domingo, 2 de dezembro de 2012

Poesia de Francisco Duarte Azevedo

O livro de poesia As Habitações Interrompidas, de Francisco Duarte Azevedo, foi lançado no dia 27 de Novembro de 2012, no belíssimo Museu da Música, no Alto dos Moinhos, em Lisboa. O livro tem Prefácio meu e a Apresentação Pública esteve a meu cargo. É o texto do Prefácio que aqui vos deixo. Divulgarei oportunamente o texto que serviu de base à sessão do lançamento.
 
 
(na imagem, da esquerda para a direita: Francisco Duarte Azevedo, Teresa Adão - escritora e directora da editora  Edições Esgotadas - ,  Emília Noronha - Presidente da Junta de Freguesia do Alto dos Moinhos - e eu. A fotografia é de Paulo José Coelho, da editora Edições Esgotadas.)
 
 

Uma morada de sal e luz

 
é da palavra errante que
devemos falar, da distância
das coisas ou da cor do mar.

                        João Miguel Fernandes Jorge

 
 Diplomata de carreira, com a condição de errante pelo mundo, Francisco Duarte Azevedo busca na palavra literária uma habitação na habitação interrompida. O pequeno livro de poemas Os Ícones, de 1998, uma edição búlgara com o patrocínio e apoio da Associação dos Luso-Falantes na Bulgária, iniciava a catedral dessa demanda; o seu romance de estreia, O Trompete de Miles Davis, de 2011, talhava excertos de prosa poética fulgurante; neste Habitações Interrompidas, Francisco Duarte Azevedo regressa «à intempestiva forma caótica do silêncio», à água, «às linhas que atam / (como a chuva) / o corpo às algas do mar», ancora-se no sal da deriva e encontra refúgio na luz grande do mar.

«O espírito do pintor deve assemelhar-se a um espelho que adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem diante de si», defende Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura. Francisco Duarte Azevedo cruza a estética da poesia com a estética da pintura num canto que urde a existência interior do sujeito que «interpreta o mundo» e «luta contra as sombras/dos fantasmas, por uma habitação/não interrompida». A arte poética de Habitações Interrompidas carrega um trabalho apurado sobre a emoção e a memória, acto de buscar e conhecer, recorrendo a uma voz simbólica que interroga interrogando-se, a um olhar dinâmico que, como janela da alma e espelho do mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matéria no corpo do poema, para que a memória sobreviva.

Como com a palavra, um quadro é feito de «pequenos nadas», pinta-se «com a argamassa /dos detalhes que preenchem /a vida», um quadro «Intervém», nele está o grito de liberdade dos emparedados, «os muros das habitações/transitórias», «os séculos da memória /e as histórias das aldeias /dizimadas», um quadro «denuncia o tempo /traz a memória nas mãos», «um quadro é ternura /banhada pelas manhãs /de luz», «É espaço rendido à leitura». Sobretudo, e sendo espaço de liberdade e de busca, «Um quadro é espaço vedado à morte» ou, dito ainda assim: «Procuro o meu ninho/ no aconchego/da brancura de uma tela.// […] uma simples cor pousada /como a pegada de ave /no reflexo das águas, /rasgam os sulcos por onde /seguirás na direcção do mar // Eis a claridade /que segue os meus passos /no percurso /entre a vida possível /e a morte provável».
Contra a morte, está este canto lírico de um «Ser feito de mar» que lança ao mar todos os seus textos poéticos, para que o «sal e a luz» temperem as palavras. Também as razões são claras e assim enunciadas: «Nunca possuí um lugar a que chamasse /habitação permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque o mar é o berço /desta habitação, o lugar onde voo/ sem asas e onde escuto a tua voz». E «Tudo voa» nesta poesia que se problematiza a si mesma, cônscia até da fugacidade do traço na página: o «poeta é amador das palavras corroídas pelo tempo», a poesia «é simples passatempo», «Uma voz vazia, a da poesia» ou, ainda: «trago nada nas mãos / a não ser um livro de símbolos, /um manual de preces /e a voz sagrada do tempo /beijando-me as faces». É da voz do silêncio que aqui se fala e da capacidade do sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silêncio que é a casa do ser e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio é, afinal, o lugar do pleno. É esse silêncio iluminado que encontramos neste livro de poemas «como uma janela/ voltada para o sol» que inunda o mar, donde o sujeito «Invoca a terra, as aves e todos os animais perdidos na floresta», à sua semelhança, «embebe de sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos/ na espuma do tempo», escuta e dá-nos a escutar a voz vigilante da memória na «zoada dos búzios», nas janelas que «desvelam/ os segredos na água» e o corpo da palavra, janelas que, na ânsia de horizonte, se rasgam em varandas que dão para o mar adejado de gaivotas, varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam «a luz e toda a poalha» do «azul profundo» e infinito.
«Entre um quadro e o infinito» há, pois, a luz que, ávida, traça as rotas de uma viagem vital, espargindo na brancura, da tela ou da página, cores incandescentes com que se pressentem silêncios: «As minhas cores /sobre a tela transpiram /as insónias dos pássaros». Na «senda dos limites», o sujeito detém-se na voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: «porque é afinal para ti que corro /no limite da solidão», lê-se, solidão que se vai fundando em metáforas e hipálages. É preciso fixar a luz efémera das manhãs efémeras, a «luz deslumbrante /da claridade do mar», «luz estonteante» onde «aporta /o sussurro do mundo/ e a navegação silente», a luz que «madruga» os lábios, que «amornece» o corpo «absorvido no calor /de um imbondeiro», a luz que testemunha «o abraço à luz do dia /a uma almofada vazia», a luz que esclarece os contornos do corpo da palavra, a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de toda a ternura estão as mãos. Elas retêm a febre e a luz, levedam o silêncio, «A polpa dos dedos /tacteia a pele da poesia», as palmeiras lêem e dedilham com facilidade a líquida e secreta mensagem, num grito de vida: «Sinto as fibras do meu corpo / a latejarem de poesia e /já não posso parar. Deixei /de comandar a minha mão. /Ela move-se por um impulso /azul que escorre, líquido, /nas páginas de um caderno /de notas.». A recolha da luz na página surge magnificentemente nos poemas narrativos dos pescadores na sua faina: «os pescadores lançaram as redes e recolheram / o mar dentro de um círculo amarelo. Nele escutei tua voz /que um pássaro inquieto / me trouxe até ao varandim /onde poisou num breve aceno /de asas e ternura. Entre ele / e o mar ficou apenas /a distância de um sopro.», e, ainda, «Os pescadores regressaram /com os seus círculos amarelos /e cercaram o mar. Depois,/ puxaram as redes e – com / elas – o mar para dentro dos/ seus barcos. E o mar, na sua/ tranquilidade líquida,/ deixou-se levar. As palmeiras /afagaram o suspiro /da ave que se aquietou /no topo de uma habitação./ O mar reconheceu-te /e prometeu enviar-te /a chuva na próxima estação.».
Na solidão desta poesia, reina o tu secreto – cuja ausência configura o vazio do sujeito, dá plasticidade e luminosidade à composição poética – que é voz, confidente, interlocutor, cúmplice e espelho do eu. A construção do tu é o resultado da «obsessão pela luz». Um tu que é sal, azul ou verde rutilante das esmeraldas, «zoada dos búzios», «razão de respirar» do sujeito. Ao tu, o sujeito pergunta «Escutas?», «Sentes?», e roga: «Espera serenamente a mensagem/ do silêncio […]/ deixa que a chuva /se torne a flor de sal /que alimentará a minha voz.»; um tu que ouve as perguntas e, em murmúrio sensual, impulsiona o canto inquieto e fortifica a morada almejada: «Entre um muro /branco rodeando a colina /sobre o mar e o caminho /das palmeiras e baobás /que envolvem as areias / na maresia, estás aí. /E é tudo o que preciso saber.».
Poesia corpórea, táctil, sensorial, com necessidade de ver, cheirar as flores e sentir-lhes a respiração – por isso «as flores pintadas numa tela» deixam de ser flores – , tem de questionar a relação com o divino: chama-se por um Deus «que chora como a humanidade», «hirto e humílimo, /como se fosse homem enjeitado /na sua própria mátria», um Deus cuja mão deveria ser de «humana matéria».
No «exercício implacável» da criação, as mãos desta poesia de experiências acumuladas pintam a paisagem, escrevem a temporalidade com o estilete da memória, preenchem a habitação transitória; «a ausência é contemplar, /à luz das manhãs /os muros brancos rasantes/ao mar onde a voz do Profeta/ se expande dos minaretes», e «o instante de contemplar/ desnuda a poesia». Munido de hipálages – «Neste mar senegalês /revejo a luz do mar /de Lisboa, ancorada /à solidão / no cais das colunas» –, o sujeito navega pelas próprias artérias navegando pelo mar interior da cidade de Lisboa, a «cidade das mil colinas», de «telhados/ pintalgados de gatos e pombos», com «varandins /de manjericos e lençóis /esvoaçando como bandeiras», «avenidas percorridas /à luz mortiça das tardes de chuva», «colinas onde as aves habitam», «perfil das gaivotas atiladas /no cais das colunas», acusa a incapacidade das palavras, dos símbolos não desenharem «o vento e as mãos /tecendo a lua /numa rua de Lisboa», e reage num gesto de evasão para o futuro: «tocaremos a poesia nos /miradouros» ou, ainda, «pela madrugada, voarei /na direcção do mar em busca da solidão.».
«voltarei um dia /para te buscar / entre os búzios», lê-se neste Habitações Interrompidas em versos que atingem o futuro deixando rastos do presente naqueles dias que virão. Resta-me dizer que o leitor da melhor poesia sempre aguarda o regresso da palavra desassossegadamente iluminada, como é esta de Francisco Duarte Azevedo.

Teresa Sá Couto
Lisboa, Julho de 2012

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