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.Não, ninguém se conhece, até que o toca
a luz de uma alma irmã
Miguel de Unamuno
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Falar de Albano Martins é nomear a luz. Uma luz verde, «casualmente azul», «às vezes amarela», «sobretudo vermelha», líquida, com «a cor dos miosótis e do sangue», a bordar um «coração de bússola» e a mapear a doação. Uma luz rutilante, exacta e concisa, irmanada com o nosso destino desde há 60 anos, nutrida de palavras, «Sentinelas de sal e de silêncio» a cantarem «A vida / – essa invenção magnífica / da morte».
«Meus versos / são encontros da sombra com a luz», escrevia o poeta no iniciático Secura Verde, os primeiros acordes de quem se propunha cumprir o «destino como qualquer fonte», com passos que fossem «os de qualquer bicho». Assim, «o verbo se fez cor, aurora, / boreal, multímodo / girassol», e o poeta fazia do seu nome uma canção, manifesto da transumância onde o sujeito lírico e o homem se aclaravam com «o mesmo nome», e o mesmo que nos chega até hoje, sabe-o quem conhece Albano Martins.
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«Eu fujo de novo como faz o cuco», escreveu Anacreonte. Longe da Estrela e da Gardunha, radicado à beira do Douro com vista para a invicta brumosa, Albano convoca a luz, enceta a «viagem das flores sem moldura», dá cor ao tempo branco, «o tempo das cerejas e das malvas», torna audível um melro que «canta a flor das giestas / e da cerejeira», esculpe os «dias enxutos», os «Anos plácidos, / fulvos (alourados, amarelo torrado)», cintilações, inclinações do corpo, uma oração até às mãos doridas e requiem aos «gestos perdidos / no espaço da memória»; é o apelo da «Rosa-dos-ventos» da infância, onde cabem todos os lugares e todas as direcções da palavra que solta o mel das «Lendárias e luminosas abelhas», desata a «Magnólia dos símbolos», a florida e «incandescente metáfora». Edifício vivo, o ontem é eternizado na «luminosa fábula» construída com fios secretos a ligar os tempos Passado, Presente e Futuro e a desnudar o centro, o «Centro do próprio centro», a «água compulsiva». E nesse centro está o amor, leitmotiv da poesia albaniana, como na formulação de Paul Éluard: «Por amar, criei tudo o que é: real e imaginário. / Dei razão de ser, dei forma, dei calor / Dei imortal função àquela que me é lâmpada e luz».
A criação exige trabalho árduo, e Albano mostra-nos que, para abranger, a palavra – que busca «a flor do cálcio / na / luz da madrepérola» – tem de sofrer, sendo a presença da sombra uma prova incomensurável da força vital desta poesia:
Quando escurece, é preciso acender rapidamente todas as luzes da casa. Nunca se sabe quando o eclipse do sol é total. E a morte precisa de luz para ver na escuridão.
Em permanente busca interior, o amor Escrito a Vermelho tem, na obra albaniana, o «compromisso» largo e fulgente do destino humano, estabelecendo diálogo íntimo, directo e cristalino com o Homem:
Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.
É a bússola humanista de Albano Martins que brilha, total, em Rodomel Rododendro:
Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário.
Sobre o lugar do poeta na humanidade e o mistério da escrita, responde-nos Albano, num comentário ao poema «Santo e Senha», de Miguel Torga, com outro mistério: o «lugar onde do poeta» é na terra de todos, mas na área da sombra onde tem «a solidão por habitáculo». O poeta não mata a sede, engana-a, diz-nos, porque «a sua sede é de infinito, de absoluto, e a esta não há fontes que a saciem, mesmo as do Sonho, por mais refrescantes que sejam».
Interrogar, desvelar o real e soltar a imaginação são a «senha» e o «Lugar» de inscrição de Albano Martins, forma de vida plena na palavra plena a dar-nos lições de coerência e de autenticidade que partilha connosco, seus leitores e cúmplices de jornada.
O lugar da palavra de Albano, sabe-o o poeta, é aquele em que a pele das palavras, das que ele libertou, encontra outra pele que passa a ser a sua casa: a pele do leitor: «Como a palavra, Só o dardo /conhece o alvo. Só o dardo / sabe o nome / da ferida. / O seu lugar».
Escreveu José Régio: «Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço». Assim vejo a poesia de Albano Martins: um hausto íntimo que atinge a universalidade e intemporalidade humanas; uma orquestração de palavras que depois de nos deixarem «todos os jardins da terra e do mar» nos incitam e ensinam a plantar «uma flor no vazio».
«Ao amigo e ao companheiro fiel nunca traí, / nem há na minha alma nada de servil», escreveu Teógnis, traduziu-o Albano Martins, lemo-lo como efígie deste homem poeta, tradutor de poetas, farol que nos guia na nossa inevitável condição crepuscular e dote nosso de língua lusa.
Nota: este texto foi editado no livro 80 Anos – Albano Martins, pp. 315 a 319, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2010, no ensejo das celebrações do aniversário do poeta (a 24 de Julho) e 60 anos de vida literária em 6 de Agosto de 2010.
*ler outros textos meus sobre Albano Martins na etiqueta correspondente.
© Teresa Sá Couto
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