sábado, 31 de janeiro de 2009

Poesia da angolana Ana Paula Tavares

Segundo um dito umbundu, «Um cesto faz-se de muitos fios». Também uma teia. Teia é o poema fabricado pelos fios das palavras que lhe tecem, minuciosos, o corpo. Assim é a poesia de Ana Paula Tavares, voz depurada da Literatura Africana de Expressão Portuguesa. Manual para Amantes Desesperados, livro editado em 2007 e Ritos de Passagem, o título inaugural da autora, reeditado no ano passado, são duas urdiduras poéticas que motivam este texto.

Em Manual para Amantes Desesperados, a teia que a poeta tece é feita de fogo e sede, de areia e vento, de sangue e febre, de sons e de segredos. Tecedeira exímia, a poeta mostra que é oriunda de um lugar onde «há pedras antigas /gastas das mãos das mulheres /que inventam a farinha de levedar /os dias». Ela conhece os segredos do canto de triste vida do pássaro bem-te-vi e verte-os num lirismo de feminilidade singular: «Deixa as mãos cegas /Aprender a ler o meu corpo /Que eu ofereço vales /curvas de rio /óleos /Deixa as mãos cegas /Descer o rio /Por montes e vales».

Construída com substantivos genesíacos, a poética da angolana nascida em Lubango, província da Huíla, em 1952, mas a viver em Lisboa, é de fortíssima tessitura feminina em diálogo com o elemento masculino: «Deixa a mão pousada na duna/ Enquanto dura a tempestade de areia/ A sede colherá o mel do corpo/ Renasceremos tranquilos/ De cada morte dos corpos/ Eu em ti/ tu em mim/ O deserto à volta.».

Do lado feminino surgem a areia, a duna, a sede, a tempestade, as tranças, a máscara, a árvore, a febre, a solidão; no outro lado, marcadamente masculino, o chão, o sonho, o navio, pássaros, vento, deserto, gritos, búzios. Todavia, entre os dois, há um rio poético que os separa e a articulação, em versos melódicos e de jorro espontâneo, revela-lhes a dicotomia, em quadros intimistas sobre a condição humana: «Deixa olhar o rei /Mas foi o escravo que chegou /Para me semear o corpo de erva rasteira /Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei /Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo /Penteei-me para o rei /Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo».

Numa navegação solitária e desamparada, «Os sonhos são desertos /Com navios encalhados» e dão origem a gritos soterrados: «Os gritos em feixe /dentro de mim». Gritos soterrados sim, mas tornados estrídulos no silêncio da poesia: «Navego uma solidão de búzios /No mar verde de canela e açafrão// Meu coração é um lago /Por onde deslizou a vida /sem flores /Sem nenúfares». E «Ficam os sonhos a voar /Pássaros na boca do vento», e nesta poesia.

Com escrita ritualística, pejada de sonoplastias que agitam os sentidos, o pequeno livro solta os cantos do cuco, da cotovia, do bem-te-vi que articula, pungente, as três sílabas tradicionais do seu nome. Sem dúvida, um abraço lusófono de quem o explica assim:

De onde eu venho nascem os rios /nos nervos da terra /correm certos para o mar ou /perdem-se noutros lugares do tempo /sem que ninguém /os detenha / /Venho de muitos rios e um só mar /o Atlântico /suas cores secretas /a música erudita da praia /a espuma lenta das redes /de onde eu venho há lá e cá.

Ouvem-se também os tambores da mãe África, nas cerimónias ancestrais de iniciação onde a mulher jovem recebia a máscara Pwo, com lágrimas entalhadas abaixo dos olhos numa expressão dolorosa de perda, também simbologia de morte e renascimento. A consagração desta mulher ancestral, no enredo doloroso da sociedade colonial, encontra na palavra poética de Ana Paula Tavares o seu templo de modernidade:

Debaixo da árvore da febre /perdi a máscara Pwo /as pulseiras pesadas /da família / /Vesti o pano de noivar /os colares de missangas /e fiz de novo as tranças. /Preparada para o tempo /caminhei sobre as marcas de sangue /deitei-me /debaixo da árvore da febre//A mulher do mercado trouxe a pemba /traçou a minha testa e /as mãos /O velho soldado /entrançou-me as pernas de histórias e confusão /…/Debaixo da árvore da febre /ardo devagarinho /sem as palavras/ o silêncio /os óleos de protecção /os cantos de atravessar desertos /o fogo sagrado dos antepassados. / Viram a minha máscara Pwo?

Ritos de Passagem

«Dactilas-me o corpo / de A a Z / e reconstróis / asas / seda/ puro espanto /por debaixo das mãos /enquanto abertas /aparecem, pequenas/ as cicatrizes», escreveu a autora no poema Alfabeto, em Ritos de Passagem, o seu primeiro livro de poesia, editado em Angola, em 1985; nascia, então, a poeta e colonizava-se a literatura lusófona.

Ao todo, são vinte e quatro poemas dispostos em três partes («De cheiro macio ao tacto», «Navegação circular» e «Cerimónias de passagem»), ou três «andamentos», como diz Inocência Mata no Prefácio, aludindo às etapas do processo de aprendizagem do Eu poético nesta cerimónia vocabular iniciática.

Feminina, confundindo-se com a terra e a nação, nas quais se prolonga e se explica, a poesia de Ana Paula Tavares tece-se nos anseios primordiais. Nos frutos, quase todos de África, numa sequência de poemas, a autora desvela, com depuração, o mistério feminino. Assim surge a «abóbora menina», com as fases da preparação da mulher («folhinhas verdes/ flor amarela/ ventre redondo»), primeiro menina, «de segredos bem escondidos», depois adolescente, «procurando ser terra», e depois fêmea fecunda que espera que «nela desaguam todos os rapazes»; assim irrompe o erotismo do Mamão, que, cortado longitudinalmente, mostra a carne rosada e húmida, declara a metáfora do desejo e do prazer, a «Frágil vagina semeada /pronta, útil, semanal», onde se formam as ânsias, «se alargam as sedes» e «no meio cresce / insondável / o vazio…».

No poema «Colheitas», traça-se o percurso da mulher em paralelo com o da natureza, com os círculos que completam sobre si mesmas, a natureza por anos de sementeira, a mulher pelos vinte e oito dias do seu ciclo menstrual: «uma viagem /nasce-se, brota-se do chão /e dez anos depois o primeiro / forma-se espera e cai / por gravidade / ao vigésimo oitavo dia».

Noutro poema, a mulher surge fragmentada no seu ser e na sua condição, mas também reivindicando a sua unicidade, a sua utopia, o desejo de libertação; é a mulher confrontada com os seus limites, mas também confrontada com o apelo fundo para os ultrapassar e a vontade de dar conta disso a todas as mulheres:

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado

Editados pela Editorial Caminho, que há muito dá voz às Literaturas de Expressão Portuguesa, os dois pequenos e preciosos livros estão disponíveis com capas belíssimas de Luandino Vieira. Em Ritos de Passagem – na reedição do ano passado –, surgem ilustrações impressivas de Luandino Vieira, também no interior; é uma leitura cromática, a manchas de café, tinta-da-china, sensualidade e erotismo, comprovando-se que o escritor angolano é um dos cativos dos ritos da autora de Manual para Amantes Desesperados.

Paula Tavares, Manual para Amantes Desesperados, Editorial Caminho, 2007 e Ritos de Passagem, Editorial Caminho, 2007

*Texto publicado no sítio da Orgia Literária em 30.01.2009)
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© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom. O objecto, e o texto como sempre.

«Deixa as mãos cegas /Aprender a ler o meu corpo /Que eu ofereço vales /curvas de rio /óleos /Deixa as mãos cegas /Descer o rio /Por montes e vales» é o poema completo?

bj

Teresa disse...

Sim, Hugo, está completo, 8 versos, página 15.

Transcrevo-te mais este, completo:

«Nas tuas mãos começava
O mundo
E nada
Nem o dia
Podia ser mais perfeito

Tu eras o bicho cinzento
Do entrelaçado dos limos
O da multidão
O que deslizava na água
Como a sombra.

Agora alguns anos depois
Um anjo caído
Encontra ninho
No colo em sangue do meu peito»


A.Paula Tavares in Manual para Amantes Desesperados, p.18

Nocturna disse...

Cara Teresa,
Conheço bem a obra de Paula Tavares . E é uma grande alegria vê-la analisada com a elegância da tua escrita .É uma poeta de grande sensibilidade que, embora viva em Portugal,a sensualidade africana explode nos seus poemas.
Que bem a compreendeste. Muito obrigada por isso, nestes ásperos tempos é preciso ler boa poesia.
Um abraço nocturno.

Anónimo disse...

:)