É considerado um dos melhores romances portugueses do séc. XX. Editado em 1986, Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira narra um caso amoroso, adúltero e escaldante de um artista plástico com a senhora Y, sigla de sugestão erótica com que David inicia o romance.
História de um amor que se perdeu, o título de felicidade reporta-se, ainda, inevitavelmente, ao amor pela escrita, acto erótico e sexual de fecundação: «a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem mais disposta a por amor ser fecundada.».
Com recurso à Memória, e sempre ela como força da criação davidiana, reconstroem-se os meses de encontros arrebatadores e luxuriantes do narrador com senhora Y. O espelho está lá – o grande espelho no atelier onde se dão os encontros amorosos –, metáfora da memória, superfície da revelação, numa escrita magnificente pejada de símbolos:
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Estamos ambos de pé, estamos ambos nus, diante do enorme espelho aí à largura dessa parede: e todo eu me escondo atrás do seu corpo, assim lhe mostrando como só o seu corpo ali merece reflectir-se. Acaricio-lhe e sopeso-lhe os seios, ora um ora outro, na palma da minha mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe modelo o pescoço, o ombro, o flanco, o ventre, o deslumbrante nascimento das coxas (…). Mas os seus olhos apenas espiam, na superfície do espelho, o reflexo do meu rosto semioculto.
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A premência de se recuperarem fidedignamente todas as sensações daquele amor proibido faz com que o narrador opte pelo longo diálogo que estabelece com a amada doutros tempos, recuperando ao ínfimo pormenor os momentos a dois, método de construção da história que terá magnetizado os leitores. Para essa cumplicidade com o texto concorre, também, a mestria das descrições sinestésicas, onde confluem o cheiro dos corpos em cópula, o sabor da pele em êxtase, o cetim da pele em torrente de arrepio, gemidos de vocábulos na cadência do tropel de cavalos, os olhos hipnotizados no outro, cada um dos sentidos sugestionando, motivando e enformando um outro sentido, num festim de imaginação: «raízes, ramos, folhas, frutos. E a gruta; e o grito. (…) Encontramo-nos, no entanto, muito mais despertos do que supúnhamos: sentimo-nos leves, límpidos, alados, lúcidos, como depois de uma trovoada».
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Metáfora doutro amor, esse sim imorredouro, está o laço a outro elemento feminino: a palavra - a escrita, a página, a Terra -, dito assim pelo autor:
(...) como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor. Com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente. Em compensação, um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino – luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso –, isso é que foi sempre o que me empolgou.
e ainda:
a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem mais disposta a por amor ser fecundada.
e ainda:
a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem mais disposta a por amor ser fecundada.
notas:
- Um Amor Feliz foi Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, Prémio de Ficção Município de Lisboa e Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores.
- a Editorial Presença tem uma edição mais recente do título, com capa diferente.
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
Olá Teresa,
Lembro-me perfeitamente do furor que suscitou a publicação desse livro e depois de ler tudo, como me apetece reler «Um amor feliz»!
Bjs,
Manuela
Excelente (como sempre...)
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