«O fado também pode ser tocado num saxofone»: esta é a chave de O Trompete de Miles Davis, romance de estreia de Francisco Duarte Azevedo, que desenha o policial, mas é a observação social que o enche gizada num roteiro da emigração portuguesa na América. Dúctil, a escrita mostra que é voo de memórias, voz de sonhos traídos e depoimento do virtuosismo com que se improvisam os dias.
A narrativa é controlada pela voz de um narrador participante, um detective privado em Newark, o «Sherlock do bairro» que «encaixava perfeitinho naquelas rotinas», rotinas que são abaladas pelo desaparecimento do trompete verde de Miles Davis da vitrina da Dana Library, durante uma palestra de um escritor português. A estratégia narrativa da primeira pessoa possibilita exploraram-se eficazmente mundos interiores anquilosados, estabelecer cumplicidade com o leitor devido à característica de depoimento e demonstrar uma consciência actuante, o que dá carácter intervencionista à obra, que pretende problematizar a condição dos emigrantes. Tudo tarefas que o autor cumpre com apuro.
Conta-se a história dum «tipo banal», um emigrante português – e, por ele, do grupo social onde se insere –, que seguiu o sonho de ser actor em Hollywood, mas lavou pratos, foi professor de português num colégio e acabou a sufocar num escritório de vidraças fechadas, com o sonho emparedado no subúrbio que partilha com grupos étnicos, sem conviver, «muros invisíveis» entre raças, culturas e tradições, «movendo-se como as lamas de um vulcão».
Delineada a personagem e estabelecida a intenção, a narrativa, inteligente, lança mão à ironia, ao humor e tece uma teia subtil – que, por isto, não se compadece com leituras descuidadas – com elementos narrativos de transgressão a uma vida escandida na luta pela sobrevivência, que configuram o desejo de liberdade ou representam as asas de sonhos sublimados. Assim surgem, ao longo das 301 páginas, referências a pássaros que cruzam os céus, pássaros que se metamorfoseiam «em harmonias e desarmonias de sons de um trompete», numa clara contaminação das técnicas do jazz na narrativa, a metamorfose da improvisação que servia a necessidade humana, básica, de exteriorização de emoções contidas; o detective cria «hologramas de Miles Davis por toda a parte», sons que o fazem recordar a «batida tranquila de vagas na vazante, a maré rodopiando, retrocedendo e voltando a rodopiar» e onde vê uma «imperturbável e explosiva mistura de cores»; o protagonista olha todos os dias para um quadro de Nova Iorque, de um pintor de rua, onde «podia inventar e desejar fosse o que fosse naquela cidade», «compensar a ausência» e a nostalgia que ela lhe «causava ali tão perto»; finalmente, a poltrona do escritório, onde o detective se refugia, desempenha um papel essencial no desenho psicológico do protagonista e na configuração do desejo, secreto, de liberdade: «deixar apenas que a memória aflorasse sem se intrometer demasiado no âmago das coisas. Queria tornar-me leve» (p. 297).
Tudo na escrita é preciso, como a precisão do relógio de pulso – «um velho Baumatic» – que o detective usa, também símbolo da memória, gesto assumido directamente no texto por Francisco Azevedo, diplomata de carreira: «Há sempre uns tipos que teimam em escrever as suas memórias como se o mundo não passasse sem eles: os detectives, os políticos e os diplomatas.» (p. 296)
Teixeira de Pascoaes escreveu que «a saudade retoca certas imagens da memória e acende uma auréola divina em volta delas». Enformando este projecto, a narrativa divaga por espaços feitos itinerários da memória, ilumina-os com sinestesias, descreve-os com perfeição cinematográfica. Assim surgem: o «bate papo adocicado» na claridade e penumbra do Meal’s Place, com as suas janelas de cortinas vermelhas, ruído de talheres e tilintar de copos; um café expresso duplo no Starbucks, «ténue compensação» com saudades do café da Brasileira do Chiado ou do Nicola; a doçaria portuguesa do café La Provence, para onde caminhava nos fins de tarde «com a veneração de um crente», onde se sentia «barco em porto seguro» e «aos sábados fazia o gosto ao dedo com galão escuro e torradas com manteiga desfazendo-se salgadas sobre as papilas da língua», trazendo-lhe «na trinca o aroma de Lisboa»; o percurso entre La Provence e a Penn Station, «esse caminho mágico» que é a Ferry Street ou a Avenida de Portugal», de negócios dos portugueses, onde abundavam «criaturas mitológicas, descidas das serras do Marão ou da Estrela, de suas faldas, vales e encostas, largadas de povoas e gândaras costeiras ao mar oceano como Aveiro, Ílhavo, Murtosa e outras baixadas em torno da ria.» (p.91)
Francisco Azevedo mostra-nos que a escrita é uma casa: «até um pássaro busca o seu ninho», lê-se neste romance que convida o leitor a ser detective nas páginas para prazer da sua leitura. Esperemos que a casa se amplie, pois este foi um início de gigante.
Conta-se a história dum «tipo banal», um emigrante português – e, por ele, do grupo social onde se insere –, que seguiu o sonho de ser actor em Hollywood, mas lavou pratos, foi professor de português num colégio e acabou a sufocar num escritório de vidraças fechadas, com o sonho emparedado no subúrbio que partilha com grupos étnicos, sem conviver, «muros invisíveis» entre raças, culturas e tradições, «movendo-se como as lamas de um vulcão».
Delineada a personagem e estabelecida a intenção, a narrativa, inteligente, lança mão à ironia, ao humor e tece uma teia subtil – que, por isto, não se compadece com leituras descuidadas – com elementos narrativos de transgressão a uma vida escandida na luta pela sobrevivência, que configuram o desejo de liberdade ou representam as asas de sonhos sublimados. Assim surgem, ao longo das 301 páginas, referências a pássaros que cruzam os céus, pássaros que se metamorfoseiam «em harmonias e desarmonias de sons de um trompete», numa clara contaminação das técnicas do jazz na narrativa, a metamorfose da improvisação que servia a necessidade humana, básica, de exteriorização de emoções contidas; o detective cria «hologramas de Miles Davis por toda a parte», sons que o fazem recordar a «batida tranquila de vagas na vazante, a maré rodopiando, retrocedendo e voltando a rodopiar» e onde vê uma «imperturbável e explosiva mistura de cores»; o protagonista olha todos os dias para um quadro de Nova Iorque, de um pintor de rua, onde «podia inventar e desejar fosse o que fosse naquela cidade», «compensar a ausência» e a nostalgia que ela lhe «causava ali tão perto»; finalmente, a poltrona do escritório, onde o detective se refugia, desempenha um papel essencial no desenho psicológico do protagonista e na configuração do desejo, secreto, de liberdade: «deixar apenas que a memória aflorasse sem se intrometer demasiado no âmago das coisas. Queria tornar-me leve» (p. 297).
Tudo na escrita é preciso, como a precisão do relógio de pulso – «um velho Baumatic» – que o detective usa, também símbolo da memória, gesto assumido directamente no texto por Francisco Azevedo, diplomata de carreira: «Há sempre uns tipos que teimam em escrever as suas memórias como se o mundo não passasse sem eles: os detectives, os políticos e os diplomatas.» (p. 296)
Teixeira de Pascoaes escreveu que «a saudade retoca certas imagens da memória e acende uma auréola divina em volta delas». Enformando este projecto, a narrativa divaga por espaços feitos itinerários da memória, ilumina-os com sinestesias, descreve-os com perfeição cinematográfica. Assim surgem: o «bate papo adocicado» na claridade e penumbra do Meal’s Place, com as suas janelas de cortinas vermelhas, ruído de talheres e tilintar de copos; um café expresso duplo no Starbucks, «ténue compensação» com saudades do café da Brasileira do Chiado ou do Nicola; a doçaria portuguesa do café La Provence, para onde caminhava nos fins de tarde «com a veneração de um crente», onde se sentia «barco em porto seguro» e «aos sábados fazia o gosto ao dedo com galão escuro e torradas com manteiga desfazendo-se salgadas sobre as papilas da língua», trazendo-lhe «na trinca o aroma de Lisboa»; o percurso entre La Provence e a Penn Station, «esse caminho mágico» que é a Ferry Street ou a Avenida de Portugal», de negócios dos portugueses, onde abundavam «criaturas mitológicas, descidas das serras do Marão ou da Estrela, de suas faldas, vales e encostas, largadas de povoas e gândaras costeiras ao mar oceano como Aveiro, Ílhavo, Murtosa e outras baixadas em torno da ria.» (p.91)
Francisco Azevedo mostra-nos que a escrita é uma casa: «até um pássaro busca o seu ninho», lê-se neste romance que convida o leitor a ser detective nas páginas para prazer da sua leitura. Esperemos que a casa se amplie, pois este foi um início de gigante.
O Trompete de Miles Davis, Francisco Duarte Azevedo; Planeta, 2011
© Teresa Sá Couto
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