sábado, 11 de maio de 2019

"Os Animais Perdidos Na Floresta" de Francisco Duarte de Azevedo





 Com o Os Animais Perdidos Na Floresta, Francisco Duarte de Azevedo conclui a trilogia poética proposta há vários anos ; à semelhança dos outros títulos, As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições, também este tem prefácio meu; é esse texto que aqui publico. 



Cântico de solidão 





                                         Enquanto eu bebo a respiração dum fruto / o tempo chama-me, pelo rio.
  
                                                                                                                                     M.S.Lourenço 

                                                     Os rios, obstinados, / abrem sulcos profundos / nos nossos braços.
                                                                                                                    Francisco Duarte Azevedo

  A solidão é um rio, às vezes negro, outras vezes azul intenso, outras, ainda, verde gramíneo, amarelo crepuscular, branco das manhãs ou das areias, mas, indubitavelmente, o rio da solidão escreve-se a vermelho. É um rio revoltoso o que encontramos neste terceiro tomo da trilogia proposta há já alguns anos por Francisco Duarte Azevedo. No seu tutano, uma explosão, o centro das incertezas, a habitação; nas suas artérias, o latejo da demanda, o uivo do tempo, a pulsação do instinto da escrita ininterrupta.

 À semelhança dos dois primeiros títulos da trilogia – As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições -, Os Animais Perdidos na Floresta reverbera os temas da memória, da natureza e da solidão mas este atinge agora um cântico lapidado onde a palavra toca “a polpa das pedras” e, em golpe de asa, liberta-se do “jugo terreno”, a sua condição, acede “a um céu/ delicado sobre a falésia” para se lançar no infinito ao encontro da sua plenitude ou dito, ainda, assim: “Ao acaso./ No centro
 da floresta/ entre a montanha/ e o infinito/ assistiremos/
 ao voo metálico/ de um pássaro/ de fogo contornando/ as asas da imaginação.”.
  Jorge Luís Borges, no Prólogo de A Rosa Profunda, de 1975, escreveu: “A palavra teria no princípio um símbolo mágico, que a usura do tempo desgastaria. A missão do poeta seria restituir à palavra, mesmo parcialmente, a sua primitiva e agora oculta virtualidade. Dois deveres teria qualquer verso: comunicar um facto preciso e tocar-nos fisicamente, como a vizinhança do mar.”(2). Em Os Animais Perdidos Na Floresta, a água é o discurso sobre a génese, sobre os sacrifícios da viagem, a luz é o discurso sobre o efémero, o transitório, o vento é inquietação, o sopro criador que dissemina, avança e inventa o canto dos “pássaros que já não falam”, que produz um eco sonoro que nos envolve, despe e impele para novas significações da palavra. Água, luz e vento são, assim, princípios fundadores, artérias deste cântico poético sobre a solidão. Diz-nos o texto: “Navegamos no âmago/ de substâncias etéreas./ Para tocar a polpa
das pedras,/ o coração necessita de água/ e da tua voz. Para isso me iniciei.”.
  Com efeito, há uma solidão lacustre nesta poesia que procura as ruínas no fundo das águas doces: “Na macieza do éter/ são frustrantes/ todas as tentativas/ para alterar o rumo/ da navegação./ O que é isso/ dos navios sorvendo/o lodo dos rios? “, sendo o “isso”  o enigma dos caminhos que se desdobram em múltiplas sendas criando labirintos que são o desígnio da própria  poesia.
   Na viagem que nos é proposta, há uma emergência de quietude que confere à caminhada um principio de onirismo, “Há uma insistência/ para amaciar os gestos/ num campo de girassóis adormecidos.”, há a confiança:  “Como o aprendiz/ montado/ na sua cegueira ansiosa,/ amestrarei
 o corcel /e um cravo
 florescerá/ entre os dentes”; e há também a tensão entre dois polos extremos, a energia e a lassidão, a esperança e o niilismo: “E no desespero/ assimétrico
 do confronto/ entre massa e energia,/ os elementos celestes/ derramam-se 
sobre a terra./ Uma chávena
de café/ amargo e quente 
emerge/ das entranhas do fogo.”.  Por vezes, uma refracção violenta desvela um movimento auto-reflexivo, uma demanda intelectual impregnada de memória de paraísos perdidos e de desejos suspendidos:

Se o pudesse abraçar

abraçava mas não posso.

Os meus braços
são pequenos
para tamanha imensidão.
Precisaria da tua ajuda

e perdi-a. E os braços 
de 
mais duas, três ou quatro

pessoas não bastariam

para abraçar o mundo

da árvore de memórias 
e lendas tão antigas
como
 a criação dos séculos.

Precisaria apenas
do teu abraço 
para abraçar 
o baobá por inteiro. 
  Na viagem, as mãos têm um papel essencial, porquanto são a “bagagem do criador”, o seu “elemento original”: “O silêncio não digerido,/ as mãos aquietadas/ 
sob a sombra das águas
/ e o corcel mansamente
/ estacado à porta dos desejos/ contemplam de soslaio o aprendiz.“; embebida numa luz “crepuscular”,  a palavra é projectada pela mão que percorre a tela “como um caminho cego”, desenha o silêncio que “uiva no vento”, certa de que “Uma árvore estremecerá./ Apenas uma.
 Aquela/ onde depositas
 o reencontro/ dos elementos/ e acolhe as nossas habitações.”, lê-se.
  “Que pássaro/ é este que na ponta / dos dedos/ faz o ninho?”, escreveu o nosso saudoso poeta Albano Martins no poema Para a Flautista de “O Pássaro de Fogo”, de Stravinsky (3), onde se evidencia que a Arte é o lugar onde habita a voz ;  “digerido” o silêncio, é preciso dar-lhe voz, e cabe às mãos instaurar o silêncio no silêncio da tela – e recordo que as capas que envolvem os três títulos da trilogia são reproduções de quadros de Francisco Duarte Azevedo – ou, no caso, no silêncio estridente das palavras que são jogo, manha, o lugar  onde a incerteza se torna um viático porquanto a dúvida atinge a dimensão reflexiva, a dúvida pela qual o sujeito se interroga sobre as condições do seu próprio pensamento: “E as águas do rio / seguem o seu caminho./ Já não sei onde estancam.
/ Se no deserto imenso /ou nesse outro mar azul / tão distante e incerto.”.
  Disse, ainda, Jorge Luís Borges que a solidão é a sina do transviado mas também do pioneiro. Outrossim do poeta, acrescente-se, e Francisco Duarte Azevedo evidencia-o uma vez mais neste Os Animais Perdidos na Floresta.  Nas “cúpulas dos bosques” cantam os pássaros o cântico febril na vigilância dos dias, sendo a vigília o instinto do poeta: “Sonha-se de olhos abertos
/ no centro da solidão./ Como um dicionário fechado/ no sacrário das palavras.”. Ligada à vigilância, a ansiedade estimula a pesquisa errante, e não  parará de trabalhar subterraneamente na procura das soluções que as suas angústias exigem. Neste tomo, a errância está patente na forma de poemas ora curtos, ora mais longos, em prosa, atrelados ao real ou saltando dele com metáforas frenéticas e enigmáticas, onde as palavras que são a “lucidez da insónia”, as palavras  “importadas de memórias/ derramadas e imprecisas” edificam “Imagens/ passageiras girando na espuma / da madrugada”,  ”cansam-se, irritam-se”, “Explodem
 como um vulcão /outrora indeciso entre água, ar e fogo”. As palavras arriscam, afrontam, mergulham no delírio e na loucura criativa que culmina e desfralda quando há simultaneamente ausência: 

As acácias as casuarinas
regurgitam 
no delírio
dos rios e nas areias
da praia.
Os seres perdidos 
na floresta
rasgam as veias
 sob a pele
a camada do fogo
 e o crepitar 
vermelho 
de bocas exauridas.
Do mar, 
sorvem o sal
o plâncton 
para temperar
o aço dos seus braços.

  São as palavras que se iluminam contra a banalidade, que arrostam o caminho, que procuram  “a migalha/ de podermos /antever/ quão irreais/ os rios/ em busca do mar”, que escutam “o grande rio que habita/ o coração dos animais /perdidos na floresta”, que mergulham “na densidade dos lobos reaprendendo a caminhar” ou dito , ainda, assim:

Caminhamos no coração
das trevas modernas de betão.
O peso da solidão
é tão grande como o arco
planetário de Deus;
a aliança entre os mitos e os rios
bíblicos permanece
na densidade da memória.
A solidão esgueira-se
na silhueta das trovoadas,
cíclicas, da floresta.
A chuva asperge-nos
de frescura, eis o maná
da fertilidade.
  A assunção da escrita como poalha, o carácter efémero da palavra - a “varanda provisória”-,  e o elogio da imperfeição são senhas para a escrita ininterrupta.. A palavra é frágil, é um ser sensível “perdido na floresta”,  é imperfeita, de uma imperfeição absoluta a exigir constantes reparações:

Súbito, um estremecimento
reacende as vozes a galope
do corcel das trevas.
A insónia, essa coisa
brumosa de dormir
acordado, apodera-se
de reflexos, 
denuncia o corpo
entre sono e morte,
vampiriza o vocabulário
torna-o redondo
 e repetitivo.

 Pensar, analisar, reinventar a voz da solidão serão etapas do método do Eu monologante em demanda intelectual, do Eu dialogante com o Tu da poesia e com o Nós de um leitor implicado no peso das fadigas humanas, atento aos movimentos do mundo,  impelido, também ele, para a caminhada de pensar, analisar e reinventar a sua própria solidão.
 “Não fosse tão intenso/ e tão azul/ este voo iniciático / contemplaria os seres/ que pululam/ fora das nossas vidas,/ pulsando, pulsando, pulsando/ como as veias/ nos pulsos dos nossos braços.”, lê-se neste último título da trilogia. Crê-se que o laboratório poético de diálogos interrompidos,  que assume  “amaciar o corpo” da palavra nas noites de chuva, não se ficará por este tomo. Deseje-se, pois, chuva à palavra policromada de Francisco Duarte Azevedo.


Teresa Sá Couto
Lisboa, Novembro de 2018

Notas:
(1). M.S.Lourenço, O Caminho dos Pisões, Assírio & Alvim, Lisboa 2009, p.13
(2). Jorge Luís Borges, Obras Completas 1975-1985, Editorial Teorema, Lisboa, 1998, p.79
(3) Albano Martins, Livro de Viagens, Edições Afrontamento, Porto, Março de 2015, p.47


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