O livro de poesia As Habitações Interrompidas, de Francisco Duarte Azevedo, foi lançado no dia 27 de Novembro de 2012, no belíssimo Museu da Música, no Alto dos Moinhos, em Lisboa. O livro tem Prefácio meu e a Apresentação Pública esteve a meu cargo. É o texto do Prefácio que aqui vos deixo. Divulgarei oportunamente o texto que serviu de base à sessão do lançamento.
(na imagem, da esquerda para a direita: Francisco Duarte Azevedo, Teresa Adão - escritora e directora da editora Edições Esgotadas - , Emília Noronha - Presidente da Junta de Freguesia do Alto dos Moinhos - e eu. A fotografia é de Paulo José Coelho, da editora Edições Esgotadas.)
Uma morada de sal e luz
devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar.
«O espírito do pintor deve assemelhar-se
a um espelho que adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem
diante de si», defende Leonardo da Vinci no Tratado
de Pintura. Francisco Duarte Azevedo cruza a estética da poesia com a
estética da pintura num canto que urde a existência interior do sujeito que
«interpreta o mundo» e «luta contra as sombras/dos fantasmas, por uma
habitação/não interrompida». A arte poética de Habitações Interrompidas carrega um trabalho apurado sobre a emoção
e a memória, acto de buscar e conhecer, recorrendo a uma voz simbólica que
interroga interrogando-se, a um olhar dinâmico que, como janela da alma e espelho
do mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matéria no corpo do poema, para
que a memória sobreviva.
Como
com a palavra, um quadro é feito de «pequenos nadas», pinta-se «com a argamassa
/dos detalhes que preenchem /a vida», um quadro «Intervém», nele está o grito
de liberdade dos emparedados, «os muros das habitações/transitórias», «os
séculos da memória /e as histórias das aldeias /dizimadas», um quadro «denuncia
o tempo /traz a memória nas mãos», «um quadro é ternura /banhada pelas manhãs
/de luz», «É espaço rendido à leitura». Sobretudo, e sendo espaço de liberdade
e de busca, «Um quadro é espaço vedado à morte» ou, dito ainda assim: «Procuro
o meu ninho/ no aconchego/da brancura de uma tela.// […] uma simples cor
pousada /como a pegada de ave /no reflexo das águas, /rasgam os sulcos por onde
/seguirás na direcção do mar // Eis a claridade /que segue os meus passos /no
percurso /entre a vida possível /e a morte provável».
Contra
a morte, está este canto lírico de um «Ser feito de mar» que lança ao mar todos
os seus textos poéticos, para que o «sal e a luz» temperem as palavras. Também
as razões são claras e assim enunciadas: «Nunca possuí um lugar a que chamasse
/habitação permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque o mar é o berço
/desta habitação, o lugar onde voo/ sem asas e onde escuto a tua voz». E «Tudo
voa» nesta poesia que se problematiza a si mesma, cônscia até da fugacidade do
traço na página: o «poeta é amador das palavras corroídas pelo tempo», a poesia
«é simples passatempo», «Uma voz vazia, a da poesia» ou, ainda: «trago nada nas
mãos / a não ser um livro de símbolos, /um manual de preces /e a voz sagrada do
tempo /beijando-me as faces». É da voz do silêncio que aqui se fala e da
capacidade do sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silêncio que é a casa do
ser e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio é, afinal, o lugar
do pleno. É esse silêncio iluminado que encontramos neste livro de poemas «como
uma janela/ voltada para o sol» que inunda o mar, donde o sujeito «Invoca a
terra, as aves e todos os animais perdidos na floresta», à sua semelhança,
«embebe de sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos/ na espuma do
tempo», escuta e dá-nos a escutar a voz vigilante da memória na «zoada dos
búzios», nas janelas que «desvelam/ os segredos na água» e o corpo da palavra,
janelas que, na ânsia de horizonte, se rasgam em varandas que dão para o mar
adejado de gaivotas, varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam «a luz e
toda a poalha» do «azul profundo» e infinito.
«Entre
um quadro e o infinito» há, pois, a luz que, ávida, traça as rotas de uma
viagem vital, espargindo na brancura, da tela ou da página, cores
incandescentes com que se pressentem silêncios: «As minhas cores /sobre a tela
transpiram /as insónias dos pássaros». Na «senda dos limites», o sujeito detém-se
na voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: «porque é afinal para ti que
corro /no limite da solidão», lê-se, solidão que se vai fundando em metáforas e
hipálages. É preciso fixar a luz efémera das manhãs efémeras, a «luz
deslumbrante /da claridade do mar», «luz estonteante» onde «aporta /o sussurro
do mundo/ e a navegação silente», a luz que «madruga» os lábios, que «amornece»
o corpo «absorvido no calor /de um imbondeiro», a luz que testemunha «o abraço
à luz do dia /a uma almofada vazia», a luz que esclarece os contornos do corpo
da palavra, a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de toda
a ternura estão as mãos. Elas retêm
a febre e a luz, levedam o silêncio, «A polpa dos dedos /tacteia a pele da
poesia», as palmeiras lêem e dedilham com facilidade a líquida e secreta
mensagem, num grito de vida: «Sinto as fibras do meu corpo / a latejarem de
poesia e /já não posso parar. Deixei /de comandar a minha mão. /Ela move-se por
um impulso /azul que escorre, líquido, /nas páginas de um caderno /de notas.». A
recolha da luz na página surge magnificentemente nos poemas narrativos dos
pescadores na sua faina: «os pescadores lançaram as redes e recolheram / o mar
dentro de um círculo amarelo. Nele escutei tua voz /que um pássaro inquieto /
me trouxe até ao varandim /onde poisou num breve aceno /de asas e ternura.
Entre ele / e o mar ficou apenas /a distância de um sopro.», e, ainda, «Os
pescadores regressaram /com os seus círculos amarelos /e cercaram o mar.
Depois,/ puxaram as redes e – com / elas – o mar para dentro dos/ seus barcos.
E o mar, na sua/ tranquilidade líquida,/ deixou-se levar. As palmeiras
/afagaram o suspiro /da ave que se aquietou /no topo de uma habitação./ O mar
reconheceu-te /e prometeu enviar-te /a chuva na próxima estação.».
Na
solidão desta poesia, reina o tu
secreto – cuja ausência configura o vazio do sujeito, dá plasticidade e
luminosidade à composição poética – que é voz, confidente, interlocutor,
cúmplice e espelho do eu. A
construção do tu é o resultado da
«obsessão pela luz». Um tu que é sal,
azul ou verde rutilante das esmeraldas, «zoada dos búzios», «razão de respirar»
do sujeito. Ao tu, o sujeito pergunta
«Escutas?», «Sentes?», e roga: «Espera serenamente a mensagem/ do silêncio […]/
deixa que a chuva /se torne a flor de sal /que alimentará a minha voz.»; um tu que ouve as perguntas e, em murmúrio
sensual, impulsiona o canto inquieto e fortifica a morada almejada: «Entre um
muro /branco rodeando a colina /sobre o mar e o caminho /das palmeiras e baobás
/que envolvem as areias / na maresia, estás aí. /E é tudo o que preciso saber.».
Poesia
corpórea, táctil, sensorial, com necessidade de ver, cheirar as flores e
sentir-lhes a respiração – por isso «as flores pintadas numa tela» deixam de
ser flores – , tem de questionar a relação com o divino: chama-se por um Deus
«que chora como a humanidade», «hirto e humílimo, /como se fosse homem
enjeitado /na sua própria mátria», um Deus cuja mão deveria ser de «humana
matéria».
No
«exercício implacável» da criação, as mãos desta poesia de experiências
acumuladas pintam a paisagem, escrevem a temporalidade com o estilete da
memória, preenchem a habitação transitória; «a ausência é contemplar, /à luz
das manhãs /os muros brancos rasantes/ao mar onde a voz do Profeta/ se expande
dos minaretes», e «o instante de contemplar/ desnuda a poesia». Munido de
hipálages – «Neste mar senegalês /revejo a luz do mar /de Lisboa, ancorada /à
solidão / no cais das colunas» –, o sujeito navega pelas próprias artérias
navegando pelo mar interior da cidade de Lisboa, a «cidade das mil colinas», de
«telhados/ pintalgados de gatos e pombos», com «varandins /de manjericos e
lençóis /esvoaçando como bandeiras», «avenidas percorridas /à luz mortiça das
tardes de chuva», «colinas onde as aves habitam», «perfil das gaivotas atiladas
/no cais das colunas», acusa a incapacidade das palavras, dos símbolos não
desenharem «o vento e as mãos /tecendo a lua /numa rua de Lisboa», e reage num
gesto de evasão para o futuro: «tocaremos a poesia nos /miradouros» ou, ainda, «pela
madrugada, voarei /na direcção do mar em busca da solidão.».
«voltarei
um dia /para te buscar / entre os búzios», lê-se neste Habitações Interrompidas em versos que atingem o futuro deixando
rastos do presente naqueles dias que virão. Resta-me dizer que o leitor da
melhor poesia sempre aguarda o regresso da palavra desassossegadamente iluminada,
como é esta de Francisco Duarte Azevedo.
Teresa Sá Couto
Lisboa, Julho de 2012
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