domingo, 13 de junho de 2010

Os 122 anos de Pessoa

Ser que viveu na obscuridade de um tempo que não o compreendeu, Fernando Pessoa (nascido a 13 de Junho de 1888 e falecido a 30 de Novembro de 1935) teve depois da morte a luz que lhe foi negada em vida: «A criança que fui chora na estrada. /Deixei-a ali quando vim ser quem sou; /mas hoje, vendo que o que sou é nada, /Quero ir buscar quem fui onde ficou. /Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou /a vinda tem a regressão errada.».

Com inteligência e intuição desmedidas, Pessoa investigou a sua invulgar sensibilidade, de forma indagadora e analítica, para a conhecer e fixar; a forte elaboração mental a que a emoção é sujeita - transformando a emoção, antes estática, em emoção pensada - leva a uma nova concepção de arte: o fingimento poético, surpreendentemente explanado no texto «Autopsicografia» onde «O poeta é um fingidor» que “finge” «A dor que deveras sente». Doutra parte, o desafio enreda também o leitor: «Os que lêem o que escreve, /Na dor lida sentem bem, /Não as duas que ele teve, /Mas só a que ele tem»; assim, anuncia-se que o leitor não sente as duas dores do poeta nem a dor que ele próprio (leitor) tem, mas uma quarta dor, a suscitada pelo objecto artístico que é o poema.

Marcado pela dor de pensar, pela fragmentação do Eu que aspira a conhecer-se – mas num processo em que cada vez se afasta mais de si –, pelo tédio e cansaço de viver, a poesia do ortónimo é de extrema exaltação íntima:


Quem bate à minha porta
Tão insistentemente
Saberá que está morta
A alma que em mim sente?
Saberá que eu a velo
Desde que a noite é entrada
Com o vácuo e vão desvelo
De quem não vela nada?
Saberá que estou surdo?
Porque o sabe ou não sabe,
E assim bate, ermo e absurdo,
Até que o mundo acabe?

Na tensão da vida, tangida pela dor, diz o poeta que «É preciso destruir o propósito de todas as pontes, /Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, / Endireitar à força a curva dos horizontes, /E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras…» .

Pessoa: o «quarto com inúmeros espelhos»

Sobre a heteronímia, Casais Monteiro explica porque não se podem considerar anónimas ou pseudónimas as obras pessoanas, mas sim ortónimas e heterónimas: «A obra pseudónima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assinala; a heterónima é do autor fora da sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.». Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são personalidades que devem ser consideradas «como distintas do autor delas. Forma cada uma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama». Mais, esclarece Casais Monteiro: «a criação dos seus heterónimos é uma fase da sua criação de companheiros, de situações, de vidas… As criações do seu “sonho acordado”.» Com efeito, isso mesmo é explicado por Pessoa na «Carta sobre a génese dos heterónimos».

Eduardo Lourenço diz que Pessoa, «para se curar da sua tristeza de ser consciente», se sonhou Caeiro. Alberto Caeiro diz que Pessoa era «um novelo embrulhado para o lado de dentro» e que ele, Caeiro, é o oposto, ele quer “desembrulhar-se, ser um «animal humano que a Natureza produziu». Assim, «O guardador de rebanhos» surge como «o mestre», o que aceita a diversidade das coisas, a reconciliação com o universo. Poeta da natureza, com versos tão naturais «como o levantar-se o vento», do olhar antimetafísico, simples e calmo, Caeiro devolve-nos a eterna descoberta e a pureza e da criança:

a criança eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
são as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas.

O mais intelectual de todos, Ricardo Reis surge como o “epicurista triste”, com a sábia indiferença que ensina a “viver o momento”, a levar a vida sem competições inúteis. A máxima «Abdica /E sê rei de ti próprio» define a filosofia do saber viver e faz de Reis um poeta indizível:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Frenético, Álvaro de Campos irrompe com todas as sensações, querendo «sentir tudo de todas as maneiras». Mas Campos é também o decadente, o cansado e angustiado. No poema «Tabacaria» pode ler-se:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Também no Poema «Dactilografia» o heterónimo parece aproximar-se do ortónimo e solta a mágoa, aquela que o acompanhou durante toda a vida e que hoje nos ilumina:

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros.
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.


Nota: a editora Assírio&Alvim tem editados sete volumes de Fernando Pessoa - Obra Essencial

© Teresa Sá Couto

3 comentários:

Isabel disse...

.....quando são muitos eus no vário uno é preciso saber-se ser para se saber ler.


assim.



beijo T.



imf.

Isabel disse...

.....quando são muitos eus no vário uno é preciso saber-se ser para se saber ler.


assim.



beijo T.



imf.

Teresa disse...

é realmente a questão dos espelhos.
:)
Beijo, Isa

T.