sexta-feira, 18 de junho de 2010

O adeus a José Saramago

José Saramago faleceu hoje, aos 87 anos, vítima de doença prolongada. Em homenagem à derradeira viagem do escritor, recupero o texto que elaborei sobre o A Viagem do Elefante editado no sítio da Orgia Literária em 05 de Dezembro de 2008.


«Com as boas ideias, e às vezes também com as más, passa-se o mesmo que se passava com os átomos de demócrito ou com as cerejas da cesta, vêm enganchadas umas nas outras». É desta forma que José Saramago nos explica a torrente luminosa de A Viagem do Elefante, o seu recentíssimo relato – romance ou conto.

Clara é, também, a metáfora executada nas 258 páginas de escrita precisa e depurada: «A Viagem do Elefante», por planícies abrasadoras, serras geladas, chuva e nevoeiro, é a longa marcha dos homens, a Viagem de qualquer um de nós para o sítio que sempre nos espera: a morte. «Custa é saber / como se emenda a morte», escreveu Luiza Neto Jorge, e esta narrativa de José Saramago parece responder-lhe, ao emendar a morte com o gesto da escrita que, concretizada em extrema debilidade física do Nobel português, espanta pela alegria, pelo humor transbordante, pelas lições de amizade, pelo vigor saramaguiano da crítica social, política e religiosa, temperadas com ironia imbatível.

A ideia para narrativa surgiu de um acaso, que o autor explana, numa breve nota, na primeira página. Num restaurante em Salzburgo, chamado «O Elefante», repara numa pequena escultura em madeira da Torre de Belém e é informado que tal se deve ao registo de um itinerário feito por um elefante, que em 1551 foi de Lisboa a Viena. Restava enfrentar a poalha do tempo, «levantar as pedras do passado para perceber o que há por baixo delas», recorrer à «inesgotável generosidade da imaginação», «abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram», «preenchendo as lacunas o melhor que se pode», gizar tudo na escrita que não conhece vedação, imprimir-lhe o registo contínuo e sem paragens, obtido pelas supressões de marcas gráficas nos diálogos, «em suspensões quase de alma», como referiu Luís M. O. Cardoso sobre a subversão da escrita de José Saramago.

Estava encontrado o herói da épica caminhada, o espelho onde nos revemos, o paquiderme Salomão que, não obstante ter nome de rei mítico, é súbdito dos homens e joguete dos seus caprichos – viera da Índia por vaidade da coroa portuguesa, seguira para a Áustria onde, pouco depois, morreria, e as patas que fizeram a hercúlea caminhada acabariam em bengaleiros decorativos. Com Salomão, surgem na narrativa o indiano Subhro, seu inseparável cornaca e amigo, o comandante de cavalaria português, e amigo de ambos, e a reflexão sobre o curso da existência humana, com os seus desejos, sentimentos, intenções, e desvios, pois, diz-nos o texto, «a representação mais exacta da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível.». Com a alma e com as nações, porque estas são o retrato das almas que as dirigem, caminho para a crítica a Portugal.

Presente de casamento de D. João III e da rainha Catarina de Áustria ao primo Maximiliano, arquiduque de Áustria, que está em Espanha no Palácio do imperador Carlos V, seu sogro, Salomão prepara-se para «ir à pata» de Lisboa a Valladolid, não sem um banho com escova de piaçaba, que lhe retira o sarro acumulado de dois anos num país que o trouxera da Índia, mas que não sabia o que fazer com ele, enquanto a rainha inveja a sorte do animal por ir gozar a vida na cidade mais bela do mundo, enquanto ela ficava «aqui, entalada entre hoje e o futuro, e sem esperança em nenhum dos dois».

Habilidosa, a crítica à Pátria desenrola-se em inúmeros apontamentos, como este, retirado dum diálogo no Portugal profundo: «Nunca a viste, perguntou o comandante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabem aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que umas vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na mão, avistei a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria» (p.61)

O Teatro da vida

Para o mesmo caminho a caminhada é desigual, «também o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, mas nem todos apanham nos lombos com a mesma porção dele. A diferença está em viajar num coche forrado de peliças e mantas com termóstato e ter de caminhar sob açoite da neve por seu pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprime como um torniquete» (p.222). Na desigualdade da caminhada e nas curvas do caminho, faz-se a coreografia humana de contraste entre os poderosos e os humildes: «a colorida cauda de pavão dos parasitas da corte do arquiduque» e o paraíso da gente simples que pode estar «num telhado que defenda da chuva e do sereno»; a constatação de que se «está por estudar a importância dos intendentes, mas também dos varredores de ruas, no regular funcionamento das nações»; o descobrimento de Subhro sobre a natureza e os suportes do poder, quando, do alto de Salomão, contempla a multidão com desprezo e conclui que «um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante».

Ainda, e como há muito nos habituou o autor de Memorial do Convento, a crítica à igreja é profusa e contundente, agora no desvario de um catolicismo que, no combate ao protestantismo de Lutero, não olha a meios para agrilhoar os crentes, desde o fabrico de milagres, ao negócio da fé e «cinismo» católico, todos parodiados pela narrativa que lhes dedica quadros hilariantes. Numa síntese do posicionamento saramaguiano, temos o quadro da partida de Salomão de Valladolid, decorado com uma enorme «gualdrapa» de opulentíssimos veludos, profusamente bordada, com pedras reluzentes e fio de ouro, dinheiro que se «malgastou» com o bicho, rosnou o arcebispo, pois daria um «palio magnífico para a catedral» da cidade. O «paramento» revela-se inútil na viagem, e o «ridículo e grotesco» acaba por ser enviado ao bispo e ao lugar a que pertence.

Mestre na harmónica do tempo, o autor cria um narrador que acompanha a acção, comenta e critica, sempre numa dialéctica activa entre passado, presente e futuro, enredando o leitor no criticismo de quem olha de frente o mundo para o conhecer. Nesta contaminação dos tempos, surge, por exemplo, a acção dos estrangeiros que gostam de se sentir em casa, projectando-se que, um dia, no Algarve, «toda a praia que se preze, não é praia mas é beach, qualquer pescador fisherman, tanto faz prezar-se como não, e se de aldeamentos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquemos sabendo que é mais aceite dizer-se holiday’s village, ou village de vacances, ou ferienorte.» (p. 233).

Feita na primeira pessoa do plural, a narração é uma homenagem aos companheiros de viagem, a epígrafe da gratidão, com destaque individual de José Saramago à sua mulher, na Dedicatória: «A Pilar, que não deixou que eu morresse».

«A meta é o esquecimento. / Eu cheguei antes», escreveu Jorge Luís Borges em Rosa Profunda. Também a José Saramago se aplica a mesma certeza, por inscrever a perenidade numa pujante obra literária, reiterando-a neste livro que, ao falar sobre a morte, nos provoca um misterioso sentimento de felicidade.
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© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Anónimo disse...

Teresa,
Venho encontrar novamente as suas belas palavras no seu interessante blog . Nestes atormentados tempos que vivemos, é bom descobrir que anda na «bloggosfera» alguém com bom gosto e que estimula a leitura.
Todos os que amam livros lhe ficam a dever alguma coisa

Teresa disse...

Olá.
Obrigada novamente, agora também pelo seu carinho em procurar-me nesta minha casa. É bom tê-la "neste" lado ;-))

Beijinhos
TSC

hugo besteiro disse...

"O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porque a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou o seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivissímo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos."

Hoje estive em Tentugal. E, finalmente, tenho o «Levantado do Chão» autografado. :)

Parabéns mais uma vez pelo blog e obrigado pelo comentário no meu.

Teresa disse...

Hugo,
Dos nove livros de Saramago, que li, esse é o que mais me fascinou. Parabéns pelo autógrafo!! :-)))

TSC