sábado, 9 de agosto de 2008

O Reino de Gonçalo M. Tavares

Fim da tetralogia sobre a decadência do Reino humano
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Numa era em que os indivíduos são mais reconhecidos pelas capacidades técnicas do que pelos valores humanos, haverá lugar para a espiritualidade? Na engrenagem mecânica do homem que, com movimento incessante e controlado, avança na conquista do poder sobre os outros, haverá lugar para o aperfeiçoamento moral? Numa sociedade que exige a destreza técnica, qual o lugar dos inaptos? Que dor e que morte são permitidas?

Fortíssimo, no centro do seu Reino, Gonçalo M. Tavares levanta-nos todas aquelas questões em Aprender a Rezar na Era da Técnica, título que fecha a tetralogia dos seus Livros Pretos sobre os subterrâneos da alma. Corolário da dissecação humana, o romance plasma a posição de Lenz Buchmann no mundo, reputado cirurgião de mão direita exímia no bisturi e que, por isso, não precisa de ser «um homem bom». São 375 páginas de desassossego, divididas tematicamente em três grandes partes – «A Força», «Doença» e «Morte» –, cada uma com subdivisões minudentes; uma execução da narrativa em fragmentos, característica da escrita de Gonçalo M. Tavares, que faz de cada subdivisão um golpe cirúrgico na alma de quem lê. (Ver entrevista da Orgia Literária a Gonçalo M. Tavares)

Aprender a Rezar na Era da Técnica vem juntar-se aos veementes Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser e Jerusalém. Na sequência destes títulos - onde se inclui, também, o Água, Cão, Cavalo, Cabeça -, o autor executa a narrativa a partir de centros de irradiação que configuram a decadência do Reino humano, pelo que cada livro é um capítulo de uma tese maior sobre o homem: a relação entre o pensamento e o corpo, a vontade e a mão que a executa, a ideia e a cabeça que lhe dá forma, e a incapacidade do acto quando o corpo entra em falência.

O poder alimenta-se do medo
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Perturbante, o texto desperta-nos para a técnica das mãos que nos manipulam e para as ideias que exploram as nossas fragilidades. Habituado a dominar, Lenz Buchmann vê na actividade política uma nova escala da sua técnica, outra ciência que não a médica, com a vantagem do «número de pessoas que conseguia agora influenciar – ou mesmo tocar, no sentido físico, no sentido do bisturi que interfere no tecido». Fascina-o a forma reverente e subserviente com que os cidadãos cumprimentam o Presidente da câmara da cidade, «um fenómeno mágico que o levou à decisão de entrar para o Partido «e lutar por conquistar os lugares mais altos», «operar a doença de uma cidade inteira», «sentir o prazer de dar aquela comida estranha que o poder dava aos seus soldados e funcionários, aquela comida de energia quase mágica, comida que saciava os estômagos da população de um modo não material, mas igualmente eficaz».

Dar-lhes «algum pão e algum medo», numa engrenagem que se quer com movimento contínuo, defende Lenz nas suas estratégias discutidas com Kestner, o presidente do Partido: «seremos tanto mais fortes quanto mais conseguirmos infiltrar na população esta mistura: movimento rápido e temor. Não os deixar parar para que não deixem de ter medo. Não deixar de os amedrontar para que não parem»; «Havia, portanto, dois medos, e não apenas um. O primeiro medo arrancava as coisas da sua imobilidade e o segundo, o mais poderoso, mantinha as coisas em movimento».

Lenz conhecia as divisões do medo, pois preparou-se contra ele em miúdo, tendo por mestre o pai, que idolatra e cujos ensinamentos aprimora. Militar, o pai fechava os dois filhos à chave num compartimento da casa vazio e escuro por cometerem «a ilegalidade de mostrar medo»: «perder tudo: perder a razão, perder o domínio». Lenz «aprendeu a existir assim. Preparou-se, cresceu, tornou-se forte»

A técnica na vertigem do domínio

Brutal, o texto dá-nos a técnica calculista de um indivíduo de inteligência e cultura raras, mostrando-nos que a natureza racional do homem é a sua grandeza e o seu drama. Se a dialéctica mão-utensílio favorece o desenvolvimento cerebral, Lenz vê na caça e na lei do bosque as premissas de execução do Reino a que «jurou lealdade, o Reino de quem ataca e de quem sabe que há elementos que se preparam para o atacar»: «existências eram, afinal, peças de caça, num resumo extraordinariamente sintético também das relações humanas». Mais: segundo Lenz, «o lutador não abdica à vontade do outro; isso é fraqueza, e fraqueza é doença. A justiça não é um conceito humano mas numérico.».

Segundo Edgar Morin, a caça fez o hominídeo «hábil e habilitado», espevita a inteligência porque faz o homem «lutar com aquilo que há de mais hábil e de mais manhoso na natureza, o animal presa e o homem predador, pois ambos eles se dissimulam, esquivam, enganam. Leva-o ainda a encontrar e a entrar em concorrência com tudo o que há de mais perigoso: o grande carnívoro. A caça estimula as aptidões estratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a audácia, a manha, o logro, a armadilha, a emboscada.».

Com o mapa de combate estendido na «mesa do seu mundo», sua razão de existir, Lenz define a sua posição perante o adversário, procura a presa grande, enforma a ambição, impulsiona-a com o desprezo pelo outro, com «Vingança e ódio, esses afectos recônditos de combustão lenta», como disse Nietzsche, mas também a inquietar-nos com outra verdade humana, dita assim por B. Russel: «a vida perderia o seu sabor se não houvesse ninguém para odiar».

Lenz, para quem «a competência não se define com o coração», está no centro, pois «o centro tem tudo», é no centro que está «o início da explosão». Para isso, «contabiliza os pontos decisivos do próprio corpo»: «em primeiro lugar a cabeça», o «crânio, aquele conjunto de ossos que protege o instrumento de percepção do mundo» e onde abundam «capacidades e desvios surpreendentes». Porém, «o importante é o caminho central: o cérebro serve para não nos deixarmos matar. Exige habilitações máximas aos nossos inimigos. (…) O cérebro, visto de perto, e entendido profundamente, tem a forma e a função de uma arma, nada mais», defende Lenz. Foi a ordem dessa arma interna que o levou a pegar na arma de caça e disparar sobre a própria mulher e sobre um louco, desfazendo-lhes as cabeças.

Duas forças em dessincronização

Verdadeiro tratado sobre a reflexão humana, este romance de Gonçalo M. Tavares instiga-nos à meditação profunda que escasseia nesta era da vertigem técnica, alerta-nos para a falência do projecto da imortalidade e para o facto do valor do homem ser «igual ao de qualquer produto insignificante». Será que só o achamento desta verdade garante a paz interior?

O pai de Lenz ensinara aos filhos que a natureza parecia também «depender de alavancas com a forma da mão humana» e alertara-os para «o momento em que a natureza se torna guerreira», cabendo ao homem, com raciocínio técnico, dominá-la. Lenz tem a vontade, a técnica e o domínio, mas um «mecanismo de degradação», um tumor na cabeça, tira-lhe peso à mão direita que, amolecida, não consegue executar a vontade; a vontade de Lenz de matar o presidente do Partido para o substituir, depois a vontade de se suicidar, como fez o pai que deu um tiro na cabeça quando se sentiu em decadência física: a homens da sua estirpe só uma morte violenta seria permitida; só um fraco morre de forma fraca e morrer de doença é um humilhante sinal de fraqueza.

Assim, «o centro mudava de posição», deslocava-se: Lenz perde, primeiro, as capacidades físicas, depois, mentais, e até o sarcasmo que usava sobre os outros passa a ser usado sobre ele. Há, então, que se contar com dois tempos, que raramente se encontram: o tempo planeado, previsto e o outro tempo, o tempo real, em que acontecem as coisas, o «tempo visível» que não obedece a qualquer mecanismo que o homem controle. A situação de Lenz assemelhava-se à do pequeno rato cinzento, caçado por uma ratoeira, que aparece com a cabeça quase separada do corpo: «duas forças pareciam ter agido sobre ele» e o corpo não conseguiu suportar os seus efeitos simultâneos: «uma força que queria encurtar – talvez a vontade do rato (ou seria a intenção da ratoeira, encurtar?) – e outra força que queria esticar ao máximo.».

«Nos pântanos os motores não funcionam», diz o texto. E Lenz, que «pretendeu a matar os vestígios do Espírito Santo que existem no corpo de cada um», por serem sinal de fraqueza, deixa-se ir na tranquilidade da luz que o chama para o descanso derradeiro.

Aprender a Rezar na era da Técnica, Gonçalo M. Tavares, Editorial Caminho, Lisboa 2007

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Luís Sampaio disse...

Este seu texto arrepiou-me!! Fortissimo!Tenho que comprar o livro!!

Teresa disse...

Aconselho a leitura da tetralogia. E nunca mais se vai esquecer destas leituras!

Abraço
TSC

Luís Sampaio disse...

Vou fazer isso mas vou começar por este porque já tenho orientação :))))
Isto ter quem faça o trabalho por nós é um privilégio!

? disse...

Tou a ler o Jerusalém, assim que o acabar começo esse.