sexta-feira, 20 de julho de 2012

Meditações Sobre o Fim

Este texto serviu de base à minha Apresentação Pública e foi editado no sítio da Orgia Literária.


Últimos poemas  

 
E se os poetas fossem chamados a cinzelar os últimos três poemas antes de morrerem? Ao desafio da nova editora hariemuj responderam 38 vozes que redigem, preto no branco, a sua conjura contra a morte. Juntando-se à plêiade dos conjurados, João Mota, que assina o grafismo de Meditações sobre o fim, esparge níveos lírios sobre a noite escura. O resultado é uma obra caudalosa, de águas profundas pejadas de ecos, a evidenciar que a palavra, no seu movimento perpétuo, é uma forma de enganar a morte pela sua emenda, a desafiar-nos para os versos de Herberto Hélder: «Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar // - a morte é passar, como rompendo uma palavra, /através da porta, /para uma nova palavra.».



(imagem da sessão da apresentação: da esquerda para a direita, João Mota, eu, Maria Quintans e André Gago)
 
A Antologia aloja desde autores nunca antes editados a autores com vasta obra publicada, vários níveis de qualidade literária, diferentes sentidos estéticos, diversidade que confere unidade à obra; é, aliás, em busca dessa unidade que segue este meu texto.
 
Talvez por observar a conspiração de vozes, a editora e poeta Maria Quintans refere, na abertura, que os poetas «fazem passeios pelo futuro». Com efeito, em Meditações sobre o fim versa-se o futuro, casa que a palavra quer habitar. Certamente por isto, e porque «as ideias do futuro estimulam-nos a vivificação, por isso todo o pressentimento é alegre», na formulação de Novalis, é raro encontrarmos o pungente e são banidos o macabro e o mórbido. Corre amor e morte na «tinta violeta» dos poemas de João Barrento, onde o eu poético, preparando-se para partir, se assume «sem nome /nem origem /no branco de lírio /da orgia /da despedida»; Casimiro de Brito menciona «a bagagem delicada que já se prepara /para outro salto - // a morte não existe.»; Pablo Xavier Pérez Lopes dá-nos um «Epitáfio Provisório», um epitáfio que é uma epígrafe, inscrição altaneira, estimulante e rebelde: «Aqui jaz um poeta esquecido/ escrevia como quem ama a morte»; Ricardo Tiago nomeia a morte como invenção: «quando me cruzar com a morte /vou saber inventar-lhe um poema /…/ e dizer todos os começos /que não soube explicar»; por sua vez, Joaquim Cardoso Dias acende a luz no «Quarto escuro»: «Tento acender outras imagens devoradas pelo tempo /E sei que é por tua causa /que esta noite existe e se repete /a vida inteira»; também sabendo que a missão do poeta é encontrar o que está escondido, iluminar os esconsos da alma, surgem, inundadas de ecos, as mãos azuis do poema de Bruno Béu: «a mão manifesta: /quando manifesta, esconde./…/ vinha pelo vitral , /o azul nas mãos /…/ e lá atrás /do som, do êxtase, vitral, da simetria /escondido, só um mesmo movimento /de um homem pequeno no fole.».
 
Na peugada da luz, surgem meditações sobre a efemeridade dos seres e das coisas, e nomeiam-se símbolos da corrosão: João Camilo especula sobre a passagem do tempo, «O carro funerário do tempo», o «comboio que pára em estações da memória», grita que «Não renunciamos à lucidez» e pergunta: «Quem, se pudesse, teria /preferido não viver? Quem, se pudesse?»; Duarte Braga aborda «os selos» do corpo rápido: a velhice, a doença, a morte; João Bosco da Silva ateia, à maneira de Pessoa, um “ensaio sobre o cansaço e a asfixia”, enquanto que Leila Andrade refere que «o grifo do tempo é inevitável». 
 
A luz capaz de mover consciências e as fazer actuar em cidadania é que o pede a inscrição de Nicolau Santos: a luz de uma grande razão para um país que se afunda na treva, que morra a morte actual, para que haja vida: «Falta-nos por aqui uma grande razão / como diria o Cesariny /…/ um motivo, um anseio /um desejo fortíssimo /um desígnio, uma visão /falta-nos um punhal brilhantíssimo /para liquidar esta vida de conformismo /de rotina sem ambição».
 
Ainda que noutra vertente, Joana Serrado também refere a morte necessária para que a vida aconteça: «as árvores que são abatidas para que o meu livro nasça».
A mostrar que somos água e que a lágrima humaniza-nos, Ana Hatheely apresenta três breves belíssimos poemas, numa corrente de três gerações:
 
I
A mãe que eu mal conheci
Não sei se era feia ou bela
Não me lembro dela.
Por isso quando morreu
Não tive de chorar por ela.
 
II
Quando a minha filha morreu
Chorei.
Chorei muito por ela.
 
Inutilmente.
Chorando não conseguia revivê-la.
 
III
Chora
Peço-te:
Chora por mim agora
Se eu morrer
Não sei quem por mim chora!
 
Com a história do corpo desagregado, experiências e estremecimentos, Benécdicte Houart refere que o poema é a verdade a permanecer e que há-de ser reclamada, o que se entronca no escrito por Jorge de Sena, no poema Cessação, onde se fala «no fim que não acaba», pois o poeta e a sua cantiga sonharão na treva, ideia construída com a imagem de um fósforo em que «faúlhas correm/ serenamente, até que um fumo sobe /e vago vai subindo e já não está /aonde o fogo foi e não existe».
 
Maria Sousa, com os versos «quando as palavras te morrem nos lábios /fica um hálito frio de poemas a ruir /na distância de um percurso traçado a pó», assume o carácter polinizador das palavras, e evidencia a transmigração, próximo do «voo, o meu pó será o que sou», de Jorge Luís Borges. É ainda neste sentido que encontro os versos de Inês Fonseca Santos: «cultivar sobre o asfalto uma palavra. /Deixá-la florir…». Finalmente, Filipa Leal detém-se na «suspensão do adeus», já que a palavra não diz adeus porque nela fica o coração, pois, e na expressão de Novalis, «O coração é a chave do mundo e da vida».
 
A editora hariemuj – palavra árabe, invertida, que significa alegria – traz-nos em meditações sobre a morte o júbilo da palavra, o primeiro grande argumento para lhe desejarmos uma longa vida.
 
 
Lista de autores presentes na antologia, AQUI.



© Teresa Sá Couto

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