(imagem da capa e fotografia do interior, esta a duas páginas, de Rui Aguiar - clicar para aumentar)
A Morte
Detendo-nos na capa, divisamos os símbolos próprios
de um percurso de iniciação: em fundo branco, uma porta branca, cor da lua
(símbolo de morte e regeneração), uma porta fechada, como o luar é a tampa do
sepulcro, na formulação de Teixeira de Pascoaes que diz, num poema, medir os
anos, a sua idade, por metros de profundidade sepulcral, de lá «ergue-se, como
espectro, inclina-se sobre ela para ver-lhe o fundo, sente vertigens e retira
os olhos espantados». Este número 4 da revista Inútil propõe-nos um caminho iluminado
pelos olhos espantados dos autores que nomeiam a morte, assim esconjurando-a.
Espectros, principiemo-lo pelo fim, uma subtileza técnica, e também uma
subversão, deste número que pretende escandir a morte escandindo a vida.
Sónia Baptista aponta-nos o chão que nos acolhe, a
terra que «Não faz na morte distinção» entre os seres vivos, e fala-nos também
da água, símbolo da vida, mas também do abismo: «Peixe vermelho /na água
desafogado para cima /tornou-se salva vidas /boiou para baixo /encarnado”.
A nossa vida é uma dança de espelhos, porque eles
dão-nos a terrível duplicação visual da realidade, a verdade de que a vida é
também morte, e vemo-nos reflectidos nos esqueletos da ilustração da página 7;
ouvimos, também, os sinos que, como relógios, marcam-nos as pulsações; ouvimos o ensinamento dos sinos de Edgar Allan Poe, o
alarme dos sinos, o seu uivo, “carrilhões afinados” que marcam e regem o tempo
com aprumo, interpretando o futuro, os sinos que “plangem aos finados”. Bénédicte Houart fala-nos de «espelhos caseiros», de sinos e
do espírito dos mortos que nos habita: os espelhos com o seu hábito antigo de
se estilhaçarem, «um ruído familiar» como outros que ouvimos no decorrer dos
nossos dias: «O estilhaçamento regular dos espelhos. Compassando o tempo, como
os sinos; não as horas ou as meias ou os quartos, mas o tempo que demora para
que um rosto se componha e se desfaça, se recomponha e volte a desfazer-se. Isto
é a vida. E os espelhos continuam esse trabalho bem depois da morte de quem
neles se mirou, e se espantou, talvez, por existir.»; aludindo ao movimento que urde a vida, escreve Ricardo
Tiago: «há dias em que morro /e a terra move-se. // nos dias em que há mortos /eu
durmo / e a terra move-nos.»; na soberba fotografia de Rui Aguiar, ressoam, como
sinos, as palavras de Herberto Helder: «Tocamo-nos
todos como as árvores de uma floresta /no interior da terra. Somos / um reflexo
dos mortos».
Transitoriedade, efemeridade, ilusão da vida estão metaforizadas
ao longo de todo o compêndio, como na imagem do cadáver de um pássaro, de João
Braz, no rosário de laborioso crochet de Paula Fernandes, na ilustração do
quimérico banquete da vida, de Catarina Sobral, nas rendas e véus puídos do
tempo desfeito, nas fotografias de Mami Pereira.
Afinal, “Tudo é
soma na natureza humana.”, escreve Nuno Brito, e Casimiro de Brito invoca o
Tudo da soma dos poucos com que se dissipa a vida: o Tudo é o Amor, porque nada
mais fica. «Ama agora. Dou tudo, dou-me todo e não recuso nada.», lê-se. O
motor que impulsiona o ser para o exterior será o coração , pois ele, na
formulação de María Zambrano, “é o símbolo e representação máxima de todas as
entranhas da vida”, portanto uma “interioridade
aberta” porque ao oferecer-se não é para sair de si, mas para levar para si
tudo o que vagueia fora. As ilustrações de Rui Vitorino Santos evidenciam um
corpo aberto pelo coração donde saem árvores; a ilustração de Sofia Morais
traz-nos um homem de coração na mão mirando a sua sombra torturada ou, ainda, e
finalmente, o Tudo, o Amor eterno de
Pedro e Inês no corpo arborescente de Ana Lacerda, da fotografia de Amir Filho.
Com fotografias e textos, André Gago, o convidado
central, mostra-nos que a vida é a máscara da morte. Fixando os olhos nos olhos
da morte, movido pela curiosidade «de ser até não ser», diz-nos André Gago: «Agarro-me
muitas vezes à ilusão de estar vivo, porque as minhas mortes são devaneios.
Nesses devaneios da morte, soletro os nomes amados, e acabo por me encontrar a
salvo num rochoso pico de audiência íntima, num clímax de enredo que promete a
sequela. Adio o desfecho, como quem quer escutar ainda o silêncio que sobrevém
à paragem do relógio. Quero espreitar o mecanismo da morte por detrás do pano,
porque sei que ela é puro teatro.».
«Cara
senhora, és criminosa», escreve Maria Quintans à voluptuosa, altiva e inexorável
senhora morte da fotografia de Edgar Keats. A reacção ao crime está patente nas
ilustrações convulsivas de Bruno Corte, num mapa de tensões a fazer
lembrar-nos os registos pulsionais de Henri Michaux, ou nas ilustrações de
Joanna Latka, murais com olhos escancarados e bocas negras em corpos moles, bocas
negras de silêncio à procura da palavra dura. A palavra suspende o tempo e,
assim, preserva-o. É isto que nos diz Maria Quintans: «a palavra é uma folha
nova de consciência quente na sofreguidão do desgosto até que caia em imagem.».
Palavra confunde-se com “mãe”, a que “nunca se despede”, que nunca diz adeus.
Maria Quintans, Ana Lacerda e João Concha fazem da
Inútil revista um objecto mágico de palavras e imagens; «mágico, poeta e maluco
são palavras sinónimas», disse, e ainda, Teixeira de Pascoaes. Aqui confluem
gerações de artistas, de estilos e sensibilidades diversas, e dá-se
visibilidade a novos autores, (até se tira do anonimato a «Noite Escura» de um
poeta encontrado ao acaso nas veias do Bairro Alto). Aqui gera-se oxigénio imprescindível para animar o asfixiado panorama cultural português.
© Teresa Sá Couto
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