sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Juan Rulfo ou o assombro literário

Dois nomes de culto: Juan Rulfo e Pedro Páramo, o mágico e a «carpintaria secreta» reveladora de «insólita sabedoria», o escritor e a novela que o imortalizou. Gabriel García Márquez considerou a escrita do escritor mexicano sua matriz literária. Leitores dos quatro cantos do mundo consideram Pedro Páramo uma das maiores obras de sempre da literatura universal; também eu me inscrevo nessa multidão.
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Publicada em 1955, Pedro Páramo daria a Juan Rulfo (1918-1986) o Prémio Príncipe das Astúrias, de Espanha, quatro anos antes do seu falecimento. Muito se escreveu sobre esta novela, e muito, creio, ainda se escreverá, porquanto ela nunca se acaba. É pejada de vozes, vozes fundas da terra difundidas pelas personagens, que as fazem suas, e que através delas se buscam.
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Juan Rulfo escreveu pouco mais que essa novela e essa lhe bastaria para o nosso redondo assombro. É esse pouco que é tanto que nos acaba de chegar no tomo de 366 páginas: Juan Rulfo, Obra Reunida, pela Cavalo de Ferro, com o prefácio Breves nostalgias sobre Ruan Rulfo, por Gabriel García Márquez, tradução de Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu. Junto com Pedro Páramo, estão o llano em chamas e o galo de ouro; assim, três portentos literários, três viagens ao inefável, e ao indizível depois de Juan Rulfo.

Extractos:
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«Dormi entre interrupções.
Numa dessas interrupções, ouvi o grito. Era um grito arrastado como o alarido de um bêbado: "Ai vida, não me mereces!"
Pus-me de pé rapidamente porque quase o ouvi aos meus ouvidos; podia ter sido na rua; mas eu ouvi-o aqui, colado às paredes do meu quarto. Ao acordar, tudo estava em silêncio; apenas o cair do pó e o rumor do silêncio.
Não, não era possível calcular a profundidade do silêncio que aquele grito produziu. Como se a Terra se tivesse esvaziado de todo o ar. Nenhum som; nem o da respiração, nem o do bater do coração; como se o próprio ruído da consciência se tivesse interrompido. E quando a interrupção terminou e voltei a acalmar-me, o grito regressou e continuou a ouvir-se durante um longo momento: "Deixem-me ainda que seja apenas o direito de empurrar a cadeira do enforcado!"».
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Pedro Páramo, p.48
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«Cai uma gota de água, grande, gorda, fazendo um buraco na terra e deixando um empate como de uma cuspidela. Cai sozinha. Nós esperamos que continuem a cair mais. Não chove. Agora, se olharmos para o céu, vê-se a nuvem aguaceira correndo para bem longe, cheia de pressa. O vento que vem da aldeia arrima-se-lhe empurrando-a contra as sombras azuis cerros. E a gota caída por engano é comida pela terra, que a faz desaparecer na sua sede.
Quem diabo terá feito esta planície tão grande? Para que é que serve, hã?
Voltámos a caminhar. Tínhamos parado para ver chover. Não choveu. Agora voltamos a caminhar. E a mim vem-me à cabeça que já caminhámos mais do que aquilo que andámos.»
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O Llano em Chamas, p.146
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«Passaram os dias. Dionisio Pinzón vivia unicamente preocupado com o seu galo, que enchia de cuidados. Levava-lhe água e comida. Metia-lhe migalhas de tortilha e folhas de alfafa dentro do bico, esforçando-se por fazê-lo comer. Mas o animal não tinha fome nem sede, parecia ter apenas vontade de morrer; embora ele ali estivesse para o impedir, vigiando-o constantemente, sem descolar os seus olhos dos olhos semi-adormecidos do galo enterrado.
Contudo, uma manhã, deparou-se com a novidade de que o galo já não abria os olhos e tinha o pescoço torcido, caído sob o seu próprio peso. Colocou rapidamente um caixote sobre a cova e pôs-se a bater-lhe com uma pedra durante horas e horas.
Quando, por fim, tirou o caixote, o galo olhava-o aturdido e pelo bico entreaberto entrava e saía o ar da ressurreição. Aproximou dele a tigela da água e o galo bebeu; deu-lhe de comer massa de milho e este engoliu-a, em seguida.
Poucas horas depois, pastoreava o seu galo pelo terreiro do curral. Aquele galo dourado ainda cinzento de terra que, apesar de se alquebrar a cada instante por lhe faltar o apoio da sua asa partida, dava mostras da sua fina condição, erguendo-se cheio de coragem perante a vida.».
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.O Galo de Ouro, p.p.310,311

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2 comentários:

Paulo Assim disse...

Curioso chamarem aos contos O Llano em chamas...
Li os mesmos contos com o título A Planície em chamas. Os melhores, os mais interessantes contos que já li, posso afirmar.

Teresa disse...

Olá, Paulo

Subscrevo: são narrativas magistrais. As três.