sábado, 30 de maio de 2009

Coração Atlântico - poesia da Madeira e Açores

Do azul enérgico do atlântico detenho-me em fulgurantes «Pontos Luminosos» e o “ouro sobre azul” faz ainda mais sentido. Trazida pela mão da Editorial Campo das Letras, a Antologia poética reúne poesias dos Açores e da Madeira com o intuito de, na sua especificidade, se lhe apreenderem pontos de contacto, numa comunicabilidade que se estende ao leitor.

Se todo o “homem é uma ilha”, e o desamparo é uma linguagem universal, esta poesia insular é um compêndio de experiências e subjectividades, contributo para o mundo. Curioso é o caso de Carlos Nogueira Fino, que nasceu em Évora, onde o horizonte é a planura larga da terra, foi para a Madeira em 1959 e lá apreendeu outra vastidão de isolamento: «havia sempre um cais no fim /de cada dia /…/um mar mesmo a teus pés até perder de vista /até perder-se o sol no seu naufrágio brando /até ser tudo sombra e tudo estremecer /…/e então ficavas quieta ficavas mais um pouco /até ser funda a mágoa /funda como o mar».

A selecção de textos é da responsabilidade de Maria Aurora Carvalho Homem, da Madeira, e Urbano Bettencourt, dos Açores. A organização, posfácio e notas são de Diana Pimentel.
Os textos estão ordenados por ordem alfabética seguindo o apelido dos autores. No final da antologia encontram-se notas bibliográficas de todos os poetas contemplados, numa útil informação ao leitor. Na Nota de Leitura, a abrir a Antologia, Diana Pimentel lança o repto ao leitor para se envolver no diálogo que esta poesia desata: «esta leitura (auto-bibliográfica e hetero-bibliográfica) destina-se, clara, transparente, ao leitor: que (lendo, elegendo) inscreva a sua voz nesta paisagem transfigurada que desenha uma espécie de mapa invisível das ilhas comunicantes».

«O ofício das vagas»
Como um mapa desdobrado de sensibilidades insulares, a poesia coligida em «Pontos Luminosos» mostra que a mão sabe o pulsar do coração e desenha esse saber fundo com palavras translúcidas, marulhadas nas pedras salgadas e que são «o lastro de não ir». Vibrantes, as palavras surgem como emissárias desse silêncio branco como a espuma, feitas aves que abrem as asas e esperam que o vento as leve. Desse ofício assombroso da escrita dá-nos conta o madeirense José Agostinho Baptista, que recentemente venceu o Grande Prémio de Poesia Associação Portuguesa de Escritores/CTT com o livro "Esta voz é quase o vento", e é um dos contemplados na Antologia:

«Um porto é como uma seara plantada de mastros, /uma azáfama de gritos /…/O ofício das vagas, a minúcia das velas – /outro destino não queria: /empunhei o leme, recolho a ancora, bebo, escrevo – /…/ ainda que o digas não partirei – /conheço a nostalgia que vive para sempre no coração da /infância e dos barcos.».

Também Urbano Bettencourt “transfigura” pela palavra aquela paisagem, sinónimo de infinitude:
«aqui o homem ergue
uma ilha e olha
as palavras cercadas de sal
até onde o olhar se afoga».

A Terra Nova da emigração

Carlos Faria, que nasceu na Golegã, Ribatejo, mas radicou-se nos Açores, em «Telegrama para o Universo» aborda a questão da emigração:
«A ilha está em flor.
As asas têm as raízes no vento.
O mar é bom para regressar.
As nuvens movem-se
nas mãos da distância…».

Em «Fado», o autor mostra-nos de forma pungente essa condição de amar à distância: «Marinheiro perdido: avariadas /as bússolas só te resta o coração /e a derrota! /Marinheiro perdido: Não tens/outra Fortuna que salvar os Lusíadas /a nado! Marinheiro perdido: regressa /que é hora de voltar a partir /O longe português /é para lá do infinito /…/Ilha ou asa ou raiz? /O mar responde que é o coração /da viagem!»

No posfácio, Diana Pimentel refere que «entre as poéticas açoriana e madeirense aclara-se uma diferença ou tensão entre o fascínio e a repulsa face ao microcosmo simultaneamente individualizante e possessivo da Madeira e a abertura expansiva em direcção a um infinito inominável presente na poesia dos Açores.». Assim, refere, a presente edição de «Pontos Luminosos» pretende integrar e não isolar. Concordamos que esta poesia dá a ler “a construção da subjectividade» e a «experiência do espaço», e desvenda marcas psicológicas da portugalidade. Verdadeiras centelhas rutilantes que esperam nas prateleiras das livrarias o leitor que as saiba olhar.

Pontos Luminosos – Açores e Madeira – Antologia de Poesia do Século XX – Vários Autores, Editorial campo das letras, Porto, Abril 2006

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Escravatura na fundação da modernidade

O trabalho escravo africano foi a pedra angular da construção do mundo moderno e nele se reconhecem as fundações do capitalismo. Ir ao encontro desse fundamento é conhecer a nossa história política, económica, cultural, social e psicológica, outrossim reconhecer o que subsiste da colonização ultramarina – espinho silencioso na nossa memória colectiva.

«Ricos e famosos! Este foi o verdadeiro e único móvel das nossas façanhas em África (…).Se a navegação foi arrojo de heróis, a colonização pareceu obra de ratoneiros (…). Ficamos senhores do mundo! Em Portugal não se curou mais da produção. Submeter os negros, comprá-los e vendê-los! Subjugar a Índia e avassalar o Brasil! Eis a grande preocupação»: escrevia Ladislau Batalha, no séc. XIX, relembrado no livro «Trabalho Forçado Africano», ferramenta do saber crítico que colige conferências de 26 investigadores nacionais e estrangeiros, coordenado pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto e com a chancela da Campo das Letras.

As conferências estão agrupadas tematicamente em quatro partes: «O tráfico atlântico de escravos», Problemática da escravatura no Brasil», Trabalho forçado na África colonial» e «Heranças Culturais da escravatura no Brasil».

Sinal de riqueza para os seus proprietários e construtores de riqueza pelo seu trabalho, os escravos perpetraram as grandes migrações e com elas o vigor económico de nações. Longe dos anos de quinhentos, constata-se que a escravatura está na formação social de quase todos os estados americanos e subsiste em formas de cultura nos cantos da diáspora.

A partir daqui, o texto desafia-nos, confirmando-se que é necessário obter respostas, ainda que a matéria seja vasta e tenha de enfrentar lacunas documentais, ainda que o caminho do questionamento devolva e angarie novas perguntas:

«Mas, se a escravatura africana teve esse peso histórico tão grande e foi abolida em meados do século XIX, o que aconteceu em seguida a um sistema que já então tinha tomado uma dimensão planetária? Como se alterou a divisão mundial do trabalho entretanto instituída? De que forma nela participaram as regiões africanas, agora obrigatoriamente reconvertidas? Em que consistiram os sistemas coloniais europeus em África e o que tiveram em comum?».

Com efeito, e reportando-se ao caso português, refere-se que «Em 1876, quando já a escravatura era abolida de facto e de direito em toda a África, ainda no interior de Angola os portugueses compravam e vendiam escravos, sendo as próprias autoridades, até chefes de concelho, às vezes, os que realizavam tão odiosas transacções ou as toleravam dentro da área da sua jurisdição, mascarando-as com o nome de resgate.». Na conferência «Politica da Sociedade das Nações para a extinção da escravatura e do trabalho forçado em colónias africanas (1922-36): o caso português» constata-se que a luta contra a escravatura continuou muito depois de ser extinto o tráfico de escravos, manifesta em diversas formas de trabalho forçado nas colónias de S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, bem como a persistência de formas de «escravatura doméstica e servil».

Com o apoio documental, refere-se que a Sociedade das Nações, pressionada por vários relatórios e queixas sobre «práticas análogas a escravatura», criou uma «Comissão Temporária da Escravatura» para apurar os casos e zelar pelo cumprimento dos direitos das populações dominadas. No caso português os documentos são elucidativos: um relatório de 1914 acusava Portugal de «fornecer mão-de-obra ao Estado e aos particulares sem atender aos direitos mais elementares dos africanos e às especificidades próprias das suas sociedades.». Acusava-se Portugal de consideração abusiva do termo «vagabundo», de aplicar de «forma abrangente» a lei que determinava que «todo o indígena válido que não trabalhasse seria compulsivamente obrigado a fazê-lo», de forma a «melhorar progressivamente a sua condição social e a civilizar-se».

O que se pretendia, defende-se, era «além de suprir o problema da falta de mão-de-obra, que o africano ganhasse o suficiente para pagar o imposto de palhota e comprar vestuário ou objectos importados» pela potência colonizadora, evidentemente!

Também o caso da Guiné é esclarecedor das práticas portuguesas. Nos anos cinquenta, já do século XX, a mão de obra africana era requisitada no contexto do ”imposto braçal” para se executarem obras de “utilidade pública” principalmente na construção de estradas, uma vez que «a única maneira de transitar entre os vários portos e praças era através de barcos e canoas, em viagens morosas». As construções eram tidas como símbolo da evolução, e assim aspirava-se a «um novo patamar de desenvolvimento, que podia rivalizar com os seus vizinhos francófonos da AOF». Desta feita, o trabalho forçado imposto às populações sob condições penosas servia para pagar dívidas ao Estado, seria o «verdadeiro tributo para garantir o seu progresso».

Trabalho Forçado Africano - Experiências Coloniais Comparadas, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto; Editora Campo das Letras; Porto, Outubro 2006


© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 22 de maio de 2009

«O Porto: Orgulho e Ressentimento»

Olhar a invicta com olhos de pássaro, «esperar e ficar de atalaia, como um caçador de átimos; ter os sentidos engatilhados e um bornal vazio onde depositar, com desvelo, o pequeno e delicado momento que nos há-de ficar para sempre». Assim se perenizam momentos em «O Porto: Orgulho e Ressentimento», um livro, antológico, de Manuel Jorge Marmelo. Os textos foram publicados no jornal Público, e outros, breves apontamentos sobre a cidade, escritos no blog do autor, antes «Nariz de Ferro», depois Tatarana.

Como jornalista, o autor dá-nos o olhar minucioso com que perscruta a realidade. Como contista, oferece-nos pequenas narrativas numa escrita depurada, com palavras musicais que tecem sensíveis voos de alma, entretecidas, a muitos passos, numa bela prosa poética, repleta de sinestesias que permitem transmitir sugestões e impressões da realidade captada. Transborda o afecto pela cidade parda, mesmo quando as ruas desatam a mágoa. E aventa-se a razão: «todos os delírios cabem no espaço que coisa nenhuma ocupa. É obrigatório sonhar que estas ruas podem voltar a ser alegres. Um dia

Diz o autor que «a subtil magia de certos lugares não dura, às vezes, mais do que um instante. Não que desapareça de facto, pois o fundamental está lá, perenemente. Mas basta que os olhos se distraiam alguns segundos, não mais, para que se desvaneça o imaterial e transitório que opera o milagre de transformar um sitio aprazível numa epifania de maravilhar.». Contra todo o esquecimento, tudo é registado na paleta da observação: gente que passa, gente que se detém num doce vagar, magotes cavaqueando, «um escarro matinal», azáfama e silêncios, rumor de pernas, rumor de penas, vidas de gatos, crianças que «guincham enquanto dão de comer às aves», animais que investigam e debicam migalhas, «frases garatujadas nas paredes do Porto, misteriosas e mágicas», como o misterioso e mágico nevoeiro que ora «povoa a manhã de espantos», ora revela melancolias e desejos de evasão.

Tomando o ar em «golfadas puras», o autor deambula pela cidade, mesmo que o dia amanheça noite, mesmo que o vento cicie nas orelhas «ameaças de chuva», embrenhando-se por becos e vielas, à procura de um «raio de luz que ilumine tudo», ainda que tarde em surgir. Com a doutrina dos sentidos bem afinada, vai revelando a cidade que poucos vêem ou sentem, disciplinado ao método infalível: «caminhar sem rumo. Parar para ver. Fumar um cigarro. Respirar fundo.». Encostar o ouvido aos muros para escutar a palpitação do barro e da pedra. Inventar novos mitos».

Dá-se largas à reinvenção da realidade com o Jardim das Virtudes a rivalizar com o jardim do éden, nos murmúrios de água e erva «perlada de orvalhos», um local que «esmaga e acolhe como um braço apertado e morno», e solta-se a poesia mesmo que – ou talvez por isso mesmo – as «quimeras» sejam sem cabeça. Mira-se Gaia com as suas «casitas de presépio» e navega-se na mansidão preguiçosa do Douro, linha divisória do sagrado e profano, rio que não só separa cidades como deuses: «De um lado Baco, o do vinho, do outro o omnipotente da Bíblia, o das igrejas e dos santos.». Sobe-se ao alto da Torre dos Clérigos, «o gigante de granito» para se ver aquele Porto «minúsculo e rasteiro», e com os braços «abarcar a cidade inteira».

Todavia, também se desce, e o abraço transforma-se num nó que parece apertar a alma e que só a escrita liberta. Comprova-se que mostrar o lado e o reverso é uma consequência da deambulação. Interventivo e crítico, o autor averba misérias da cidade: no largo do Lagarteiro, detém-se junto de famílias, com doentes e crianças, que vivem no interior dos carros, na «miséria, lama e lixo», resultado dos «despejos que a câmara municipal promoveu num conjunto de habitações que ali haviam sido ocupadas»; munido da amplificação que a escrita possibilita, faz sobressair um monte de lixo diante de um hotel de luxo onde «o gato preto famélico e com olho vazado, mergulhou nos dejectos em busca do desjejum»; outrossim, surgem as Fontainhas, quase com «uma pobreza bíblica», «um terreiro de abandono, desolação e lixo, como se a cidade findasse no sítio exacto onde começa a escarpar-se, a empobrecer-se (…), sitio velho, gasto, aviltado pelo tempo, onde os plátanos enfileirados estendem suplicantes braços, retorcidos e nus.».

Um património mundial, de casebres insalubres, refere, onde as pombas são negras –da mesma cor do gato de olho vazado -, «pretas retintas». A técnica de juntar os contrastes para melhor os destacar tem o seu ponto máximo nas elucubrações sobre a Foz, desembocando na rua com nome Alegre onde se atesta o «silêncio furtivo dos dois mundos que aí persistem»: o silêncio dos abastados, símbolo do desprezo, com o cão de guarda a rosnar à passagem de estranhos – a fazer-nos lembrar o Bairro Moderno de Cesário Verde – e o outro silêncio, o rústico, o desprezado, das paredes caiadas, da roupa a secar nas janelas.

A adesão ao mundo dos humildes é assumida na escrita que o reabilita, numa transformação de vitalidade ou projecto de sobrevivência: o arrolar das rolas quebra o silêncio, o ar impregna-se de cheiros da tangerineiras e limoeiros, ostenta-se a vida em «couves tronchudas, num subtil jogo narrativo testemunhado pelas nuvens que «brincam a mostrar e esconder o sol». Na subtileza dos encontros que ocorrem nos «humores da cidade, entre sol e neblina», destaque-se, ainda, as figuras femininas plenas de sensualidade, mesmo que em breves apontamentos como o da «mulher que, feminil, estende um tapete rosado».

Contrapondo-se aos homens da faina – «rudes e mal barbeados que sobem a rampa do cais acartando cabazes de fanecas acabados de chegar do mar» –, surgem surpreendentes figuras femininas, «talvez um pequeno cardume», numa aparição quase mística e repleta de erotismo:
«Com carícias lentas espantavam as algas e os pequenos mariscos que lhes tivessem ficado agarrados aos cabelos; com vigorosos arrepios, como guinadas de carpa, sacudiam a água das escamas. (...) Nestas escadas cantariam, pode-se sonhar à vontade, o seu agudo canto de encantar, semelhando golfinhos, semelhando baleias, semelhando o inaudível sussurro das anémonas e os murmúrios de todos os seres do mar. (…) Apenas confiavam, as sereias, nos marinheiros ébrios e nos contadores de patranhas, com os quais se entregavam, calhando, a fogosas e inverosímeis noites de amor. Metade fêmeas, metade peixes, tinham todo o mel nos lábios e nos bicos dos seios, toda a pimenta nos cabelos longos, todo o colorau e o gengibre todo nas partes humanas do corpo. Ai o viço e o encanto. Abaixo, nas escamas prateadas, temperadas só com sal, ficava o tremor da paixão, o arrepiado amplexo dos brilhos náuticos.».

Evasão – os pássaros do Sul

Embrenhado na cidade, o autor lança um olhar ao largo, numa manifesta evasão. A metáfora do ir /libertar-se surge com os pássaros que passam na rota para o Sul: «havia hoje, ao entardecer, loucos bandos de pássaros voando nos céus da minha cidade. Iam para sul, eu sei. E como entendo a sua fuga!»; «não há sequer pássaros no céu, porém, e os braços das árvores estão nus. O ar não aquece. O corpo encolhe e arrepia-se. Invejo, por isso, todos os bichos da criação que, chegada a invernia, se refugiam no Sul, na metade da terra que é Verão.». Também o vento surge como incentivo à fuga: «o vento tem mil demónios soprando na tarde: assobiam-me, chamam-me, dizem-me que vá.».

O plano irreal irrompe pelo plano real. Engaiolado, detém-se na observação de gaiolas vazias para logo fechar os olhos e, assim, poder «viajar para longe, para o início dos tempos. Estar na cidade e ir ao pedaço de paraíso a que cada homem tem direito – nem que seja por um instante e nada mais.». Ainda neste exemplo percebe-se que a fuga é, todavia, impossível. Essa impossibilidade é o motor da criação destas palavras espraiadas por 142 páginas.

Diz o autor que «tal como a viagem, tal como as cores deste sítio, essa ideia abandonada talvez precise apenas de um raio de sol que a aqueça e dê brilho. Que a faça boa.». Manuel Jorge Marmelo dá-nos uma antologia de luz sobre a sua cidade com que se aquecem bons momentos de leitura.

O Porto: Orgulho e Ressentimento, Manuel Jorge Marmelo, Editora Campo das Letras, Porto, Janeiro 2006

© Teresa Sá Couto


* Dedico este meu texto aos fotógrafos Manuela Vaz Marques e António Amen pelos olhares devotos à cidade do Porto

sábado, 16 de maio de 2009

História do Cinema Português (de 1931 a 2004)

Com o título Cinema Português através dos Seus Filmes se colmata uma lacuna na publicação de estudos sobre a história do cinema em Portugal. Vocacionado para estudantes de cursos superiores relacionados com o audiovisual e o cinema, cinéfilos e todos os interessados na sétima arte portuguesa, o livro contém a análise crítica de dezoito pesquisadores nacionais e internacionais a 23 longas-metragens, desde A Severa de José Leitão Ramos (1931) até Noite Escura de João Canijo (2004).

São também seis capítulos de uma longa-metragem que nos caracteriza, portugueses, no ser e na estética do olhar: no exílio e regresso da imigração de Gado Bravo (1933-34), na ruralidade pitoresca que inspira a comédia da grande Aldeia da Roupa Branca (1938), no drama de um destino ditado pelo mar de Nazaré (1952), no saudosismo campestre amordaçado na cidade de Os Verdes Anos (1963), no telurismo das penedias de Trás-os-Montes (1976), nos encapotados e burlescos capítulos dos Brandos Costumes (1972-1975), no grotesco da desagregação humana ou A Comédia de Deus (1995), na nova Tentação (1997) ou na disfuncionalidade familiar da sociedade actual de Os Mutantes(1998).

Com a chancela da Campo das Letras, a obra é rigorosa, bem documentada e bem organizada por Carolin Overhoff Ferreira – resultado de uma metodologia que confere fácil manuseio e o garante da informação exacta no lugar certo. Ressalva para o facto deste Cinema Português através dos Seus Filmes parecer ser o resultado de sinergias críticas em torno dos filmes nacionais, porquanto se unem nas abordagens nomes portugueses e estrangeiros; sinergias que sempre têm acompanhado e até tido um papel determinante nos planos e execução do nosso cinema desde os anos 30, prova de cumplicidade internacional nos projectos artísticos dos teimosos realizadores lusos que, tradicionalmente, têm poucos apoios em Portugal, demonstrado nas páginas deste livro, filme após filme.

Assim, colaboram na obra, Bárbara Barroso, Carolin Overhoff Ferreira, Fausto Cruchinho, Jorge Campos, Jorge Leitão Ramos, Jorge Seabra, José de Matos-Cruz, Lisa Shaw, Luís Reis Torgal, Malte Hagener, Maria do Rosário Leitão Lupi Bello, Martin Barnier, Oliver Vogt, Paulo Cunha, Paulo Filipe Monteiro, Paulo Jorge Granja, Randal Johnson e Ronald Balczuweit.

Duzentas e sessenta e três páginas compreendem 6 capítulos que organizam a análise crítica dos filmes por décadas, com títulos referenciais da focalização pretendida (Os anos 30 e 40: A primeira e única indústria; Os anos 50: Estagnação e Neo-Realismo; Os anos 60: Um cinema novo; Os anos 70: Após o 25 de Abril; Os anos 80: Entre a escola portuguesa e o cinema comercial; Dos anos 90 até à Actualidade: O cinema contemporâneo). No final, são inseridos dados sobre a Filmografia apresentada – com a respectiva ficha técnica dos filmes analisados –, um Índice de realizadores e filmes citados, e Notas sobre os colaboradores.

Que futuro? Cinema Comercial ou de Autor?

Qual o futuro do cinema português, como se acaba com a indiferença do público para com o seu cinema de autor – que se lhe afigura elitista –, que faz mais sucesso no estrangeiro do que por cá (sacrifica-se a qualidade pelas receitas de bilheteira ou educa-se o público para a qualidade ou procura-se o equilíbrio?) são questões que se colocam há cerca de trinta anos e que esta obra volta a relançar, agora com todos os instrumentos para uma reflexão longa e capacitada.

Diz Carolin Overhoff Ferreira, incluído na análise que faz ao filme O Lugar do Morto (de António Pedro de Vasconcelos, 1984), que «segundo João Bénard da Costa, o debate entre cinema de autor iniciou-se em 1978 por causa dos êxitos internacionais e fracassos nacionais de Amor de Perdição (Manoel de Oliveira, 1978) e Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Martins Cordeiro, 1976)» referindo também que em 1982 o debate tornou-se polémica quando o já extinto Instituto Português do Cinema /IPC suspendeu os planos de produção cinematográfica, alegando falta de verbas, a que se juntaram dirigentes políticos em reclamação de um «cinema mais acessível ao grande público, ou seja “filmes para Bragança e não para Paris”».

No centro daqueles tempos de polémica surgia o filme que bateria todos os recordes de público até então em Portugal: O Lugar do Morto que, no seu género híbrido com características de film noir, se juntava ao género de sucesso com tradição em Portugal desde os anos 30, a Comédia. Refere-se que o filme conseguia 271 845 espectadores, só sendo batido até hoje por Tentação (Joaquim Leitão, 1997), com 361 312 espectadores e O Crime do Padre Amaro (de Carlos Coelho da Silva, 2005), com 380.652 espectadores, filme este que colheu a negativa da crítica.

Atentando nas análises crítica feitas aos quatro filmes escolhidos para o capítulo dedicado ao cinema contemporâneo, deparamo-nos com diversidade estética e de conteúdo, com três dos autores reconhecidos internacionalmente (João César Monteiro, com A Comédia de Deus, considerada a sua obra-prima; Teresa Villaverde, com Os Mutantes e João Canijo, com Noite Escura, e um êxito de bilheteira, o Tentação, de Joaquim Leitão, filme que contou com um novo tipo de parceria - que parece ter vindo para ficar enquanto aposta comercial e capaz de dar grande difusão aos filmes - entre a produtora, distribuidora e um canal de televisão privada.

Diz a autora coordenadora desta obra que, neste momento, «o cinema participa na discussão sobre o rumo de Portugal para uma nova identidade europeia, porém, com um legado extremamente autoritário». Cremos que este imprescindível livro terá um papel importante nas reflexões e, pela frutificação delas, quiçá, na definição desse percurso de identidade. A adquirir antes que desapareça do mercado.

Cinema Português através dos Seus Filmes – Vários Autores – Carolin Overhoff Ferreira (coordenação); Editorial Campo das Letras, Porto, Julho 2007

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 14 de maio de 2009

«O Amor Infinito de Pedro e Inês»

Editado no cair do ano de 2005, quando se concluiam as celebrações nacionais dos 650 anos da morte de Inês de Castro, «O Amor Infinito de Pedro e Inês» de Luís Rosa voltou a ser relançado, neste ano de 2009.

A Paixão trágica de Pedro de Portugal e Inês, que se transformou no mito que tem preenchido o nosso imaginário colectivo, devido à recriação literária de Camões ao cantar a história crua da «mesquinha que depois de morta foi rainha», tem neste romance uma nova porta exploratória: a porta grande da meditação sobre o amor e a loucura: «Não sei se se ama alguém com loucura, ou se se ama a loucura por motivo de alguém»; a porta da reflexão maior sobre o tempo e o seu compromisso com a palavra escrita: «O vento faz o seu caminho e o apaga na passagem. Só o homem tem sempre vontade de voltar ao impossível».

A história da «larga rua da vida» com memória perene inicia-se no dia da loucura, o dia de «terminação aziaga», 7 de Janeiro de 1355, dia da morte de Inês, a dama do «colo da garça». Sendo o amor trágico dos amantes a acção central da narrativa, a urdidura reconstrói a época com densidade psicológica e envolvência reflexiva: «Cada tempo tem os seus ódios próprios e as amizades convenientes. E também as suas coincidências. Branco e negro como o lado do ser e do seu oposto. Aquilo que o homem é. Um pequeno mundo onde se trava a luta do bem e do mal.». As lutas fratricidas pelo poder entre Castela e Aragão assombravam Portugal, agora por causa de Inês de Castro, nome maldito que iria enredar este país naquela «teia interminável». As analepses estruturam e explicitam o enredo. As prolepses definem-lhe o sentido futuro.

A desmesura de Deus e dos homens…

Em torno deste episódio trágico pululam mitos e lendas que muitas vezes se sobrepõem à verdade histórica. Todavia, defende-se, «a lenda é o que fica da vida. E a própria vida é uma lenda que se vai amplificando para além da morte.». A narrativa aponta para um destino onde confluem a desmesura de Deus e a desmesura dos homens. Fala assim, o belo texto: «o amor é esse voejar incerto por um céu de fragilidades errantes. Nunca se sabe onde há mais horizonte aleatório, nem onde existe força para voar no espaço vacilante. Apenas se sente a liberdade de estar preso, e não ser capaz nem querer romper as cadeias de tudo e nada.»; «Às vezes, para descobrir a verdade basta abrir os olhos. Pelo caminho ficam os actos em pedaços. Só no fim do caminho longo se juntam os pedaços e se vêem à distância as cores da insensatez.».

Pedro decidiu viver o seu amor: «a vida é breve. A alma é extensa e vária. Vive-se de acordo com o modo que os outros querem ou segundo a escolha da sua própria construção. O viver? É essa a relatividade das coisas. Para Pedro a vida vivia-se desmesuradamente. A justa medida é apenas o modo de apaziguar o louco que há dentro de cada um. Só um grande amor entende os limites que não pode ter para ser grande.».

Pedro, «rei excessivo, tão grande quanto infeliz», tartamudo, «temeroso em assuntos de transcendência», que fizera da justiça o ceptro da governação, neto de D. Dinis - o rei Trovador, o que teve a «premonição dos poetas e a epopeica visão do mar» -, e neto de Isabel de Aragão - a senhora que o povo fez santa -, deixava, além dos filhos de Inês, um filho de uma galega, Teresa Lourenço. Chama-se João, tal como o filho mais velho de Inês. Com seis anos, foi nomeado, Mestre de Avis, rodeado de monges e cavaleiros, «sob o olhar zeloso do D. Abade de Alcobaça, como se ali fosse o futuro do mundo». Era esse menino que perguntava se podia entrar pela «Porta do Mundo», Ceuta, o portal cobiçado. O tempo havia de «joeirar a escolha». O futuro histórico iria dar a resposta ao magnânimo menino e ao povo português.

«O rei Pedro de Portugal ia a caminho do fim dos seus dias. Caminhara em poucos anos um caminho longo e um amor infinito. De tudo o que era perene deixaria a lembrança desse grande amor e aquele menino, Mestre de Avis, a quem o destino sorria. Mas os homens que semeiam o futuro são assim. Um bocado de tudo e um pouco de nada. O excesso numa das mãos e a contenção na outra. O infinito é isso. O que existe e não existe, ao mesmo tempo.».

«A porta do mundo» de Luís Rosa

A narrativa ergue-se com uma prosa poética engenhosa, encantadora e encantatória, pejada de imagens, sons, cumplicidades: «porque não havemos de inventar palavras? Entendê-las pelo caminho dos sons e levá-las até ao limite, para ver se alargam o pensamento». É a emergência da criação, das palavras que «dentro de nós esperam para serem ditas». «Estranha coisa é o tempo que de vez em quando acorda e quer mostrar o tempo dos tempos», lê-se. Magnífica literatura esta que nos acorda as veias do tempo que nos compõe, acrescento. Ainda: «O tempo é como um livro de uma palavra só. Lê-se com todos os sentidos que contém ao virar das folhas. São as folhas que passam. Permanece o entendimento. (…) Restamos nós, interrogantes, rasto do que foi e é, à espera da palavra de amanhã.».

Conclua-se, então, que «O tempo é apenas uma aparência. O espírito sopra onde quer, quando quer. O que deve ser feito é que procura o tempo próprio. Não como os homens julgam. Imediato é o homem e a sua dimensão das coisas. Perene é o destino.». Perene será, certamente, a criação deste autor. Tal como Bartolomeu de Molianos o artífice que «prendia as almas» na pedra calcária branca e que esculpiu as narrativas do amor infinito nos túmulos de Pedro e Inês, em Alcobaça, também Luís Rosa, nascido em Alcobaça, deixa-nos esta narrativa de 195 páginas capaz de cinzelar muitas almas.

O Amor Infinito de Pedro e Inês, Luís Rosa; Editorial Presença, Lisboa, 2ª edição, 2009

(to Artur)

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 12 de maio de 2009

Encontros com a Luz - Pinturas de Adão Cruz

«A minha pintura procura desnudar a própria sombra», diz Adão Cruz, médico cardiologista, ficcionista, poeta e pintor nascido em 1937. A pintura de Adão Cruz é «o canto da arte e da vida», disse o poeta Albano Martins. Para o conferir, ver, sentir e ouvir aquela «espécie de expressionismo ficcionista do sentimento» que nega a ditadura do tempo, temos o belíssimo e majestoso álbum «Hora a hora rente ao tempo», editado pela Campo das Letras, e a procurar urgentemente.

São sessenta e duas pinturas, distribuídas por outras tantas páginas feitas galerias de revelação indiscreta das nossas emoções, sentimentos, quimeras, frustrações, inquietações mais secretas que nos acordam, interrogam e reestruturam, possibilitando-nos uma experiência vivencial imperdível.

Precedendo as imagens, Adão Cruz apresenta um texto de reflexão sobre a Arte – preferindo designá-la por sentimento artístico –, sobre o que ela transporta e como deve ser recepcionada. Enquanto médico, remete uma possível definição a ser dada, um dia, pela neurobiologia; enquanto artista, recusa-lhe a amarra da definição e prefere deixá-la à sua natureza, soltá-la para que se cumpra em liberdade, tanto na liberdade de quem a executa como de quem a contempla: «o espectador deve deixar-se levar pelo que ecoa dentro dele, sem pretender colar-se ao que deve ser, ou àquilo que nos disseram que é ou que lá existe. A obra pode ser o que somos e muito pouco do que lá está.».

Uma utopia de liberdade

Escreve Adão Cruz no poema que abre o Álbum, e a voz do sujeito poético poderia muito bem ser a voz de alguém que observa, escutando-se, as telas do pintor e a partir delas se liberta: «Um dia me darei conta /do teu corpo infindável. /Um dia me darei conta /do tempo que não se perde para lá das formas /do tempo em que não murcham os rebentos /cálidos da minha carne /e o sangue não perde o fulgor /das cores abertas ao sol. /Um dia me darei conta /e nesse dia gostaria de partir.».

Tomar consciência e libertar-se, compreender e tomar a vida, sentir e comprometer-se na luz das novas emoções são os impulsos transmitidos ao espectador da obra de Adão Cruz.

São-no perante o abraço da mãe à criança ou o abraço do casal – a um mesmo tempo seguro e protector, intimidado e transitório –, na massa humana que reivindica a sua liberdade ou grita o seu sofrimento, no homem que trabalha semeando ou desfazendo a sua vida, mostrando-nos o chapéu que lhe esconde o rosto ( ver imagem).

A Arte é a descoisificação das coisas: «Os materiais em si são inertes. Mas ganham vida ao mais pequeno movimento», diz Adão Cruz, especificando: «a tela, os pincéis, as tintas são coisas que vão perdendo a sua natureza de coisas, à medida que as coisas vão sendo trabalhadas se vão transformando em imagens e em vivências».
Diz o pintor que a Arte é uma «criação mental gerada a partir das coisas da Natureza, transformadas pelo mundo interior do artista e plasticamente traduzidas em beleza por mãos ensinadas quer geneticamente quer de forma adquirida, só ganha vida se correr pelas suas veias o sangue da poesia. Por isso eu digo que a poesia é a alma de qualquer obra de Arte.»

Por isso, «a Arte é uma relação de vida»: ela é sempre uma «prática de meditação, uma tomada de consciência, a livre expansão de nós mesmos, inteligência viva, diálogo e libertação das forças vitais dentro de uma disciplina ética. Dito de outra maneira, a Arte é sempre impacto, desconcerto de espírito e agente de transcendência das formas físicas e de mudança das formas de ver e pensar.».

Hora a hora rente ao tempo, Adão Cruz; Editorial Campo das Letras, Porto 2007

página de Adão Cruz, AQUI

© Teresa Sá Couto

sábado, 9 de maio de 2009

Práticas jornalísticas em «derrapagem ética»

«Não há maneira de impedirmos pessoas sem escrúpulos de fazerem coisas más. Mas tem de haver uma maneira de as apanhar mais rapidamente – particularmente quando deixam tantas pistas», disse Rider, em 2003, sobre Jayson Blair, um jovem jornalista que durante anos cometeu fraudes informativas a partir do grande bastião do jornalismo mundial, o NYT, originando um escândalo inaudito nos EUA - e com ecos fora de portas –, seguindo-se um longo debate sobre o ofício de informar. Às vezes, o jornalismo também se torna notícia e «nem sempre pelas melhores razões». Este é o enfoque do livro «Casos em que o Jornalismo foi notícia» que colige textos de diversos autores para propor ao leitor a reflexão sobre se a crise do jornalismo é uma crise de morte, renovação ou crescimento.

Concebido e produzido no quadro das actividades do projecto Mediascópio, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, este novo livro da colecção Comunicação e Sociedade, com a chancela da Campo das Letras, é mais um trabalho de alto contributo para o actual debate sobre a diversidade, necessidade, credibilidade e qualidade da comunicação e dos media.

O livro é organizado por Manuel Pinto (provedor do Leitor no Jornal de Notícias, onde também foi jornalista, director de cursos de mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, investigador e professor de Sociologia do Jornalismo e Educação para os Media) e Helena Sousa (Vice-Presidente do Instituto de Ciências Sociais e Vice-Presidente da Secção de Economia Política da International Association for Media and Communications Research, Professora Associada do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da mesma universidade), e inclui, ainda, textos de Manuel Pinto, Helena Sousa, Eduardo Cintra Torres, Joaquim Fidalgo, Hália Costa Santos, Madalena Oliveira, Sandra Marinho, Sara Moutinho, Felisbela Lopes e Luís António Santos.

Práticas em «derrapagem ética»

Grandes acontecimentos de «cunho trágico e traumático» amplificados e recriados pelo jornalismo (com artigos sobre o «11 de Setembro» e sobre a queda da Ponte de Entre os Rios), escândalos relacionados com práticas de informação (os casos de pedofilia na Casa Pia) e «processos extra-jornalisticos» que contaminam o espaço informativo (os reality shows) são os três tipos de situações, profusamente documentadas, que servem de metodologia à reflexão: práticas jornalísticas em «derrapagem ética» coabitam com o exercício profissional do jornalismo provando, por sua vez, que este é «cada vez mais relevante e necessário».
Joaquim Fidalgo, ao abordar o caso do escândalo no jornal NYT, transcreve o juízo contundente de Carey, pronunciado na altura (2003):

«O fosso entre ideais professados e práticas encorajadas é precisamente aquilo que um sociopata explora. Essas personalidades são especialmente capazes de retirar vantagem da fraqueza e da vaidade de organizações e de indivíduos, de saber quem precisa de ser bajulado e de que modo, e que caminhos podem ser atalhados com segurança. Eles reconhecem o poder de um segredo bem guardado: a cultura do jornalismo professa lealdade à verdade, minúcia, contexto e sobriedade, mas de facto recompensa a proeminência, a “cacha”, o destacar-se da multidão e a narrativa capaz de fascinar. Os sociopatas acreditam que só estão a dar aos seus superiores aquilo que é secretamente desejado. (…) o número de jornalistas assim arrisca-se a ir aumentando, no mundo que estamos a criar. (…) Os sociopatas, em toda a sua anormalidade, dão-nos novamente lições sobre os mistérios mais recônditos do normal».

Segundo Joaquim Fidalgo, é «sob a capa do normal que se escondem, hoje, algumas das mais preocupantes anormalidades»: as «(a)normalidades» de jornalistas, do sistema mediático e da relação jornal-leitor. Ainda segundo o autor, este caso americano «suscita a reflexão sobre os limites, as fronteiras e as articulações entre a responsabilidade individual e a responsabilidade colectiva no que toca ao exercício concreto do jornalismo».

Blogosfera – a ferramenta indispensável

O livro dedica ainda espaço para a reflexão sobre o fenómeno dos blogues, «a mais utilizada das ferramentas de auto-edição» que se tem vindo a converter «numa das plataformas mais salientes de questionação do jornalismo, seja como espaço de debate, seja como terreno de escrutínio, seja ainda como ampliação da informação pública e respectivo comentário.» Por outro lado, referem os organizadores do livro, a blogosfera representa, «para os media “tradicionais”, uma nova e surpreendente fonte de sugestões e de informação», com os media e os próprios jornalistas a recorrerem, «em muitos casos, aos blogues para neles dar conta dos bastidores das notícias ou dar azo a um maior diálogo com os cidadãos.».

Casos em que o jornalismo foi notícia, organização de Manuel Pinto e Helena Sousa;
Editorial Campo das Letras, Porto, Abril 2007


© Teresa Sá Couto

domingo, 3 de maio de 2009

«O Homem que Julgou Morrer de Amor»

O Homem que Julgou Morrer de Amor é o romance de estreia de Manuel Jorge Marmelo, editado em 1996. Uma «excelente novela», segundo Mário Cláudio, que em 2006 surgiu em segunda edição revista, reescrita e depurada, zelos do seu incansável autor.

Comummente considerada uma história de amor, esta novela é, principalmente, uma história sobre os demónios do ser humano, que entrevemos na missiva de Goethe: «Somos os nossos próprios demónios, expulsamo-nos do paraíso»: Transímaco ama Helena – um amor impossível porque ela é pertença de Sócrates – e ama a justiça – um amor frustrado porque em Atenas grassa a corrupção. As duas impossibilidades de amor conjuram a destruição da razão e alma de Transímaco que acaba por se suicidar. Todavia, esta é mais um capítulo da história de um outro amor maior e, este sim, feliz: o amor de Manuel Jorge Marmelo pela escrita, amor arrebatado, humilde e zeloso comprovado na produção contínua que tem fidelizado sempre mais leitores.

«A vida tem, na verdade, um rumo definido, como o dos rios. Mas sempre há um ponto, nesse curso, em que o relevo das montanhas permite que as águas se bifurquem. É então que cabe ao homem escolher qual dos caminhos tomar», diz o sacerdote do templo de Apolo a Transímaco, um dos mais respeitosos advogados atenienses, orador de excepção que pasmava a plateia da Ágora argumentando «como se litigasse uma qualquer coisa». Fazendo da Justiça o seu estandarte, Transímaco acusava Sócrates e Platão de não a praticarem, e de minarem a cidade e a pátria com «palavras vãs». Mas, disse-lhe o mesmo sacerdote: «A justiça é apenas um dos elementos de que a razão é composta na mesma proporção em que a injustiça a integra. E o mesmo sucede entre o coração e a cabeça, que repartem igualmente o espaço que a razão lhes reserva.». No coração de Transímaco, onde estava instalado o amor pela Justiça, tatuava-se o amor por Helena, escrava de Sócrates, outrossim o ódio pelo velho filósofo.

O correr da escrita, enformada por uma prosa poética límpida e com admirável plasticidade, ilumina-nos os degraus da queda do jovem e, por eles, a reflexão sobre os desmandos dos homens: «um homem que, de noite, caminha sozinho e nada vê, já se sabe, leva a cabeça livre para todos os pensamentos, os mais amenos e também aqueles mais ásperos, conforme for a sua predisposição para matutar nuns e noutros». E Transímaco «ora suspirava por Helena, ora espumava de ódio a Sócrates»; «esforçava-se para recordar o rosto de Helena, mas eram as frases de Sócrates que lhe ocorriam», e logo define a sua missão: «libertá-la-ei ou pagarei o meu fracasso com a própria vida», pois é justo matar Sócrates para libertar Helena. Mas não é justo «construir o edifício do amor sobre a dor da morte», diz-lhe Helena.

Górgias, Sólon, Meleto e Hipofonte, são nomes grandes do pensamento da Grécia antiga convocados com mestria para o enredo ficcional de Manuel Jorge Marmelo.

Ser homem e lobo...

«Algo há que nos move e impele – mas muitas vezes, sabemo-lo, somos pouco mais do que autómatos obedecendo a misteriosos desígnios. Chame-se destino ou fado a essa pulsão, ela não será mais do que desvario, loucura, teimosia. O homem é uma máquina cruel e destrutiva». Assim fala o narrador, falando por Hipofonte – o sábio que cegara por excesso de realidade ou «para perder de vista tudo o que sobre os homens aprendera» – que, por sua vez, se dirige a Transímaco dizendo que o jovem advogado «sofria de amor, ciúme e de ódio, o que vem a ser, quase sempre, a mesma coisa».

Na busca dos demónios humanos, o mesmo narrador, não participante, mas omnisciente, e também ele – à semelhança de Transímaco – com a arte da persuasão, instiga o leitor a reflectir sobre a coexistência de duas naturezas no homem: o espírito e o instinto; a natureza humana, que nutre ideais humanos, e a natureza lupina, feroz e selvagem: «o homem é, de entre todos os animais, aquele que mais se assemelha ao lobo»; deixe-se que ao homem dócil «se avilte e observe as desarmonias da natureza e as imperfeições do mundo; que se encerre», «remoído pela fome e pela saudade de um amor proibido» e o homem transfigura-se num ser selvagem, «uma besta capaz de eliminar todos os obstáculos».

Sem conseguir domar os sentimentos, sublimar o amor, Transímaco deixa à solta a sua natureza selvagem e o Eu tende para a destruição, patente numa «pulsão qualquer que lhe afogueava o rosto e lhe humedecia as entranhas» e na ideia fixa e sinistra de matar Sócrates para libertar, para si, Helena. Inapto para executar o golpe fatal, o suicídio afigura-se-lhe uma saída de emergência para a vergonha pela sua incapacidade. Ele que, antes, do alto da colina com vista sobre Atenas, pensou, ou o narrador por ele, que «enquanto pudesse recordar aquele primeiro vislumbre de Helena, seria incapaz de morrer», e no instante da morte «ocorreu-lhe que morria por amor». Conclui o leitor sobre a “ilusão” da personagem: matar-se significaria que o amor por Helena também teria morrido, subtileza patente no título deste romance, de narrativa aberta que permite ao leitor deter-se "no final proposto" para o moldar segundo os sentidos da sua leitura.

E onde fica a justiça? Diz-se do Deus Cristão que «escreve direito por linhas tortas». O mesmo se pode dizer aos Deuses Pagãos desta Grécia antiga: enquanto o jovem Transímaco se enforcava na Oliveira da colina com vista para Atenas – muito, como se viu, por móbil de Sócrates –, a cidade condenava Sócrates por «corromper a juventude», o que o levou a beber a cicuta fatal. Por outro lado, o elemento feminino, símbolo da fecundidade e, por isso, de inícios – parece sair vitorioso: Helena fica livre e Atenas, sem dois dos seus grandes oradores, pode soltar as águas do bem… ou do mal….


O Homem que julgou Morrer de Amor, Manuel Jorge Marmelo, 2ª edição; Editorial Campo das Letras, Porto, 2006

© Teresa Sá Couto