segunda-feira, 15 de março de 2010

Uma questão de gatos

«Ser ou não Ser um Gato é uma questão» e aqui a questão é artística. Refiro-me ao pequeno livro Só à noite os gatos são pardos que reúne 43 autores à volta da temática destes animais, com textos inéditos de poesia e prosa. A organização cabe a Jorge Velhote e Patrícia Pereira para uma edição Cantinho do Tareco - Associação de Protecção Animal.

As palavras contidas nas 73 mágicas páginas são semafóricas, sorrateiras, matreiras, ronronantes, acudindo à matéria felina que edificam. São retratos humanos dos gatos, entenda-se, sendo este entendimento a consciência do carácter esquivo e insubmisso do gato, ser «livre, invisível e alado, capaz de estar vivo e ainda assim não deixar rasto», como escreve Sara Canelhas no belo Prefácio.

Nos processos de construção da palavra estão a memória, a fantasia, a cumplicidade, o testemunho, e sempre a ideia do animal como um enigma fascinante. Na janela com escritos / o gato espera, escreve António Barbedo no poema minimalista; e sorrimos assentindo, porquanto escrever os gatos será sempre tarefa inacabada.
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As ilustrações de Ricardo Ayres – que podem parecer discretas, todavia são marcantes - intentam fixar momentos expressivos dos gatos, no seu quotidiano; o propositado movimento do traço sugere-nos o desdém dos animais por qualquer tentativa de o agrilhoar numa imagem.

Assinam os textos: A. Dasilva O., Alexandra Malheiro, Amadeu Baptista, Ana Luísa Amaral, António Barbedo, António Ferra, António José Queirós, Aurelino Costa, Bruno Béu, Carlos Lizán, Carlos Poças Falcão, Cristina Carvalho, Diogo Alcoforado, Fernando de Castro Branco, Fernando Echevarría, Francisco Duarte Mangas, Gabriel Mário Dia, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Lourenço, Isabel Cristina Pires, João Manuel Ribeiro, Jorge Velhote, José Álvaro Afonso, José Emílio-Nelson, José Leon Machado, José Miguel Braga, José Viale Moutinho, Luís Filipe Cristóvão, Luísa Ribeiro, Maria do Carmo Serén, Mário Anacleto, Nuno Dempster, Renato Roque, Rosa Alice Branco, Rui Amaral Mendes, Rui Lage, Sara Canelhas, Soledade Santos, Tiago Worth Nicolau, Teresa Tudela, Vergílio Alberto Vieira, Victor Vicente e Vítor Oliveira Jorge.

Transcrevo dois poemas, numa escolha difícil:


Os gatos da minha mãe

Os gatos da minha mãe caminham
sobre as margens das coisas simples.
Não vão à praia. Sinalizam
a preguiça invadindo silenciosos
o regaço das visitas. E escutam,
privilegiados, obscuras conversas
sobre desnecessidades ou
invasivas devassas alheias.
Olham soberanos o nosso
olhar onde passam
obrigatórios como sombras
ou luz – e quando regressam
com passinhos de veludo
dos seus desvairados lugares
traduzindo a nossa ignorância
instauram a evidência, o conhecimento
fortuito, os limites imputáveis
à ternura com que, sedosos
e felinos, se deixam afagar.

Apenas não arborescem.

Jorge Velhote, p. 37


O gato que me fugiu

Era um gato fininho
como os gatos egípcios
e tão altivo
que diria ter sangue
de Nefertiti,
e tão dourado
que parecia a imagem de Bastet,
a deusa-gata.
Entrou-me pelo sonho sem ruído
e passeou por mim
sem fazer caso algum
do meu espaço.
Às vezes ronronava,
roçando-se,
e pedia comida e não comia.
Quem sabe fosse
um gato intemporal,
espírito do Delta,
orgulho e porte esquivo
que não se alimentava
senão dos grous em
poemas do Antigo Egipto.
O certo é que deixei de vê-lo
e, quando despertei,
soube que não havia hipótese
de ele voltar
por causa do ladrar dos cães.
E assim este poema
tornou-se em elegia para o gato
que não terei
e a que já tinha posto
até um belo nome. Faraó.

Nuno Dempster, p.p. 50,51


notas:
agradeço ao poeta Jorge Velhote a generosidade pelo envio deste livro.

Na sequência dos muitos pedidos de esclarecimento sobre como se adquirir este livro: pelo endereço cantinhodotareco@gmail.com. O valor unitário é de 7,50 €

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