«Sá-Carneiro não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu», escreveu Fernando Pessoa, em 1930, numa carta a Gaspar Simões. Fundador, com Pessoa, do Modernismo português, Mário de Sá-Carneiro escava-se em ânsia em busca do Eu, o Outro, contracena com a própria sombra que o revela, autoflagela-se, autocontempla-se e afunda-se no abismo que perscruta, celebra as vanguardas e respectivos niilismos, cria um edifício de identidade entre a vida e a obra literária ímpar na Literatura Portuguesa.
Mário de Sá-Carneiro - Verso e Prosa chega-nos agora pela mão da Assírio & Alvim. É uma bela edição de capa dura e 669 páginas com «um conjunto coerente de textos que integra o que de mais marcante» o autor escreveu, lê-se na apresentação de Fernando Cabral Martins, responsável pela Edição. Na escolha de textos exclui-se a juvenília poética, as peças de teatro e cartas, cuja importância se integrará noutras ordens de razões, refere-se. Além de «poemas e textos soltos, publicados dispersamente ou enviados em cartas a Fernando Pessoa», em Poesia encontramos os livros Dispersão e Indícios de Oiro, e, em Narrativa, as novelas Princípio, A Confissão de Lúcio e Céu de Fogo.
Influenciado pelas temáticas de Baudelaire, pela investigação psicológica de Edgar Allan Poe, pela embriaguez da palavra nova de Mallarmé e pelo símbolo de Pessanha, entre outros, Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) de todos se impregna, molda e lapida com os ismos das vanguardas, como quem busca o diálogo certo e urgente com a sua alma, revelando, outrossim, a inquietação de uma geração perdida no labirinto do tempo vário, acelerado, ruidoso e ruinoso. Debatendo-se na estranheza de um mundo onde sente não pertencer, o sujeito poético de Sá-Carneiro procura-se no seu interior, revolve, minucioso, a alma – esse «tumor triste» e «gato estranho e seráfico», nas assunções de Baudelaire, esse empecilho e fardo «Que não pesa mas que maça: / O zumbido dum moscardo, / Ou comichão que não passa», segundo o próprio Sá-Carneiro –, «brade a espada» e, narcísico, nimba-se de encanto e cria: «O meu destino é outro – é alto e é raro»; «sou luz harmoniosa / E chama genial que tudo ousa».
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A procura do Outro, o seu duplo, nos subterrâneos da alma fá-lo pressentir «um grande intervalo»: «Eu não sou eu nem sou o outro», diz e lança-se, delirante, num «inter-sonho» onde tacteia e resvala: «Quero reunir-me, e todo me dissipo – / Luto, estrebucho… Em vão! Silvo para além…». Estava encontrada a bússola desta poesia: o desdobramento do sujeito na demanda incessante do sentimento e das sensações. Se para Pessanha a dor, «esta falta d’harmonia», é luz sem a qual «o coração é quase nada», porquanto a ausência da dor é a morte, também Mário de Sá-Carneiro arranca a sua obra à dor num processo de desvendamento interior que lhe desintegra progressivamente a personalidade: «Que droga foi a que me inoculei? / Ópio d’inferno em vez de paraíso?... / Que sortilégio a mim próprio lancei? / Como é que em dor genial eu me eterizo?» (p. 20). Embora não conseguindo atingir a despersonalização de Pessoa – o distanciar-se do Outro –, Sá-Carneiro foi um sensacionista de excelência, essa arte que, pela ampliação, procura buscar no objecto uma «qualquer espécie de além-ele», segundo Pessoa, e a sua visão interseccionista concorreu para a teatralidade que imprimiu nas suas personagens: «Tudo me é conduzido no espaço / Por inúmeras intersecções de planos / Múltiplos, livres, resvalantes. // E lá, no grande Espelho de fantasmas / Que ondula e se entregolfa todo o meu passado, / Se desmorona o meu presente, / E o meu futuro é já poeira..» (p. 42).
O desdobramento e o desmoronamento do Eu revelam, ainda, a astenia – «falta-me egoísmo para ascender ao céu, / falta-me unção p’ra me afundar no lodo» – que é também a da sua geração, o que o faz metaforizar a vida – «E ei-la, a mona, lá está, / Estendida, a perna traçada» – e a alma – «o raio já bebe vinho, / Coisa que nunca fazia». Sem saber fixar-se, e «castrado d’alma», afunda-se na dor: «Serei um emigrado doutro mundo / Que nem na minha dor posso encontrar-me?...». O templo que criou revelava um deserto, um grito surdo como o pintado por Munch, um sudário espesso do qual não se consegue desprender, tecido com a inconstância da alma e a consciência disso. Atente-se no excerto e nas maiúsculas enfáticas «Arco» – a curva obsessiva – e «Ânsia», motores da tragédia pessoal:
Numa atmosfera de ressonância simbolista (o “mistério”, o “sonho”, o “vago”), levada à desmesura, o sujeito poético percorre-se «em salões sem janelas nem portas, / Longas salas de trono a espessas densidades», «grandes escadarias», destroços, corrimãos partidos, lustres de cristal, velas de ouro, cetins rasgados, tectos e frescos enegrecidos, num cenário de degradação sucessiva, amplificado pelos espelhos deformantes em que se vê e desfruta a imagem grotesca e trágica do seu Outro, que ridiculariza com ironia angustiada, como se constata no poema intitulado exactamente «Aquele outro» (p. 121), onde se autocaracteriza como «o dúbio mascarado – o mentiroso», «O sem nervos nem Ânsia – o papa-açorda», «O raimoso, o corrido, o desleal – / O balofo arrotando Império astral: / O mago sem condão – o Esfinge gorda…». A obsessão do sujeito destruir o corpo que lhe polui a alma é recorrente na escrita de Sá-Carneiro; é o poder da «Grande Sombra», o espectro da dor, a loucura e a morte que percorrem toda a obra de Sá-Carneiro, num misto de angústia e curiosidade da morte, numa sondagem que se espraia à recolha que faz de textos de suicidas seus contemporâneos, amigos e conhecidos, como é o caso do texto «A profecia», sobre o suicídio de António Maldonado, poeta do Crepúsculo, com excertos do seu diário que indiciam as razões do suicídio, e onde se lê: «Suicidou-se ontem o meu alfaiate. Esse não teve medo. Ele próprio foi ao seu encontro.» (p. 214). «Não me pude vencer, mas posso-me esmagar», «Ai que saudades da morte…», «Quero dormir… ancorar…», escreve Mário de Sá-Carneiro como quem sente o mal a fitá-lo com o seu olhar de corvo, e que o faz ficcionar epílogos como este:
Edgar Allan Poe escreveu, no «Soneto-Silêncio», que o silêncio tem corpo, que «por si só não pode fazer mal», porém se lançado «o Fado inexorável, / De encontro à sua sombra (elfo inefável / Que assola os ermos onde outrem jamais / Pisou)», que Deus guarde «então a alma!»*. Fingindo a dor que deveras sentia, Mário de Sá-Carneiro revelou a sua Clepsidra, o relógio que marcava, a sua proximidade da morte.
«uma poção de estricnina / deu-lhe a moleza e foi dormir // preferiu umas dores no lado esquerdo da alma / uns disparates com as pernas na hora apaziguadora / herói à sua maneira recusou-se / a beber o pátrio mijo / deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto, / desembarcou como tinha embarcado // sem Jeito Para o Negócio», escreveu Mário Cesariny num poema sobre Mário de Sá-Carneiro**.
«A vida é um lugar comum. Eu soube evitar esse lugar comum. Eis tudo», escreve Mário de Sá-Carneiro através de uma personagem de «O Homem dos Sonhos» e nela reconhecemo-lo, «o príncipe sonâmbulo do sul», «o mítico rajá de Índias de tule», o «Rei exilado, Vagabundo dum sonho de sereia», a vertigem plasmada em Língua Portuguesa.
Notas:
* Edgar Allan Poe, Obra Poética Completa, p.143, tradução de Margarida Vale de Gato, Tinta-da-China, 2009
** Cesariny Uma Grande Razão – os poemas maiores, p.34, Assírio & Alvim, 2007
O desdobramento e o desmoronamento do Eu revelam, ainda, a astenia – «falta-me egoísmo para ascender ao céu, / falta-me unção p’ra me afundar no lodo» – que é também a da sua geração, o que o faz metaforizar a vida – «E ei-la, a mona, lá está, / Estendida, a perna traçada» – e a alma – «o raio já bebe vinho, / Coisa que nunca fazia». Sem saber fixar-se, e «castrado d’alma», afunda-se na dor: «Serei um emigrado doutro mundo / Que nem na minha dor posso encontrar-me?...». O templo que criou revelava um deserto, um grito surdo como o pintado por Munch, um sudário espesso do qual não se consegue desprender, tecido com a inconstância da alma e a consciência disso. Atente-se no excerto e nas maiúsculas enfáticas «Arco» – a curva obsessiva – e «Ânsia», motores da tragédia pessoal:
Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que há-de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular…
Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos…
A cada passo a minha alma é outra cruz,
E o meu coração gira: é uma roda de cores…
Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo…
Já não é o meu rastro o rastro d’oiro que ainda sigo…
Resvalo pontes de gelatina e bolores…
– Hoje a luz para mim é sempre meia-luz…
….. (Subo por mim acima como por uma escada de corda,
E a minha Ânsia é um trapézio escangalhado…) (pp. 64-65)
Numa atmosfera de ressonância simbolista (o “mistério”, o “sonho”, o “vago”), levada à desmesura, o sujeito poético percorre-se «em salões sem janelas nem portas, / Longas salas de trono a espessas densidades», «grandes escadarias», destroços, corrimãos partidos, lustres de cristal, velas de ouro, cetins rasgados, tectos e frescos enegrecidos, num cenário de degradação sucessiva, amplificado pelos espelhos deformantes em que se vê e desfruta a imagem grotesca e trágica do seu Outro, que ridiculariza com ironia angustiada, como se constata no poema intitulado exactamente «Aquele outro» (p. 121), onde se autocaracteriza como «o dúbio mascarado – o mentiroso», «O sem nervos nem Ânsia – o papa-açorda», «O raimoso, o corrido, o desleal – / O balofo arrotando Império astral: / O mago sem condão – o Esfinge gorda…». A obsessão do sujeito destruir o corpo que lhe polui a alma é recorrente na escrita de Sá-Carneiro; é o poder da «Grande Sombra», o espectro da dor, a loucura e a morte que percorrem toda a obra de Sá-Carneiro, num misto de angústia e curiosidade da morte, numa sondagem que se espraia à recolha que faz de textos de suicidas seus contemporâneos, amigos e conhecidos, como é o caso do texto «A profecia», sobre o suicídio de António Maldonado, poeta do Crepúsculo, com excertos do seu diário que indiciam as razões do suicídio, e onde se lê: «Suicidou-se ontem o meu alfaiate. Esse não teve medo. Ele próprio foi ao seu encontro.» (p. 214). «Não me pude vencer, mas posso-me esmagar», «Ai que saudades da morte…», «Quero dormir… ancorar…», escreve Mário de Sá-Carneiro como quem sente o mal a fitá-lo com o seu olhar de corvo, e que o faz ficcionar epílogos como este:
Do alto da sua torre, do alto da cúpula de aço refulgente, debruçava-se para ver o seu triunfo. E via a Glória. Mas de súbito houvera um bater de asas negras. Ao mesmo tempo, as nuvens áureas, turbilhonando, cegaram-lhe a vista: se olhava para a terra, o solitário do azul não via a terra; se olhava para o céu, não via o céu… Debruçou-se mais. Batiam sempre as grandes asas negras. Louco de pavor, quis fugir… Precipitou-se… foi-se abismando no espaço… Em vez da luz, as trevas impenetráveis; em vez das alturas, a profundidade. Mas a profundidade e as trevas aliviam os corpos fatigados. O artista sublime descansava. (p. 292)
Edgar Allan Poe escreveu, no «Soneto-Silêncio», que o silêncio tem corpo, que «por si só não pode fazer mal», porém se lançado «o Fado inexorável, / De encontro à sua sombra (elfo inefável / Que assola os ermos onde outrem jamais / Pisou)», que Deus guarde «então a alma!»*. Fingindo a dor que deveras sentia, Mário de Sá-Carneiro revelou a sua Clepsidra, o relógio que marcava, a sua proximidade da morte.
«uma poção de estricnina / deu-lhe a moleza e foi dormir // preferiu umas dores no lado esquerdo da alma / uns disparates com as pernas na hora apaziguadora / herói à sua maneira recusou-se / a beber o pátrio mijo / deu a mão ao Antero, foi-se, e pronto, / desembarcou como tinha embarcado // sem Jeito Para o Negócio», escreveu Mário Cesariny num poema sobre Mário de Sá-Carneiro**.
«A vida é um lugar comum. Eu soube evitar esse lugar comum. Eis tudo», escreve Mário de Sá-Carneiro através de uma personagem de «O Homem dos Sonhos» e nela reconhecemo-lo, «o príncipe sonâmbulo do sul», «o mítico rajá de Índias de tule», o «Rei exilado, Vagabundo dum sonho de sereia», a vertigem plasmada em Língua Portuguesa.
Notas:
* Edgar Allan Poe, Obra Poética Completa, p.143, tradução de Margarida Vale de Gato, Tinta-da-China, 2009
** Cesariny Uma Grande Razão – os poemas maiores, p.34, Assírio & Alvim, 2007
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© Teresa Sá Couto
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