domingo, 14 de setembro de 2008

«Poemas de Deus e do Diabo» nos 107 anos do nascimento de José Régio

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu a 17 de Setembro de 1901, em Vila do Conde. Sobre o seu nascimento, diria: «Quando eu nasci, / ficou tudo como estava, / Nem homens cortaram veias, / nem o Sol escureceu, / nem houve Estrelas a mais... /Somente, / esquecida das dores, / a minha Mãe sorriu e agradeceu.».
Em 1925, ano em que Kafka publica «O Processo», e um ano antes de ser instaurada a censura em Portugal, Régio tinha concluído o seu primeiro livro: «Poemas de Deus e do Diabo». Começava o seu processo de luta singular com Deus, fazendo da palavra a arma estrídula, com que negou o silêncio da resignação. Enganou-se, porém, quando falou do seu nascimento. Não se enganou a sua mãe: com ele nasceu uma estrela imperecível que continua a iluminar a Literatura – Cultura e alma portuguesas.
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Dialogar com Deus através de Lúcifer
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David Mourão-Ferreira diz que «Régio recorre a Deus quando “incompreendido e escorraçado”. Recorre, portanto, por orgulho – e, sendo como é o orgulho uma característica eminentemente diabólica, Régio dialoga com Deus através de Lúcifer. Esta será, talvez, uma das maiores originalidades da sua poesia, a mais inquietante e a mais fecunda.».
Eduardo Lourenço defende que o verdadeiro interlocutor de Régio é o seu duplo, um sósia real: o diálogo com Deus e o Diabo é «um monólogo transparente entre Régio e Régio».
Por outro lado, o próprio José Régio, em «O Jogo da Cabra Cega», dá-nos razões do seu processo e da sua clarividência: «Vi que, ao longo dos meandros da minha corrupção e fraqueza de homem, transportava intacta a minha até então mal conhecida, mas nunca ausente, necessidade de qualquer coisa que me ultrapassasse… Assim, através do conhecimento de mim, se me revelava a humanidade. E assim se me revelou Deus!».
Com efeito, a poesia de Régio, um dos fundadores da revista Presença (1927) e o seu principal animador, desenrola-se criticamente na relação do Eu com a existência e com a existência de Deus no Eu. A relação com os outros, os que lhe volvem a cara, «Uma só cara uníssona de todas – / Com sua simples expressão ignara» é de desencanto e lastimosa constatação. A tristeza que daí advém não é, no entanto, um sentimento mole, antes vibrante porque enraivecido.
Sobre a Amizade, o sujeito assume-se desenganado. Isso deixa-o triste e despeitado, com os outros e consigo. Defende que os amigos não se perdem, todavia perdem-se. Logo, se assim é, há que aceitar que não havia amizade. Os que acreditam nela, são «patetas felizes» que «Ainda podem ter enganos, / E tristes desenganos». Conclui-se que o ser humano é débil gente que, por medo da solidão se enreda no embuste: «Nós julgamos perder / Mal se nos abre a mão; Mal a fechamos que julgamos ter. / Somos bem débil gente! / Dificilmente / Podemos encarar a nossa solidão; ou ver que só perdemos / O que jamais tivemos.».
No poema explana-se o cansaço e a frustração existencial, porém com a energia do inconformismo. Ser com nenhuns abrigos, apenas com a imensidão que Deus lhe abriu no seio, o poeta exangue, lança a tudo e a todos um longo e veemente Adeus: «Pois bem, adeus! – respondo, enfim cansado – / Tu, que até para negar-me, / Me pedes emprestado / O teu sinal de alarme, /Tu, cuja boca bruta / Nem acusar-me saberia, / Mas que eu fui descobrir, e abrir, como uma gruta / Que, tapada por terra, oculta havia, / Tu nem mereces que eu procure a mão / Que apertarei, mas só a sós comigo, / Sob o mantéu real daquela solidão / a que me condenou teu vesgo olho antigo…// Adeus, adeus, velhos amigos! / Adeus, jovens amigos! Velhos, jovens, todos…Creio / Que o poeta não tem nenhuns abrigos / Senão a imensidão que Deus lhe abriu no seio.».
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Numa Poesia pungentemente humana, é frequente o apelo de Régio ao afago da fraternidade: «Às vezes, quando o ar parece que me foge, / Me falta Deus, ou espanta a nossa condição, / Como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje / Dobro o joelho trémulo no chão. / Nem restos de orações lhe rezo. /Espero no silêncio e na opressão, curvado, / Que Jesus Cristo ao seu madeiro preso / Tenha dó de mais um crucificado
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As palavras feitas asas da denúncia
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A expressão escrita veicula o combate pela vida feito pelo Eu poético, é reserva de ar certa que se busca quando a vida o rarefaz. O mal da sua vida surge ditado, derramado no papel, «a pena tinta em fel», atirado de novo para o mundo, «Em que entro imundo, e me levanto puro!».
As palavras são o grito que atesta a angústia, a revolva, a procura do conhecimento de si, o voo da razão da sua existência: «E as minhas asas, – deu-mas / a minha falta de ar / naquela insustentável posição / De inutilmente mendigar / o meu direito ao meu quinhão: / Vinho para me embriagar! / Para me sustentar, frutos e pão. / As minhas asas, – deu-mas / o sinistro clarão que em mim se fez / (Mal eu passava de menino…) / E a cuja luz li todo o meu feroz destino / Pela primeira vez. / (…) / As minhas asas, – deu-mas / A incompreensão inconsciente / De que me vi murado; O amor incompetente / Frustradamente dado (…) E o meu desejo insatisfeito, / De insatisfeito, inchou até aos céus. / Já Tu, meu Deus, / Cravaste o Teu pendão na terra do meu peito.».
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Na complexidade trágica do ser humano há ainda que contar com uma existência que tem que ser talhada única e exclusivamente pelo próprio. Seguir e não seguir ninguém é uma assunção de liberdade, mas também uma solidão na caminhada.
A um jovem poeta ou a outra qualquer forma de vida, diz Régio:
«Que pode, a ti, servir-te o que aprendi por mim? / Que darei eu do que ninguém me deu? / Chegar, nunca se chega! Mas, se há fim, / Cada qual ganhe o seu. // Porque tu é que és tudo! A terra a cultivar, / A mão cultivadora, o arado da cultura, / O grão a semear, / O próprio fruto, – grão da mão futura. / Pois lavra-te, és o chão! Emprega-te, és o braço! / Semeia-te, és o grão! / Floresce, frutifica, extingue-te! E, no espaço, / Pode, amanhã, nascer mais uma ideal constelação…».
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Bibliografia consultada: José Régio, Obra Completa – Poesia I e Poesia II, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa
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nota: texto originalmente editado no site Triplov

© Teresa Sá Couto

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