O homem é «um equilíbrio difícil em dois pés precários», escreveu Vergílio Ferreira, ele que soube como ninguém retratar a tensão insuperável do homem consigo mesmo. Neste trilho ôntico, chega-nos o não se brinca com facas, recente título de José António Barreiros, com a palavra a erigir a vida ao abordar a fragilidade da existência, a solidão, a incompreensão e a interrogação da identidade a acordar a consciência do fracasso.
Estreia no género Romance, não se brinca com facas sucede a Contos do Desaforo, editado pela Presença em 2007, e com o qual, por sua vez, o autor se iniciou na escrita de ficção. Se em ambas as obras reconhecemos a problemática das vivências, o olhar hábil sobre o real e a escrita segura do autor, este novo livro segue, todavia, um programa narratológico distinto. Romance intimista e de forte densidade psicológica, não se brinca com facas assenta a sua intriga dentro das personagens, cabendo à escrita desvelar esse centro fechado, estiolado, ulcerado das existências: Júlia «há muito deixara de usar o relógio» e «os pés encaminhavam-na para o vazio»; Mário pensa-se «repetidamente até ao cansaço»: «Mário estás exausto de ti»; Pedro sente-se velho e «um sentimento de exílio acompanhava-o»; o emprego de Manuela «comprara-lhe a despersonalização para bem atender clientes personalizadamente».
A manusear estas quatro personagens de vidas cruzadas, fundadoras da narrativa, está um narrador engenhoso que se confunde com elas, fala com e sobre elas, assume-se como a voz das suas consciências, confunde-se com o autor e fala com o leitor enleando-o na questionação da condição humana, piscando-lhe o olho, ora subtil, ora declaradamente: «há sempre um livro que faz as vezes, há sempre um livro que conta a nossa história».
E se a história que se conta pretende descascar o porquê, «nem tudo o que é interrogativo tem de encontrar resposta, porque há a curiosidade e o mistério», lê-se para se compreender o método escolhido que origina uma narrativa fragmentária a contar uma história a suceder-se, como a vida, com as suas imprevisíveis erupções.
Na linha dos existencialistas, e logo a abrir, a assunção do homem enquanto um ser possível, sempre em construção, um “ainda não”: na manhã do primeiro dia do ano – porque «há sempre um primeiro dia» – Júlia, que «tinha saudades do que fora, agora que não sabia o que era», enceta uma viagem de comboio de Lisboa a Braga, na busca duma «possibilidade de destino». Distante de si, estranhando-se a si mesma, a personagem reúne os fundamentos da demanda existencial, Leitmotiv desta obra: «O que se faz numa terra estranha quando nós próprios nos estranhamos, desencontrados? Era tempo de viagem, de fuga, de recusar o destino, rir da fatalidade». Todavia, porque o ser humano é memória, Júlia carrega, na sua mala alegórica, vozes, desamor, vergonha, pudor, remorsos e um «ligeiro receio antiquíssimo, medo de lhe pesar nos ombros o fardo do seu futuro», «medo de já não mais se iludir». Ao sentido de inevitabilidade do tempo dissoluto, junta-se a noção do homem enquanto ser responsável pelo seu percurso – e de novo ressuma a visão sartriana da existência –, de se criar a si mesmo, elegendo-se e elegendo os seus possíveis: «há muito que o cinismo lhe dissolvera, ácido, a doçura da crença: nesta hora exacta, o momento zero da responsabilidade própria, sabia que não tinha ninguém», e, noutro passo, «o que fizeste de ti que nem o corpo te sobejou.».
Se o comboio é a metáfora da viagem humana, as janelas, a transparência que o nada representa, exibem o destino emoldurado, o retrato do percurso feito, a sombra tombada da existência no fulgor do vidro, no brilho da escrita. Nas janelas do comboio em movimento, sucedem-se as memórias, vivificam-se os espectros, procura-se o “eu” que surge em manifestações quotidianas; no reflexo das janelas, sonhos confundem-se com realidades, regista-se a angústia perante o nada a que se chega construindo-se um conceito trágico da condição humana. É a existência a segregar o seu próprio nada, pela acção da consciência – ainda na linha do pensamento de Sartre e de Heidegger –, e tudo desembocará nesse nada. As janelas são o elemento simbólico central no cumprimento desta narrativa existencial de José António Barreiros, estão ao longo de toda a obra a suturar falhas, a estabelecer diálogos entre o interior do ser humano e o infinito onde ele se projecta. Da janela da sua casa, Júlia, «rasgada de solidão», observava «os latões do lixo», os quais tivera como única companhia, eles que, como ela, «albergavam memórias de festas», depósitos do «rejeitado» e do «abandonado»; com um salto de uma janela, um «voo cego carregado de desejo de voar», uma prima de Júlia suicidara-se.
«Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir, de mergulhar nela» (1), escreveu o autor de La Nausée. «E sei que nesta narrativa me esqueci completamente de ti, Manuela, e da tua história, a história da tua revolta e não tens outra» (p.150), escreve José António Barreiros neste não se brinca com facas, narrativa que transporta em si a revolta de personagens sem lugar, que a palavra escrita acoita.
(1) Sartre, A Náusea, Europa América, 1976
José António Barreiros, Não se brinca com facas, Labirinto de letras, 2009
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© Teresa Sá Couto
2 comentários:
Magnífico texto, o seu, como sempre! Um óptimo «appetizer» para o livro.
Desta vez não digo que vou ler, porque já li... :-)
Abraço
Olá C.
Penso que é importante contextualizar culturalmente as leituras, sempre que possível. Neste livro ressuma, de forma evidente, penso eu, o pensamento dos existencialistas.
Obrigada por ter vindo ler-me.
Abraço
T.
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