carcaça a andar».

Definindo-se como «um inadaptado, um malandrão», Eduardo, que tem pretensões de escrever um «livro irónico», que já tinha o título «Almas sem vida, vidas sem Alma», ocupa-se «numa lojazinha de fazendas» na aldeia e com o orgulho dos seus vinte e quatro anos refinados no machismo, crente da sua infalibilidade com as mulheres, como o próprio declara: «prezo-me duma problemática amorosa calculada, e é o que importa (…) além disso, Eduardo é moreno e musculado (estou a vê-lo separado de mim mesmo); palpita uma sensualidade poderosa e máscula em sua boca e em seus olhos. E não há horas do diabo em que estas singelas coisas complicam tanto as mulheres? Seria irrisório! Estar uma rapariga em minha casa e não a fazer gostar de mim!».

Na sua «seriedade de homem», Eduardo tem o seu «mundo de raparigas meigas e bonitas»: «como Laide, Berta, Helena, Julinha, Leonor ou outras, – que eu sempre amei e continuo a amar de harmonia com seus dotes, visto que sou justo. A todas distribuo a minha ternura, a todas acaricio, se mo permitem, – de todas gosto humanamente. Hipócrita seria eu, se afirmasse que me sinto menos homem diante de qualquer uma, exclusive.». A Marta, que se queixa de serem as mulheres vítimas da falta de escrúpulos dos homens – jovem que acompanha Noémia numas férias à aldeia –, Eduardo responde: «Você não admite que o aperfeiçoamento humano precise… como direi? de quem se sacrifique?».

Mas o império de Eduardo ruiria durante aquela visita da irmã. Esperava-o um «ardiloso ataque de bruxaria» perpetrado por Noémia que criava uma cumplicidade com as mulheres de Eduardo, contra o despotismo masculino, e, num ápice, todas elas passam a renegá-lo.

Entre o desejo e o escrúpulo

«Haveria um segredo no sexo de Noémia» para atrair assim as outras? Que Sedução seria a de Noémia que lhe roubava o reino? Ferido no seu mais fundo orgulho, Eduardo mostra a torção do Eu, num duelo interior entre o desejo, a tentação e o escrúpulo, entre a raiva violenta contra a irmã – «Megera! Coruja!» – e a vontade de lhe pedir desculpa pelos seus julgamentos: «Eu era o tirano, o egoísta, e julguei-a a ela por mim»; «pela primeira vez se apoderou de mim o terror, o medo poderoso; medo de mim, medo do homem mau atento à vingança, que todos trazemos connosco, corporizado ou em embrião, e se enrodilha nos subterrâneos do ser.».

Confrontado por outro homem sobre a homossexualidade da irmã, que lhe diz que ela em Coimbra tem «as que quer» e que ainda lhe há-de roubar as que ele tem por mania de se gabar, sente repulsa pelo homem e ao mesmo tempo por si: «amarfanhado, mesquinho, despersonificado, encarnava aquela figura viscosa que pela manhã eu tinha surpreendido em mim, num desvão tenebroso».

Todavia, estropiado no seu machismo, com o sexo senhor dele, «carne mordida das mil fúrias açuladas», quis vingar a tirania de Noémia. Enlouquecido, revista o quarto da irmã à procura de explicações para o seu inexplicável desvario, que se soma à visão de um quadro lésbico, com a irmã rodeada pelas carícias das outras mulheres, as que foram suas, todas numa entrega fiel. Um quadro real ou fruto do seu delírio?

Comummente considerado o «libertador do amor», José Marmelo e Silva derruba, em apenas 158 páginas deste Sedução, todas as grades do desejo e dos preconceitos sexuais. Escrita no tempo das trevas moralistas do salazarismo, a obra continua a atingir mentalidades e condutas munidas com as respectivas máscaras da hipocrisia.

Sedução, José Marmelo e Silva, 7ª edição; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

Novo trabalho de Ondjaki e Rachel Caiano

Está nas livrarias, já na 2ª edição, o livro infantil O Leão e o Coelho Saltitão, com texto de Ondjaki e ilustrações de Rachel Caiano. O livro foi seleccionado para a exposição The White Ravens 2009, evento organizado anualmente pela Biblioteca Internacional da Juventude – Internationale Jugendbibliothek – (IJB), no âmbito da Feira do Livro Infantil de Bolonha. Este é o segundo ano consecutivo em que Rachel Caiano vê o seu trabalho reconhecido internacionalmente: o livro Os Dois Lados, com texto de Gonçalo M. Tavares, também editado pela Caminho, foi seleccionado para a exposição White Ravens 2008.

A exposição dos «corvos brancos» — 250 livros infantis e juvenis em mais 30 línguas e provenientes de cerca de 50 países, seleccionados entre os milhares de livros que a biblioteca recebeu durante o ano passado — será apresentada no stand da IJB na Feira de Bolonha. É acompanhada por um catálogo em língua inglesa que contém informações bibliográficas e resenhas curtas dos títulos seleccionados. Uma magistral divulgação, pois, para este belo livro infantil que, de Portugal, cresce para o mundo.

O Leão e o Coelho Saltitão é uma recriação de Ondjaki do relato de David Yava Mwau, “Ciximo Ca Ndumd” – Estória do Coelho e do Leão, publicada no livro Viximo, contos da oratura Luvale de José Samuila Cacueji, União de Escritores Angolanos, 1987. Um enredo com linguagem simples e clara, humor e peripécias explica a razão porque o coelho e o leão não são grandes amigos «na Floresta Grande e mesmo nas outras florestas». Uma fábula entre o símbolo do poder, o Rei da Selva que, acomodado na sua soberania, não desenvolve argúcia necessária para evitar ser enganado, e o pequeno coelho que colmata a sua fragilidade com a astúcia e o ardil que o mantêm vivo. A Angola de Ondjaki está lá, na nota da fome que grassa na Grande Floresta, mas também no convívio e carácter festeiro dos habitantes da Grande Floresta. Se o ponto de partida é a crueza da morte, a lição desenrola-se numa apologia da vida com as estratégias divertidas do coelho.

As ilustrações, a duas páginas, irrompem em grandes manchas de cor sobre as quais é feito a negro o risco dos contornos das figuras. Uma técnica simples que confere à narrativa pictórica dinamismo, expressividade e movimentação ímpares. São, ainda, incluídos, em pequenos apontamentos, alguns recortes de fotografias de troncos e frutos. O recurso a diversos materiais em complemento das pinturas tem sido, nos últimos anos, uma tendência de muitos dos jovens ilustradores. No presente trabalho de Rachel Caiano, aqueles registos destacam-se pela brevidade e subtileza.

notas:

A Biblioteca Internacional da Juventude (Internationale Jugendbibliothek — www.ijb.de ), localizada na cidade de Munique, foi fundada em 1949 pela jornalista judia alemã Jella Lepman. Com um riquíssimo acervo de livros provenientes do mundo inteiro, é hoje um importante centro de investigação na área da literatura infanto-juvenil.

Página de Rachel Caiano: http://rachelcaiano.blogspot.com/

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 14 de abril de 2009

A lógica do esplendor - O Senhor Valéry de Gonçalo M. Tavares



É franzino, de baixa estatura, solitário, distraído, desconcertante, perfeccionista, inapto na sua lógica de Ser, mas metódico na aprendizagem. Eis o Senhor Valéry, o primeiro do Bairro dos Senhores criado por Gonçalo M. Tavares em 2002, com duas das suas 25 micro histórias, porém, desta vez, com nova roupagem ilustrativa de Rachel Caiano, e fica o leitor esmagado com a beleza desta reaparição.

«Os Amigos» e «Os dois Lados» (este seleccionado em 2008 pela Internationale Jugendbibliothek para a Feira do Livro Infantil de Bolonha) são os títulos dos dois livros que nos mostram que a inteligência e a criatividade humanas podem ser avassaladoras. O quotidiano do Senhor Valéry é preenchido com exercícios que procuram solucionar problemas existenciais, comezinhos, alguns, e até ridículos, mas todos com forte compromisso filosófico. «Todas as ideias se ligam por corredores que existem», escreveu Gonçalo M. Tavares. E todas as descobertas são possíveis nestes livros inesgotáveis vocacionados para crianças inteligentes e adultos inteligentes.

Em «Os Amigos», o Senhor Valéry tenta resolver o problema da sua baixa estatura que o impede de chegar às outras pessoas. Na busca de um raciocínio válido que lhe pudesse dar o conhecimento para arranjar amigos, o Senhor Valéry apresenta-nos soluções burlescas, mas espantosamente puras na sua essência.

Era pequenino, «mas dava muitos saltos» e, por isso, explicava que era «igual às pessoas altas só que por menos tempo». Porém, «se as pessoas altas saltassem, ele nunca as alcançaria na vertical», e, persistente na sua aprendizagem, abandona o exercício e enceta novas experimentações: primeiro um banco, depois um banco com rodas e pensa até «congelar um salto». Porém, «nenhuma destas ideias era confortável ou possível, e por isso o Senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça». Assim, «Concentrando-se, o Senhor Valéry conseguia mesmo ver a imagem do topo do cabelo de pessoas que eram bem mais altas que ele», mas com a visão de cima «tinha dificuldade em se lembrar da cara das pessoas com quem se cruzava» e, «com a altura, o Senhor Valéry perdeu amigos.».

Rachel Caiano, que já ilustrou os outros livros do Bairro dos Senhores, irrompe agora com esplendor (exemplos do interior dos dois livros na montagem), toma conta das páginas onde dançam as palavras mágicas e certeiras de Gonçalo M. Tavares.

Em «Os Dois Lados», o Senhor Valéry tem outro problema para resolver: como estar sempre do lado certo do mundo? O dilema do Senhor Valéry pedia um exercício mental com regras, e os passos da procura desse saber mostram-nos o absurdo de um sistema mental, tocando-nos na consciência dos absurdos que, nalguma altura, erigimos. Rachel Caiano pinta soberanamente nas páginas o labirinto daquela lógica, dá-nos argumentos que nos incitam a procurar o nosso próprio conhecimento.

Desenvolvendo a Teoria de que o mundo tem dois lados, «o direito e o esquerdo», o Senhor Valéry põe em prática uma disciplinada e rigorosa metodologia: divide a sua casa em duas partes e «só tocava nas coisas que estavam à sua esquerda com a mão esquerda» e «nas coisas que estavam à sua direita com a mão direita» e, para nunca se enganar, no rigor de utilizar sempre «a mão certa», mesmo quando estivesse de costas, pintou «todo o lado esquerdo da casa, incluindo os seus objectos, de azul» e o outro lado de vermelho. Porém, para nunca se enganar, o Senhor Valéry tinha um outro grande truque: a mão esquerda pintada de azul e a mão direita de vermelho.

Os Dois Lados e Os Amigos, Gonçalo M. Tavares (texto), Rachel Caiano (ilustrações); Editorial Caminho, Lisboa, 2007

© Teresa Sá Couto

domingo, 12 de abril de 2009

Como espanar tristezas

(Texto editado no site Orgia Literária em 10 de Abril de 2009)
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Depois do livro de contos «Os da Minha Rua» e do romance «AvóDezanove e o Segredo do Soviético», Ondjaki regressa com as enormes «manchas de infância», um «tipo de varicela» agora no corpo da poesia. O autor angolano, que se confessa «enamorado pela palavra antigamente», cria em Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristezas desobjectos para reabilitar aquele deslugar, para reaprender o lugar da alma, e não há tristeza nem solidão que resista ao espanador destas palavras musicais, tácteis, odoríficas, coloridas, afectuosas e confessionais que cantam madrugadas, praticam voolêncios e sonham borboletas.

Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristezas colige poemas narrativos e prosa poética com conversas que trazem «cócegas ao cosmos». São 86 páginas com uma magnífica síntese da navegação literária de Ondjaki pelo rio da infância, com elos ao anterior livro de poesia «Há Prendisajens com o Xão (O segredo húmido da lesma & outras descoisas)» de 2002, e consubstancia o diálogo com outras obras do autor, como o inultrapassável livro infantil «Ynari – a menina das cinco tranças» de 2004 ou a novela «O Assobiador» de 2002, ambos chamados a estas novíssimas páginas.

Ondjaki, que confessa apreciar «muito a redondez do mundo», lança um longo abraço a artífices da lusofonia, fazendo vagabundear nos poemas Carlos Drummond de Andrade, Luandino Vieira, Mia Couto, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Adélia Prado, entre outros. É a árvore dos afectos com raízes em Luanda – essa «palavra deitada / nas cicatrizes / de uma guerreira bela» – e ramos estendidos com sede de universo.

Este «é um livro que tem um jeito de apalpar a língua como quem apalpa o dorso de um rio. Ou tem um jeito de escrever as palavras da língua como quem rumoreja sussurros para não assustá-las», diz o escritor brasileiro Paulinho Assunção, no soberbo Posfácio. Acrescentamos: porque «há qualquer coisa de jangada na palavra rio», este é um livro sobre o sonho que corre no rio de antigamente, lugar de «verdades doces como mangas», do tempo em que «as pessoas emprestavam os pés às pombas / e elas roçavam os telhados /para cumprimentar as casas», casas onde circulavam «abelhas mansas» e os lagartos faziam parte da família, mas a família também fazia parte do lagarto. E se é certo que «o mundo, mesmo partilhado, /é muito a pele de cada qual», estas incursões de Ondjaki instigam-nos a escutar a pureza do vivenciado e trazer testemunhos de felicidade para a caminhada dos dias, como o próprio atesta.

Materiais e método dum poema
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“Sujo de infâncias”, Ondjaki constrói a casa dos sonhos que se recusam a partir, e mostra-nos com que materiais se espanta a tristeza e a solidão: «dedos quietos que crescem /pele nua /brincadeiras como o amor /pêndulo solto de sonhos /lógicas sacudidas /olhar de só-assim /modos de chegar como sementes /manobras de artesão contra o ego /desafio do «eu» /nudez de pele /de mãos /e (sob os teus olhos) / invenção de um sólido espanador de tristezas.». Depois, define-se o método: pedir emprestada a gaguez da garça, ganhar o hábito «de gaguejar tardes» e desenhar tudo com a tinta das veias: a família, os amigos, as vozes, as brincadeiras, o sol, as nuvens, o vento, as aves azuis. Para tanto, há que estender o «luando», emprestar o corpo ao chão e adormecer num poema «ardilhado de simplicidade».

Assim se convoca a chuva, uma «chuva carente» que precisa ser acariciada, ainda que o poema lhe seja um «lar provisório»: «e a chuva aceitou ficar. /vive actualmente /na leitura [mesmo que desatenta] /de um poema. / o barulhar dessa chuva /é uma espécie de pequena mentira. / dizem que as crianças lhe conseguem escutar. / dizem que os gambozinos lhe pressentem / e nela, por vezes, / se deixam vislumbrar. / dizem.»; assim surgem manhãs iniciáticas, apalpadas a «partir do tom amarelo das ramelas», aonde se chega com tombo deslizando num «escorrega», os fios de tarde empanturrados «de brandura» e noites inundadas de estrelas: «se eu soubesse manejar a palavra etecetera pedia licença à/ noite /e terminava este poema assim: etestrelas…!».

Materiais Para Confecção De Um Espanador de Tristezas é uma celebração com «qualquer coisa de lágrima», anunciadora de saudade, fundadora de nostalgia, com qualquer coisa de tristeza. Cônscio, Ondjaki adverte: «há qualquer coisa de sapiência na palavra tristeza. e algumas tristezas não são de espanar – um dia posso descobrir que elas me fazem falta e ter que ir buscá-las …». Cabe à palavra a metamorfose, pois «uma construção pode bem ser o lado avesso de uma certa tristezura.». E o ofício de a erigir é-nos descrito assim, cristalinamente, por Ondjaki: «vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. com esse sorriso vou iniciar uma construção…».


© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A magnífica Rota da Pimenta

O prometido é devido e reedito aqui o texto sobre o extraordinário Na Rota da Pimenta de Theresa M. Schedel de Castello Branco, do qual se falou menos do que merecia e que me trouxe o feliz contacto com a autora a quem envio um grande beijinho e os votos de rápidas edições de novas obras.

Volver à Índia dos gloriosos anos de quinhentos, por uma escrita límpida, com rigor histórico e pitoresco, é o que nos oferece o soberbo livro Na Rota da Pimenta, de Theresa M. Schedel de Castello Branco. Em 326 páginas reedifica-se o culto do Oriente e da benfazeja árvore da pimenta que nos tornou condimentados: ilustres, orgulhosos, mas também vaidosos e cobiçosos.

Com objectivos bem definidos e um método seguido à risca, a autora aniquila a «tirania do politicamente correcto», a «encapotada inquisição dos nossos dias» que «dificulta o papel do historiador tanto ou mais do que as exigências do “patrioticamente correcto” de tempos passados», refere, acrescentando que «ao historiador cabe o relato, a análise e a interpretação dos factos e acontecimentos do passado»; Já Marc Bloch escrevia que os documentos históricos «só falam quando se sabe interrogá-los». A autora executa esta tarefa com distinção, ressuscita o caminho da mundividência e traça as rotas do contentamento dos leitores.

A narração cobre o período de 1497 a 1515, e é dividida em quatro grandes partes: «A caminho da Índia»; «Grande lago de mercadoria é a Índia»; «É negócio da Índia»; «Governador e capitão-geral» – Afonso de Albuquerque. Conclui-se com a Bibliografia e um Índice onomástico.

Traça-se a grande viagem para a Índia desde o seu estado embrionário. Refere-se o grande livro de viagens do séc. XIII, O livro de Marco Pólo por «influenciar poderosamente» o movimento dos descobrimentos, e que fez parte da bagagem de Colombo e dos portugueses. Os seus relatos minuciosos, numa prosa acessível a todos, traziam da Índia distante as actividades, as mercadorias, os cheiros, paladares e sonhos de outras possessões acordadas por um local «onde as patacas cresciam nas árvores, e nos rios corria leite e mel», habitado «por gente fraca, pouco guerreira», característica que agradava, sobremaneira, ao rei português.
Os protagonistas são os Capitães-mores e governadores da Índia, primeiro Vasco da Gama, depois Pedro Álvares Cabral – com a incumbência diplomática e comercial que passava pela instalação de feitorias –, D. Francisco de Almeida e, finalmente, Afonso de Albuquerque, “o terrível”, mas assim citado com orgulho.

Se estes são os heróis da Grande história, Theresa Schedel convoca todos os outros cujas vidas se entrelaçam com as daqueles ilustres e que lhes vão dão cor, sentido de existência, e plenitude. Assim, irrompem na escrita pequenos episódios, muitos prosaicos, mas que revelam o lado mais comezinho do ser humano, não se «escondendo as terríveis violências, ódios e traições que constituem o lado mais sombrio deste empreendimento». E todos os outros são os que nas praias preparam a Grande Viagem, actores das azáfamas, onde não cabia o titubeio, ainda que os preparativos primassem muito pelo improviso, fruto de quem era pioneiro nas longas estradas líquidas rumo à Ásia.

Capitães, pilotos, nautas de vária sorte, com ou sem experiência de mar, fidalgos e cavaleiros – com os respectivos criados –, condestáveis de artilharia, bombardeiros, e «a gente» de que pouco se fala, que vinha de vilas e lugares de todo o país, e de diversos pontos da Europa: aventureiros e mercadores alemães, galegos, flamengos, gregos, italianos entre muitos outros. E tudo saltita na narrativa viva e célere que, assim, enreda o leitor convocando-o para os actos com que se aparelhavam as naus e as almas para a Grande Viagem em direcção ao cabo de todas as tormentas, mas também do sonho da Boa Esperança, aportando em terras de gente estranha e locais de riquezas inebriantes.

Elabora-se o retrato de D. Manuel, o rei venturoso responsável pelos inúmeros documentos que imortalizaram o pulsar da época, porquanto, refere a autora, «D. Manuel, além dos relatos oficiais dos seus capitães e governadores, queria cartas de todos aqueles, pequenos ou grandes, que tivessem qualquer coisa sobre os acontecimentos. Ordenava que lhe escrevessem, muito, e foi obedecido. Capitães, navegadores, mercadores, dirigiam cartas ao rei.». Dá-se o exemplo, bem vivo das intenções de el-rei, de «um certo Álvaro Vaz» que, em Dezembro de 1504. escrevia ao rei: «mandou-nos ora vossa senhoria que mui miudamente lhe escrevêssemos todas as ilhas e lugares que, neste mar da Índia, e pela costa daqui até Malaca, jazem: e assim as mercadorias que há em cada uma, e, das nossas, quais são para lá melhores, e os preços dumas e das outras».

É desta aluvião de documentos, como diria ainda Marc Bloch, «deste carácter maravilhosamente desarmónico dos materiais» preservados com rigor, agora enriquecidos pela leitura original da autora, que se constrói a excelsa narrativa, colorida e, em muitíssimos passos, pintalgada de ironia, como aquele em se refere o propósito religioso do empreendimento indiano: «religião, comércio e descobrimentos encontravam-se intimamente ligados, mas a religião não esteve em primeiro lugar nem para o rei nem para os homens que o serviam. D. Manuel preocupava-se muito mais com os problemas do comércio português na Índia do que com a cristianização dos hindus.».

Nota: Theresa Shedel é conhecida do público português por diversas obras de cariz histórico. Refiram-se: Os Painéis de São Vicente de Fora – As Chaves do Mistério; Os Painéis de São Vicente de Fora – Investigação ou Adivinhação?; Os Primeiros Tempos dos Portugueses na Índia.


Na Rota da Pimenta, Theresa M. Schedel de Castello Branco; Editorial Presença; Lisboa 2006

© Teresa Sá Couto

A «Janela do (In)Finito» de Anselmo Borges

Sendo o Homem biologia e cultura, como se relaciona ele com a transcendência? Será a religião uma mera experiência espiritual para acalmar os nossos medos? Deus existe? O que é o Homem? Os nossos tempos exigem-nos optimismo ou pessimismo? O século XXI será religioso?

Depois do «Deus para o Século XXI» (ver aqui), Anselmo Borges, Padre da Sociedade Missionária Portuguesa, e reputado colunista do Diário de Notícias sobre temas de religião, traz-nos 99 pequenos e iluminados textos, agrupados em 4 capítulos – «Do Transcender ao Transcendente», Religião e Religiões», «Religião e Sociedade» e «Morte e Esperança» – que foram publicados na imprensa, instigando-nos à reflexão sobre o fenómeno religioso e os seus caminhos na era da globalidade.

O título deste novo tomo encerra a vastidão, complexidade e até mesmo o carácter intangível da matéria que nos é proposta reflectir: «Janela do (In)Finito» remete para o mistério e enigma, pois a janela abre para a «intimidade e para o mundo», é «fronteira, limiar e sonho», como declara o autor em «Palavra de Abertura»: «O que se vê de fora para dentro tem sempre a ver com o oculto, o segredo, a intimidade, o sagrado. E o que se vê de dentro para fora? Baudelaire escreveu: “Je ne vois qu’infini par toutes les fenêtres”: só vejo infinito por todas as janelas. Através de uma janela, não se vê apenas o que está aí, à frente dela. Uma janela dá para o ilimitado, para o infinito.».

«Uma janela permite olhar o mundo, mas também favorece a entrada de ar fresco», refere Guilherme d’ Oliveira Martins, no Prefácio, aludindo também à depurada expressão escrita de Anselmo Borges, pautada pela clareza, mas não «facilitismo» ou «ligeireza». Uma janela, pois, por onde entra um pedagógico ar fresco, tão necessário aos dias que correm; a argumentação é envolvente, pululada de breves histórias, para prazer da leitura e, consequentemente, encontros efectivos com a reflexão.

Dar sentido à realidade ambígua

Será que, como defendia Schopenhauer, «o optimismo não passa de escárnio frente à dor sem fim nem limites da humanidade» ou, segundo o optimista Leibniz, este é «o melhor dos mundos possíveis»? Pegando nestas duas posições contrárias, Anselmo Borges argumenta: «o mundo nem é óptimo nem é péssimo. O mundo é ambíguo, uma mistura de bem e de mal. (…) a própria Bíblia, que é toda atravessada pela esperança, não é de modo nenhum ingénua nem ignora o horror do mundo. O livro de Job é paradigmático. Job, inocente, açoitado pela desgraça, ousa erguer a voz em quase blasfémia, quer levar Deus a tribunal e chega a amaldiçoar ter nascido (…) De qualquer modo, no meio de uma história de calvário, a Bíblia é uma gritaria por liberdade, salvação e sentido.».

O Homem é inquietação e transcendência, porquanto carrega consigo a pergunta pela Ultimidade, que ele não domina, «a pergunta pelo sentido de todos os sentidos, portanto, a pergunta última», refere-se. Ora, defende-se, esta busca de sentido é tão «central na vida humana que a história da Humanidade não se compreende sem a história da consciência religiosa, não sendo de esperar o fim da religião e das religiões.». Detendo-se na «Esperança», enquanto motor da caminhada humana, diz-nos o texto:

«O homem, como o animal, não pode não esperar: vive orientado para o futuro e esperando o que ele projecta, isto é, a consecução de metas e objectivos concretos e também, quer se dê conta disso quer não, o que permanentemente transcende a obtenção desses projectos. A esperança tem, pois, dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar – a confiança não é certeza – em que a realização da existência pessoal será boa).
Esta esperança do fundamental é a “esperança genuína”, que assume também dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida para lá da morte em Deus.
Aí encontraria o Homem finalmente, como diz Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude e a ânsia de Infinito: “o coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus”. “Santa esperança!”, dizia Péguy».

A dupla vertente da actual crise

Mas, num mundo onde a religiosidade é dispersa, onde coabitam crentes, agnósticos e ateus, onde a morte é tabu e o homem, despido do sentido de eternidade, quer viver “um só dia”, como está a «Esperança»? No texto «A modernidade: a crise e o mal-estar», Anselmo Borges aborda a crise da nossa sociedade, numa sintética e soberba viagem pela História, concluindo:

«A crise tem, pois, uma dupla vertente. Há o perigo do fim do humanismo, na medida em que dissolve o Homem na natureza, na física, na bioquímica. Cada vez mais o homem é produto do homem. Por outro lado, a crise está à vista na falta de sentido, na vivência, do niilismo e do seu mal-estar. É assim que, por exemplo, a palavra de ordem é competir, concorrer. Mas ninguém nos diz para quê. Já não há as grandes finalidades humanas, pois tudo se reduz, segundo a razão instrumental, a meios para outros meios, sem fim. Agora, no quadro da globalização, o destino é mesmo concorrer pura e simplesmente, pois a alternativa é: concorrer ou morrer.
Terreno propício para fundamentalismos!
».

Janela do (In)Finito, Anselmo Borges; Campo das Letras, Porto 2008

© Teresa Sá Couto

domingo, 5 de abril de 2009

Albano Martins – A Sinfonia Poética

Há muito que o constamos, ainda que o facto se nos afigure um mistério quase insondável: o poeta português Albano Martins é mais reconhecido no grande Brasil do que nesta pequena aldeia, a sua pátria Lusa, que se agrega em torno das suas sempiternas elites. A provar que a Academia do outro lado do Atlântico é incansável na divulgação e partilha do fascínio pelo nosso autor, contamos com o Ensaio A Quintessência Musical da Poesia: Rodomel Rododendro, um poema sinfónico de Albano Martins do carioca Jorge Valentim, editado em 2007 pela atenta editora portuense, a Campo das Letras.

Poema em prosa escrito em 1989, Rodomel Rododendro é a «melodia do aconchego e do espanto», a solenidade do silêncio da «percussão sanguínea», do «esvaído rumor» das águas antigas da humanidade. Detendo-se nos prodígios desta sinfonia discursiva, e munido de conhecimentos de Música, Jorge Valentim decanta o texto do poeta beirão numa pauta ousada, minudente e original. Um subsídio valioso para a compreensão do poema e da obra de Albano Martins.

«Uma escrita sob o signo de Orfeu»

Para lá do diálogo com as artes plásticas – característica da obra do poeta beirão, abordada no magnífico ensaio de Luís Adriano Carlos «Ekphrasis em Albano Martins», que referenciei noutras ocasiões –, Rodomel Rododendro pode e deve ser lido também do ponto de vista musical, defende Jorge Valentim, porquanto Música e Literatura «bailam no palco do texto, como uma espécie de “pas de deux”, dividindo por igual a sua importância na dança do diálogo intertextual». «Como boa metáfora», refere o ensaísta, Albano Martins traz a Música «para dentro da linguagem literária tanto no plano horizontal (com citações e referências a obras musicais e compositores) quanto no vertical (com a apropriação de recursos musicais na composição do texto poético)», instaurando-a como «uma realidade outra» que dá aos textos um carácter sedutor, que tão bem reconhecemos.

Abordando o poema «sob o signo de Orfeu», Jorge Valentim estrutura-o em cinco partes, cinco movimentos, à semelhança da estrutura da Sinfonia Fantástica de Berlioz, analisa-os, encontra-lhes ecos de Wagner e Beethoven, busca a «circularidade fluida do Rodomel» e o «movimento cíclico dinâmico e contínuo de Rododendro» que além de evocarem a música também evocam o silêncio, para o qual convergem, o silêncio que está disseminado por todo o texto, a marcar intervalos, «significante e fundador» a abrir nossas possibilidades para significar. Em jeito de conclusão, refere o ensaísta:

«Cíclico, circular e intermédio é o seu texto, como também é ekphrásico, intertextual e inter-semiótico, na medida em que vai buscar de empréstimo não só os sons metafóricos de Wagner e Beethoven, mas também as cores musicais de Cruzeiro Seixas, que, com os sons de seus metafóricos violinos, contribuem para a orquestração de Rodomel Rododendro»

Rodomel Rododendro, poema feito de memória orquestrada pela música do tempo, de «voz emudecida» e mel abundante, está incluído na Antologia poética Assim são as Algas. Deixem-se dois excertos, e o leitor que apreenda os timbres deste solfejo:

«Trazíamos ainda nos ouvidos o canto acre e fausto das cigarras. Vinham com ele, amarrados, os bois, as noras, os carvalhos, e a voz rouca do cuco e da poupa, o aroma poroso dos rododendros. Porque é deles que falas onde quer que te dispas, te desnudes, desprevenido e inteiro. Da moldura partida e do retrato caído no degrau mais fundo das escadas. Sim, por mais que digas, falas sempre das abelhas, do mel adolescente escorrendo dos favos loucos da alegria. Da alegria perdida, reencontrada, perdida entre os escombros e as abjecções do real, mais falso e verdadeiro que todas as verdades aprendidas, que todos os dogmas e doutrinas acumuladas nos compêndios por onde te ensinaram a vida

***
«Campo das urtigas. O voo raso dos melros ao fundo do quintal. Ali experimentaste as tuas asas, ali aprendeste a voar sem elas e sem medo, na reclusão dos dias altos, sem medida. E, se aprendeste, esqueceste-o depressa, ou não mediste a distância rigorosa, a rigorosa altura, no cálculo da vertigem. Não sabias ainda que, como o arado, nasceste para lavrar a terra, o chão que pisas, na irreparável certeza de que só provisoriamente te pertence. Como o ar que bebes, a água que respiras, o fogo que te alimenta e te devora.».


© Teresa Sá Couto

sábado, 4 de abril de 2009

A singularidade poética de Albano Martins

Na sequência do meu texto Palavras escritas e ditas a vermelho, que desencadeou “pedidos de esclarecimento” sobre a obra do poeta Albano Martins, edito aqui alguns artigos que fui elaborando ao longo dos anos, esperando assim contribuir para um melhor entendimento de uma poética singular.

Albano Martins nasceu em 1930, na Aldeia do Telhado, Fundão. A sua actividade de professor universitário na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, fê-lo radicar-se naquela cidade. Foi agraciado pelo Governo da República do Chile com a Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral no Grau de Grande Oficial, pela sua obra poética e pelo seu trabalho de tradução de Pablo Neruda. Foi distinguido com a Medalha de Ouro da Cidade do Fundão, em 2006. No ano passado, no 10 de Junho, foi condecorado Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República. Uma condecoração do Dia de Portugal que nos enche de orgulho: pelo poeta e pelo país o reconhecer! Também no ano passado lançou o livro infantil «Uma Casa à Beira da Floresta». (na imagem à esquerda, retrato de Albano Martins pelo pintor Jorge Pinheiro, incluído no pequeno livro «Frágeis são as palavras – Antologia pessoal» editado pela Asa.).
Sobre a sua poesia, deixo um olhar pela Antologia poética Assim são as Algas, editada pela Campo das Letras que reúne 50 anos de vida literária (de 1950 a 2000). Uma edição de capa dura feita com detalhe e esmero, guardiã de um conteúdo raro. Por 552 páginas, corre o inefável compromisso do poeta com a poesia: «Cumpro o meu destino como qualquer fonte». Um Destino tecido com a palavra exacta, policroma, polifónica, odorífica, tudo envolto na solidão e no silêncio donde brota toda a criação: «Im /puro sou. Escavo /com minhas mãos a lama /do silêncio. Não /conheço outro oficio.».

No seu ofício, o poeta talha o centro do amor – «Centro do próprio centro» –, que está no corpo da mulher amada, o mesmo é dizer, na poesia: «Dei-te o nome da abelha, /mas tu és favo e mel, /substância vermelha /feita de sangue e pele». Uma poesia que declara a partilha e, sobretudo, o acto de amor para com a Literatura Portuguesa.

A natureza, a senha para a felicidade

Albano Martins encontra na natureza a chave da harmonia existencial. Associando a natureza à natureza da palavra, diz o poeta que «A verdadeira beleza /está no que o homem tem de semelhante /com a natureza.». Mais, aconselha o homem a aproximar-se dela para lhe apreender a perfeição: «Para saberes, ergue /um monumento, deixa /que as rolas façam /seu ninho no topo».

Aos 20 anos de idade, em Secura verde (1950), Albano detinha-se na observação da natureza para interpretar a sua condição de poeta iniciático: «Sou um mundo fechado /ainda por abrir, /uma flor imperfeita /que não sabe florir»; «Meus versos, gritos do vento das ramagens, /são a minha própria alma angustiada /a reflectir imagens /duma lenda em mim iniciada». Decretava o seu voo feito de «Pássaros que abandonam /o calor e o âmbito do ninho», multiplicava-lhes auras e arco-íris em versos que eram «encontros da sombra com a luz». Debatia-se com o drama da criação – «Posso ter o corpo aberto /e não mostrar o que sou». Definia o seu método e escolhia o seu destino – seguir sozinho um caminho achado «nas palavras dos que vinham»; «Construo e destruo /meu destino é esse».

Em Rodomel Rododendro (1989), um belíssimo conjunto de textos em Prosa poética, pode ler-se o que seria, recorrentemente, a sua bússola humanista: «Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário». Assim são as Algas, substância genesíaca que circula na epiderme; assim é o sangue que o poeta deixa correr para que o leitor o persiga.

Amor e erotismo no mapa do corpo

Paul Éluard escreveu: «combatíamos juntos o sono. /Dois sóis em nós se erguiam». A reciprocidade amorosa sobressai na temática do Amor em Albano Martins, com intimismo avassalador. A mulher amada surge como complemento de lugar onde o sujeito encontra a sua plenitude, carne e espírito: «Assim me deito /sobre a ternura /Este é o meu leito /e a minha lura». O pronome pessoal “Eu” dá lugar ao “Nós”, e o possessivo “Nosso” atesta a conjura amorosa: «Nenhum excesso /nos contém. Nenhuma /onda nos devolve.»; «O que em nós sobra /à maré pertence.»; «Basta uma flor, /basta uma asa /para saber que a primavera /entrou em nossa casa.». Juntos partilham uma margem – «Esta é a margem /do azul. Nenhum /outro limite / reconheço ao sangue» –, repleta de luz, emaranhados no erotismo.

Em A margem do azul (1982), o poeta desata a pulsão do amor e do desejo em palavras como espécies de mãos que bebem, sôfregas, a pele: «De ti fiz a harpa e a lira, /a guitarra. /Outra música não sei.». Em Vertical o Desejo (1985), os interditos abrem-se à luz, num mapa erótico que se desnuda pela vibração vocabular: «Entras / em mim descalça, vulnerável /como um alvo próximo, ferida /nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto /nos conhecemos, é essa luz /oblíqua que nos cega. E te pertenço /e me pertences como /a lâmina /à bainha, a chama /ao pavio.».

Com Uma Colina para os Lábios (1993), o desejo edifica-se no altar do corpo amado, no processo que reitera o destino do poeta que constrói e destrói, dando forma à avidez da descoberta: «Não sei medir-te de outro modo: /te dispo e visto o tempo todo.». A exclusividade do amor conjuga com a paixão o verbo ser e este com a vontade de ser homem: «Apenas um dos dedos /conhece a luva. Só uma pétala /convém à rosa.». Trata-se de um amor extasiado, porém real ou, como diria Éluard, «Estar enlevado é uma forma de realidade».

No entanto, a melopeia amorosa não se faz apenas de luz e orvalho, mas também de sombras e lodo: «Cubro-te a face /de sombras. Sou /o teu e meu eclipse.». Sendo esta uma poesia que afirma que «A vida / – essa invenção magnífica /da morte.», faz da vida um hino à felicidade: «Quando escurece, é preciso acender rapidamente todas as luzes da casa. Nunca se sabe quando o eclipse do sol é total. E a morte precisa de luz para ver na escuridão.». A harmonia de contrários geradores de equivalências é uma constante na poesia de Albano, e apanágio da grande poesia.

O ninho da memória

Porque o homem faz-se também de memória, em Em tempo de memória (1974), o poeta enceta a «viagem das flores sem moldura», recupera o tempo branco, «sem cor e sem regresso». Não se julgue, porém, que este retorno ao passado é feito de passividade: não há imobilismo nesta poesia, mas reminiscências, cintilações, inclinações do corpo, uma oração até às mãos doridas e requiem aos «gestos perdidos /no espaço da memória».

Em Paralelo ao vento, (1979), caracterizam-se e questionam-se os «Anos plácidos, /fulvos, /que luz ainda perdura? /Que piano guarda /ainda uma nota /grave, /cintilante /e pura?». A demanda seguiria em Os Remos escaldantes (1983) onde «Há um melro que faz /o ninho» na memória: «Ouço-o /agora. Canta /a flor das giestas /e da cerejeira». Esses «dias enxutos» instigam, em O mesmo nome (1996), a «Rosa-dos-ventos» da infância, onde cabiam todos os lugares e todas as direcções. Reiterava-se, na poesia de excelência, o mel das «Lendárias e luminosas abelhas», a «Magnólia dos símbolos», a florida e «incandescente metáfora», o «Aveludado perfume», recorrências que palmilham e dinamizam todo o trabalho poético de Albano.

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Palavras escritas e ditas a Vermelho

A vida é um «Compêndio» e, diz-nos Albano Martins, no livro Escrito a Vermelho, que Escrever /é isso: fazer /da vida uma pauta/ e um compêndio de espuma. «Melodia do Silêncio», a poesia do poeta beirão é um solfejo de veias que encontrou na excelência artística de António Pinho Vargas inspiração para Sete Canções de Albano Martins para canto e piano, editadas em CD no ano 2000, revividas no passado dia 27 de Março, na Casa-Museu Teixeira Lopes, em Gaia, interpretadas pelo barítono António Salgado.

Com este trabalho, o músico que tem dado som à melodia de poetas permite-nos a reflexão sobre o diálogo que se estabelece (e deve estabelecer) entre artificies da sensação, mesmo que com distintos estilos e ferramentas ou dito assim por Albano: A sensação que tens /é de que tudo /quanto dizes já o leste /noutros livros. Mas /depois consideras: também/ o sol e os pássaros /repetem todos os dias /a mesma canção. Imperdíveis, garanto, a poesia de Albano e o CD de António Pinho Vargas.

O livro Escrito a Vermelho é de 1999 e está disponível individualmente, mas também está inserido na Antologia Poética Assim são as Algas, ambos editados pela Campo das Letras. Se alguns críticos defendem que aquele livro é uma obra que sintetiza o percurso poético do autor, prefiro dizer que ele é mais uma criação, sempre diferente, inconfundivelmente albaniana, esculpida com sangue e fogo, e a prova do desígnio de ser poeta: o desassossego vertido no dinamismo vocabular e nas sempre surpreendentes metáforas sinestésicas, a procura dos muitos lados da realidade – e a consciência de que essa realidade é cheia de “fendas”, vã a captura, mas ciosa a entrega:

Quando a porta se abriu,
perguntaste quem era.
Não se pergunta ao amor
que nome tem.


ou,

Nunca te disseram
que a aparência é só
o primeiro lance. Em todos
os jogos há sempre
uma carta escondida


ou,

Não te esqueças de,
ao sair,
deixar a porta
aberta. Podes
perder a chave
e não entrar.
Ou podem roubar-ta,
o que é pior.
Porque são numerosos
os ladrões do azul.

Nesta era de sobejos tempos vãos em que «Não são apenas relógios» que nos atraiçoam, podemos, todavia, contar com a poesia cúmplice que ouve o nosso silêncio e dá forma às «Pequenas coisas» que nos enformam:

Também se pode
Regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.


ou,

Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.

Apaziguados pelas palavras, lembremo-nos, por fim, do «Compromisso» a que nos desafia Albano Martins:

Pertence-te /ser homem, afirmar /todos os dias que tens /um compromisso: ser claro /e brando como a luz /e, como ela, /necessário. E não deixar crescer à tua porta /ervas daninhas.


© Teresa Sá Couto