terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Miguel Torga, poeta da terra e da esperança


Partiu há 15 anos. Deixou-nos este chão repleto de palavras que lemos e relemos. Sempre e uma vez mais. Porquê? Porque também somos torga, urze, raiz que ainda depois de queimada dá alento pelo carvão que produz. Se não somos, ele, Miguel Torga, a urze, o mosto, a casta nobilíssima de uvas do Douro, ensina-nos a sê-lo.

Nascido em 12 de Agosto de 1907, em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, e falecido em 17 de Janeiro de 1995, em Coimbra, Adolfo Correia da Rocha, seu nome verdadeiro, é uma leitura premente e necessária para todos os que procuram uma consciência pura, a esperança, a teimosia em romper caminho.
As suas palavras são vigorosas, lúcidas, prenhes de sentimento telúrico, o amor à terra que lhe avassala a alma:

“Sempre que, prestes a sucumbir ao mórbido do desalento, toco estas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão também na certeza da sede de quem bebe. (…) E quando chegar o dia em que a debilidade do ânimo seja tanta que já não consiga sequer confiar no valor do condão? Finos, os antigos, entenderam logo de entrada que o fabuloso não é mais do que a realidade aureolada. Que basta um homem ficar com a vontade tolhida para que Héracles – um dos muitos disfarces da morte – o vença irremediavelmente.” (Diário XI, 1943).

As razões do corpo

A sua inspiração genesíaca, das origens, da terra, das fragas, dos penedos, da água, transporta-nos, num vocabulário vibrante de “seiva”, “sémen”, “sexo”, “cio”, “fecundar”, “parir", para as nossas próprias origens. Falamos de um corpo humano que se cumpre nas paixões, no desejo, nos frémitos, mas também na desilusão, na tristeza, na renúncia:

Molhada pelo mar salgado e frio,
Sai da concha e passeia
A regar de frescura, amor e cio,
O deserto vazio
Desta areia!

ou,

Mulher e aparição num corpo só!

Seios, umbigo, coxas e cabelos
Que são fios abertos de novelos
Onde se aperta a seiva

Como um nó.

Porém, se em Torga o corpo se cumpre no percurso da vida que lhe dá a força, a fraqueza, a liberdade, a prisão à condição humana, a consciência lúcida dessa grandeza trágica fazem-no rebelar-se e lutar. A vertente Humanista torguiana explana-se ao longo da sua obra, quer poética, quer em prosa onde a saída para os revezes da vida é sempre iluminada de esperança e liberdade:

Meu irmão na distância, homem
Que nesta mesma cama hás-de sofrer
Que nem a terra nem o céu te domem;
Nenhuma dor te impeça de viver!

A palavra como arma

Senhor de uma arte literária portentosa, as suas palavras são, no entanto, cavadas com sacrifício. Um sacrifício que enalteceu a Literatura Portuguesa, inscrevendo-a entre as de excepção a nível mundial. Com o drama da criação, a que chama, em  O Quinto dia da criação, o «suplício de escrever», Torga mostra que todo o empenho é sofrimento:

Mas todo o semeador
Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro,
Sem saber se o chão é duro

E lhe recebe a semente.

A continuidade só é possível com o amor aliado à palavra:

“De quantos ofícios há no mundo, o mais belo e o mais trágico é o de criar arte. É ele o único onde um dia não pode ser igual ao que passou. O artista tem a condenação e o dom de nunca poder autonomizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido.”, escreve em Diário I, 1941. Ou ainda:

Novamente o teu pranto.
Mais uma vez a força dos teus dias
Na brancura dum manto
E a quebrar-se de encontro às penedias.
Mas as gaivotas acompanham
A tua dor, irmão.
Elas que são aves e se banham
Na espuma que te sai do coração.

Preocupado com a continuidade da sua esperança, emite um apelo dirigido a um secreto, hipotético, leitor:

Sem saber o teu nome e sem te ver
– Juiz que ninguém pode corromper –,
Murmuro-te os meus versos, os pecados
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.

Cumprir este apelo é uma forma de nos mostrarmos gratos.


*bibliografia consultada: Miguel Torga, Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, 2.ª edição 2002

© Teresa Sá Couto

5 comentários:

Isabel disse...

abraçoooooooooooooo......
Teresa!



com a minha admiração!





(piano)

Teresa disse...

outro, muito grande, Isabel,
e beijos :)
T.

Anónimo disse...

Torga é um escritor único, pela forma como foge a escolas, padrões, preconceitos, juízos que não sejam os dele. É um escritor inspirado em si próprio e na sua interacção com o mundo! Interpretá-lo requer ser muito especial também e é isso que a Teresa aqui faz. Com ela entendemos Torga de uma outra maneira, irmanamo-nos melhor com ele. Tentarei ser esse "búzio" e respeitar os ensinamentos da terra! Sou mais feliz depois de ler este texto (agora vou para casa pegar nas obras completas ereler partes do Diário...),
até logo...
Bem-haja Teresa.
Miguel

Anónimo disse...

Torga é um escritor único, pela forma como foge a escolas, padrões, preconceitos, juízos que não sejam os dele. É um escritor inspirado em si próprio e na sua interacção com o mundo! Interpretá-lo requer ser muito especial também e é isso que a Teresa aqui faz. Com ela entendemos Torga de uma outra maneira, irmanamo-nos melhor com ele. Tentarei ser esse "búzio" e respeitar os ensinamentos da terra! Sou mais feliz depois de ler este texto (agora vou para casa pegar nas obras completas ereler partes do Diário...),
até logo...
Bem-haja Teresa.
Miguel

Teresa disse...

Obrigada, Miguel, pelas palavras generosas: é gratificante para mim -e dá-me ainda mais responsabilidade- saber que tenho "desse lado" leitores assim.

E estou a ver que vai ter um serão de belas palavras telúricas. Um belo serão, portanto :)))

Beijinhos
T.