Corria o mês de Novembro do ano de 1921 e “Olisipo” editava uma jóia literária do mestre Almada Negreiros: «A Invenção do Dia Claro». Maio de 2005 e “aquele dia” reapareceu tão claro como o original, num fac-símile pela mão da editora Assírio&Alvim. Desde então, o livro mantém-se em destaque nas prateleiras de muitas livrarias.
Nem uma palavra a mais é acrescentada nesta reedição. Nem é preciso. Tudo igual, da capa à contracapa. Até o papel sépia ostenta as manchas amarelecidas, e a imaginação urde o cheiro do tempo ao embrenhar-se no português falado nos anos vinte do século passado, nas palavras intemporalmente rebeldes.
Na capa, Almada esclarece ser esta uma Escripta de uma só maneira para todas as espécies de orgulho, seguida das démarches para a Invenção e acompanhada das confidencias mais intimas e geraes. Claramente um manifesto, como o foi toda a atitude de vida de Almada espraiada numa profusa e eclética intervenção artística. Interpretar o mundo, moldar o tempo e desafiar o futuro foram as grandes marcas do autor, bem patentes no «A Invenção do Dia Claro».
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A abrir, um retrato «do autor por elle-proprio», destacando-se-lhe o olhar visionário. Dedicado ao amigo Fernando Amado, Almada confessa: «Eu queria que os outros dissessem de mim: olha um homem! Como se diz : Olha o cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma arvore! quando ha uma arvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: UM homem!».
Na primeira parte «Andaimes e Vésperas», entre vários pensamentos curtos e certeiros, na conta certa que alveja o leitor, Almada discorre uma «Conferência Improvisada» acerca do homem e da mulher: «Minhas senhoras e meus senhores: Mulheres e homens são as duas metades da humanidade – a metade masculina e a metade feminina. (…) A linha que passa por entre estas duas metades é parecidíssima com o ar por dentro de uma esponja do mar, seca.».
Três pensamentos depois deste, a sua viagem intelectual fá-lo aportar ao cais das palavras dizendo sobre elas: «O preço de uma pessôa vê-se na maneira como gosta de usar as palavras. Lê-se nos olhos das pessôas. As palavras dançam nos olhos das pessôas conforme o palco dos olhos de cada um.». As palavras são os barcos que o levam a todos os lugares, porque cada palavra «é um pedaço do universo». Com as palavras todas juntas, Almada destece-se tecendo o seu universo.
Em «Ensaios para a iniciação de portuguezes na revelação da pintura», ensina-nos sobre o desenho de uma flor:
Pede-se a uma creança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A creança vae sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas n´uma direcção, outras n´outras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A creança quis tanta força em certas linhas que o papel quasi que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o pezo do lápis já era demais. Depois a creança vem mostrar essas linhas ás pessoas:
Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de
uma flor!
Comtudo, a palavra flor andou por dentro da creança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, á procura das linhas com que se faz uma flor, e a creança pôz no papel algumas d´essas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus logares, mas, são aquellas as linhas com que Deus faz uma flor.
A par das artes plásticas, as palavras sempre foram um porto seguro donde “partia sempre depois de chegar”, e sempre inteiro. E inteiro é com meiguice e truculência, idealismo e pragmatismo, iluminação e opacidade, sofrimento e gáudio, cólera e humor refinado ou ironia contagiante. Ou, ainda, Almada inigualável.
A Invenção do Dia Claro, José de Almada Negreiros, Assírio &Alvim (edição fac-similada da de 1921); Lisboa, Maio de 2005
© Teresa Sá Couto
4 comentários:
BOA TARDE, TERESA!
GOSTEI MUITO DESTE SEU ESPAÇO.
PARABÉNS PELO EXCELENTE BLOG
Artur Cyb.
Este Almada!...
:)
Olá Artur.
Muito obrigada por esta visita com palavras afáveis. Volte sempre.
TSC
Almada inesgotável, Paulo...
TSC
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