sábado, 4 de setembro de 2010

Palavras, a terra humilde de Ruy Duarte de Carvalho

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«A tarde cai na concha devoluta do meu peito /exausto me devolvo à pedra/e ao coração de um animal cansado», escreveu Ruy Duarte de Carvalho em versos dum poema contido em Lavra - poesia reunida 1970/2000, título indispensável a todos nós que ressurgiu nas livrarias depois da morte do autor, no passado dia 2 de Agosto (Ver Aqui Ruy Duarte de Carvalho por ele próprio).

Um grande homem que nos deixa um legado magistral em língua portuguesa, uma poesia de humildade, pura filigrana vocabular, com a palavra depurada até à sua essência cristalina, com o «chapinhar das frases» que narram brumas, «dias claros» e explicam o infinito. Uma poesia lúcida, daquela lucidez que nos acorda para o assombro. Uma poesia líquida, daquela liquidez que escorre ágil pelos corredores mais esconsos do ser para os inundar e fecundar. Ao lermos a obra de Ruy Duarte de Carvalho fazemos uma viagem pela viagem que ele fez: uma viagem ao silêncio da terra, das paisagens, das grutas, dos bichos, das «mulheres sentadas, das tarefas autónomas que os seus gestos tecem», aos rumores do espírito e à comoção.

«Não poderia traduzir palavras. Optei assim por traduzir a forma e descobrir palavras que acrescentadas são palavras novas», diz Ruy Duarte de Carvalho sobre o gesto que é o texto, lugar de respiração com compassos nomeados assim:

«Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Confirmações possíveis. Fidelidade a quê? Texto, lugar do encontro. O pensamento, o tempo, a emoção, o som. Regra primeira – humildade.»

Extractos de poemas:

Eu tenho os dias claros
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Eu tenho os dias claros
de sucessivas luas de Setembro
e a noite que me impõe sinalizar
as direcções cruzadas das margens.
(…)

Entendes companheiro?
Eu estou aqui
a procurar não ir além da bárbara carícia
de um olhar sem tacto

e que nem uma lágrima machuque
a capa muito fina da lembrança
que tenho para dar-te. (p. 34)
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***
A gravação do rosto

(...)
O zinco dos telhados cobriu-me solidões
e esperanças que tu sabes.
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Esperei aqui por ti
bordei-te flores nos canteiros do céu
abri-te valas, semeei-te milhos
pari colheitas de searas vãs
abri os dedos, semeei calhaus.
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Espremi a terra e fiz-lhe água nascente
Povoei prados de criaturas doces
Ergui torres, girassóis gigantes
Dei vida e morte, vi nascer e morrer.
..
Aqui reinei, julguei, plantei videiras
caminhos, grutas de vestígios;
colhi olhares de animais bravios
deixei aos dedos aladas liberdades.
(…)
Aqui me dei, aqui me fiz,
desfiz, refiz amores.
Senti escorrer pelo corpo o pus das mais antigas chagas.
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Aqui me embebedei e vomitei o espanto.
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Aqui contei os passos
de uma distância que me não contém.
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Daqui abalo hoje, parido para o nada
apalpo a água
afago um bicho
ordeno qualquer coisa
e vou. (p.p 36 e 38)

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