sábado, 20 de setembro de 2008

A blasfémia de Leninegrado

Corria o ano de 1941 e o füher decidia que Leninegrado seria varrida da face da Terra. Com os finlandeses a norte e os alemães a oeste e sul, a cidade morria de fome e frio, lenta e lancinante. De 3,5 milhões de habitantes, sobreviveram 600 mil.

Em «O Cerco», Helen Dunmore pega na frieza da História, enche-a com o sangue, a miséria, o medo, o ódio, o amor e a solidariedade de quem a viveu, e solta a reflexão sobre a condição humana. Cavada no interior da segunda Guerra Mundial, a narrativa erige o tormento humano na luta contra a própria desintegração e o mistério da sobrevivência, durante os três terríficos anos do Cerco a Leninegrado.É também uma história sobre a abnegação e coragem das mulheres que, guardiãs da vida, lutam contra a blasfémia e o aviltamento humanos. Que as palavras sejam, pois, um monumento à memória, a juntarem-se ao Memorial erguido na cidade mártir e à «Sinfonia de Leninegrado» do compositor Chostakovitch.

Anna tem 23 anos e é a heroína desta narrativa, representando a força feminina em tempos de todos os limites. É ela que leva o leitor – primeiro na azáfama com que pedala na sua bicicleta, entre o trabalho num infantário da cidade, o cultivo das leiras, o apoio ao pai e ao irmão Kolya, de cinco anos, depois nas filas de racionamento, faminta e exangue, para sustentar a família – a testemunhar inquietantemente a desdita de um povo subjugado às mãos no nazismo. A palavra é a um mesmo tempo crua e emotiva deixando-nos envergonhados pela barbárie de que o ser humano é capaz. Em quadros literariamente fortíssimos, escorre o estertor psicológico das populações em fuga:

- a debandada, «como as formigas quando se esgravata com um pau no formigueiro»: «Por que motivo alguém revolve o formigueiro com o pau, não sabemos, mas as nossas vidas e as nossas casas ficam viradas do avesso na mesma. É esse o significado da guerra: caos e enganos, e fazer coisas sem compreender porque as fazemos»;

- a devastação: «em toda a parte sente-se o cheiro a queimado; um fumo espesso, acre, sebento, desliza perto do chão, engolindo as pessoas. Casas de madeira estão a arder, ou porque foram bombardeadas, ou porque os donos lhes deitaram fogo quando fugiram. De alguma forma, lá no fundo, eles lembraram-se de que é isso que tem de fazer. Bate em retirada se tiver de ser, mas não deixes mais do que cinzas ao inimigo. Não lhes deixes comida, nem tecto.»;

- a destruição, também, dos campos, com Anna,munida da mesma decisão com que plantou a arrancar todas as plantas: «torce-as até soltar as raízes e atira-as para o caminho. Cebolas boas, cheias de vitaminas», «tira-os da terra. Tudo, todos aqueles alimentos, arrancados da terra revolvida. Seja qual for o invasor, não encontrará nada. A terra não o alimentará»; «quem alguma vez haveria de pensar que as pessoas teriam medo da lua? Agora chamam-lhe a lua dos bombardeamentos, porque é para isso que serve. Mas sempre foi uma lua de colheitas. Numa noite como esta podes trabalhar no campo como se fosse de dia».

Irrompem, ainda, quadros de mulheres onde se pode sentir-lhes «o suor do trabalho e o cheiro acre e forte do medo», juntas a dezenas de milhar a cavar as trincheiras do Luga, «cavam para escapar à morte». Depois, o colapso das trincheiras e o horror em Leninegrado, com ruas e parques apinhados de mortos pela fome e frio, sem que ninguém os recolha. Nesta luta desigual, a família de Anna ferve tudo o que possa ter nutrientes, como pedaços de couro ou cartão, para fazer sopa.

A explicação do Inferno
Com Anna, a única ainda com forças para ir à padaria buscar a ração da qual depende a família, a narrativa mostra o heroísmo da sobrevivência, o milagre de se estar vivo mais um dia. Diz-nos o texto:

«Anna prepara-se para a caminhada diária até à padaria com o mesmo cuidado que uma maratonista. Come o quarto de fatia de pão que guardou da ração e enfia no bolso outro quarto para comer no caso de se sentir tonta. Bebe um copo de água quente com uma pitada de sal. (…) Nem o pão nem as senhas de racionamento são visíveis quando ela regressa a casa pelas ruas geladas. A luz já está a desaparecer. A geada endurece e a ponta da bengala escorrega no gelo. Anna endireita-se, respirando com dificuldade. O suor escorre-lhe pelo corpo, e a ração de pão anda aos encontrões por baixo do sobretudo. Não pode deixar-se cair. Eles estão à espera dela contando os minutos que faltam para o seu regresso.» ;

«Hoje de manhã, no caminho para a padaria, deu consigo encostada a um muro, apoiando-se com a testa. O frio da pedra começava já a entrar-lhe no cérebro, acomodando-se e dizendo descansa, descansa até o frio se tornar quente e te adormecer. O silêncio da cidade envolveu-a, camada após camada. A cidade põe-lhe a mão nos lábios. Escuta. Não vês que estamos todos a dormir? Para quê esfalfares-te nesta luta, se tu também podes repousar? Vem cá. Deita-te.
Mas ela esmagou uma mão-cheia de neve, esfregando-a nos pulsos até deixar de ouvir a voz. Enganou-se a si mesma dizendo que andaria apenas dez passos e depois descansaria. Contou os passos como costumava dizer a Kolya. Um, dois, três, quatro…Quando chegou aos dez, não parou; contou mais dez passos, depois outros tantos, até chegar à padaria
.»;

«Casa. É assim que ambos a chamam agora. A casa não é o apartamento, ou a sala aquecida pelo burzhuika. É o colchão onde de noite se enroscam, com Kolya respirando ao lado deles. Não se beijam. Ela não suspira nem pressiona o seu corpo contra o dele. Já não se desejam. (..) Ficam encostados um ao outro, encolhidos, quietos. A formação de Andrei, (médico) diz-lhe que isto acontece porque os seus corpos esfomeados se fecharam para sobreviver. Os corpos sabem mais do que eles. Se ela não estivesse ali, será que ele conseguiria dormir?».

O Cerco, Helen Dunmore, Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

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