sábado, 17 de julho de 2010

Poesia de Manuel de Freitas

«Pode-se evitar tudo menos as evidências / – se estão nus os olhos por elas /apedrejados», escreve o poeta Manuel de Freitas em três versos que encerram características marcantes da sua poesia: a crueza da observação, a lucidez da palavra avessa a jogos retóricos ou meros exercícios vocabulares, que grassa em tanta da dita poesia que teima em fazer-se em Língua Portuguesa.

«Dificilmente alguém poderá rematar a leitura de um poema de Manuel de Freitas com aquele “não percebi nada” que, se o snobismo não fosse endémico no meio intelectual, dedicaríamos a muita da poesia que passa por “grande”, escreve José Miguel Silva no posfácio do A Última Porta, colectânea de poemas de Manuel de Freitas, acabada de editar pela Assírio&Alvim. Na belíssima capa, um desenho de Adriana Molder com a sua inconfundível técnica dos retratos a tinta-da-china sobre papel esquisso e a procura do branco com uso de água com lixívia.
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A obra de Manuel de Freitas é composta por poemas que fogem de lugares ledos, apesar do «estupor bucólico de certos dias». Trata-se de uma poesia que se detém em lugares onde se reúnem pessoas com «a sincera mentira dos seus gestos», com a «ilusão de se estar vivo», para colher e abrigar «numa espécie de voz /esses estilhaços» de existências caídas, excluídas, que erram nas ruas de várias cidades, que se vazam em copos nas tabernas, ou nos bares nocturnos onde se vive a «mentira de se estar vivo». No centro dos escombros, parte integrante deles, lúcido, atestando que a angústia é um dano colateral de quem vive, está o sujeito poético que, também ele, se confunde com o autor: «Dois homens, numa taberna, /enquanto chovia. O terceiro /era eu: aquele que escreve /e não escreve este poema.».
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A voz de Manuel de Freitas «não desemboca numa depreciação da vida mas numa espécie de amor rancoroso pela mesma, um amor desesperado e sem saída», resultado de um «sentimento de quem sabe que ama apenas uma sombra, e que apenas sombras podemos amar», diz José Miguel Silva. Contaminada pela morte, a vida – a que o sujeito poético não «apetece chamar-lhe “vida”» – é «o nada»: «A vida, devo-o ter dito já, também pode /ser isto – a violenta dor de alma, /a dor simples e gasta de ser isto apenas: //a alma nenhuma.». Quanto ao amor, «não sei o que é o amor», diz o sujeito poético que sabe que «nada ficará», pois «a morte escreve demasiado bem». A literatura, essa, será uma voz para futura memória da existência que tem a gritar unicamente o nada: «O mais estranho não é a literatura, / o solene esgar da poesia. / Mais estranho, sempre, é sobreviver /a isto, fingir que não, sorrir. // Enquanto o olhar negro negro /de um gato testemunha a tua morte /e se despede melhor do que tu/ da música e dos dias e da música. // Qualquer coisa assim.».

Transcrevo na íntegra o poema Errata, e um extracto do poema BWV 988
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Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
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Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
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Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
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Onde se lê Manuel de Freitas de ser
Com certeza um sítio muito triste.

(poema Errata, p.131)

***
Talvez tudo fosse diferente
se o mundo tivesse começado tão bem
como as variações Goldberg.
Não sei, não quero saber, não faço ideia.
[…]
O amor? Talvez, quando um cadáver
se recria e afaga penosamente
a morte de que de uma maneira ou
de outra se morre. Quem me dera ser
menos realista, menos real,
menos permeável ao desgosto.
Mas a verdade é esta: partiste
a meio da noite, fodemos pouco e mal
e quando a janela me guilhotinou
já um táxi te levava
para longes terras da cidade em pânico..
É tudo – sabes? _ tão dolorosamente simples.
A mão que não quer esperar-me,
o rumor sórdido dos bares,
a certeza de que a vida, a vida,
não deveria ser exactamente assim.
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Reúno, numa espécie de voz,
esses estilhaços. Sei que não vale
a pena, sempre o soube.
Há os que se despedem e os que não.
E, indiferentemente, progridem
as diferentes coisas. Carteiros
matinais, aviões, poetas que dão
corda à musa e escolhem
devagar o timbre da gravata.
Estão no seu direito, partilham
o bem comum, a cidadania do terror.
..
E eu, infelizmente, existo. Abro
outra lata de cerveja, sob
o olhar reprovador do gato. Sim,
gostava de ser felino – uma coisa
mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta.
[…]
(poema BWV 988, p.p73,74)
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Nota (1):  É conhecida a posição de José Miguel Silva sobre o que deve ser a Poesia; desafio à leitura de um seu texto e respectiva discussão, AQUI.

2 comentários:

Alexandre Pedro disse...

Olá!!
Adorei este lugar...já estou seguindo.
Obrigado por compartilhar tantas maravilhas.
Abraço
Alexandre

Teresa disse...

Olá, Alexandre.
Bem-vindo, então :)
Um abraço
TSC