quarta-feira, 1 de maio de 2019

Jorge Velhote: o abismo da luz





Envolvo de pele as pedras e as sombras brilham (1)
                                                  Jorge Velhote



Ponho os frutos negros na boca e a sua doçura é de
outro mundo
como o meu pensamento arrasado pela luz. (2)


                                                              Antonio Gamoneda




  Luz e trevas, leveza e densidade, despojamento e complexidade, desvelamento e ocultação, união entre realidade e espírito  são os elementos essenciais da correnteza de Âmago, o mais recente livro de poemas e fotografias de Jorge Velhote. Discreto, longe das luzes e fanfarras mediáticas, Jorge Velhote tem, no tempo e no modo, dado à estampa alguns títulos sem preocupações de agenda, mas sempre fiel à beleza e à exploração dos enigmas da linguagem poética. A chancela é da zelosa, e também discreta, Edições Sem Nome dirigida pelo incansável Luiz Pires dos Reys.

 “Ofício e peregrinação”: assim se assume este Âmago na epígrafe assinada por Jorge Velhote, tendo o olhar como ofício e uma poesia que decanta a luz para atingir a medula, o centro perdido. Logo a abrir, as trevas oferecem ao poema a sua resistência e a sua impulsão e de imediato divisamos o programa poético do autor, irradiante neste título, outrossim em títulos anteriores: surgem-nos as trevas de um “olhar cego”, contrariadas por uma “luz virulenta” que faz acordar “o animal do poema” a fim de cumprir “funções ásperas” : indagar a voz da solidão,  da dor, da morte.  Impelido pela busca, o “olhar dobra-se como um seixo”, curva-se no jogo que a luz lhe dá a jogar: procurar o  “segredo exclusivo” da voz poética, numa trama que vai urdindo com fios de diferentes espessuras, num percurso labiríntico, aracnídeo, como anunciado na fotografia que abre o conjunto de poemas seguida de outra imagem com, interpretemos, a dissipação de uma “inevitável neblina”.  A partir daqui, com “vagar luminoso que arde inabalável e engenhoso”, o  olhar ocupa-se na sua missão de procurar a luz nas trevas, de levedar a imaginação:

Há uma luz branca que chega
Como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.

  Canto das profundezas e de triunfo da dor, esta poética não transmite, porém,  angústia ao leitor, mas uma inquietação agasalhadora, uma sensação de consolo, de abrigo. Para tal concorrem a mestria do autor no declinar com naturalidade a fragilidade, a efemeridade, a dor e a morte envolvendo tudo com serena melancolia, pois são “simples e eternos /os instrumentos da agonia” ou dito, ainda, assim: “Diante da chuva o medo cresce / como bosque inacessível. / Mais tarde, destinaste à morte / Um relâmpago de tristeza. / E a serenidade das sementes.”; também a musicalidade que atravessa, dominadora, todas as composições, imprimindo no poema um jogo tensional e dramático enformado por metáforas de beleza arrebatadora:

É a luz, dizias, essa fístula.
E no limite os vestígios da penumbra ou da tristeza
com que humedeces a música.
Lambes a vertigem como num espelho
os líquenes devoram a espessura da terra.
Um pastor vem e deixa indecifrável o seu rasto
como um rosto o seu destino.
E nos seus claustros a água apenas varre
os lilases do medo.

 Por tudo isto entendemos o que o autor nos quer dizer quando diz que “A beleza não é um lugar maldito” (3). Se a noite impulsiona a procura da luz,  a luz dispara os enigmas, torna leve a densidade, desnuda a complexidade e revela outros enigmas num círculo infinito onde enreda o leitor, ou dito assim:

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e  uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.

  O poeta Amadeu Baptista, na apresentação pública de Âmago, disse que a “metáfora na poesia de Jorge Velhote integra-se no que os gregos dizem que ela é, um transporte e um vínculo para que outros vínculos se expandam”.  Com efeito, as metáforas abrem sulcos, expandem-se em portas, galerias, labirintos, qualquer lugar é outro lugar, “um enigma inaugura um outro modo de ver”, o olhar declina-se no fogo, “declina  infindo”, como uma “bactéria”. Muitas vezes o palco é um abismo, o alvo da luz é o vazio, outras um círculo, não vicioso, mas espiralado e, por conseguinte, infinito: “são paisagens incrementes e austeras que figuram / o inextinguível, a quase escuridão ou alegoria /luminescente dos labirintos e dos portais da voz”.  
 Amadeu Baptista referiu, ainda, que esta “poemática é filha de um processo criador que vem do mundo antiquíssimo, de uma pangeia inerente ao mundo e à linguagem, ao trabalho ancestral dos dias e das noites, em que tudo está à deriva para se recolocar na vastidão da nossa ignorância e da nossa ousadia.”.  Jorge Velhote procura o “nome despido”; atravessada pela meditação também sobre o fazer poético, nesta poesia os sentimentos são categorias do pensamento, as coisas desmaterializam-se, a realidade é metamorfoseada. Mais do que procurar o sentido da palavra, procura interpelá-la, explorar-lhe a ambiguidade, dando ao leitor espaço amplo de interpretação, desoculta a palavra original, liberta-a dos grilhões do sentido, mas cujo poder de nomeação só é possível no “silêncio de um nome” que não pertence a ninguém, na peugada do expresso por Fernando Guimarães: “A poesia é o silêncio de um nome. Os caminhos a que ela nos conduz são tão próximos como a intimidade de qualquer linguagem. Mas não é em nós que essa linguagem existe. Há nela  uma realidade própria que vem recusar a presença de quem é capaz de a pronunciar, porque só deste modo estaria ao nosso alcance revelá-la aos outros. É essa realidade, que há-de ficar por fim repartida, se poderá chamar silêncio, para que a ninguém pertença.”(4). Essa brecha secreta, essa luz divida é o fundamento da poesia que Jorge Velhote cumpre sabiamente.

  A poesia é um ofício carnal; “Procuramos o amor e a morte em cada rio / para que seja igual ao mar da nossa vida”, escreveu, ainda,  Fernando Guimarães. Também na poesia de Jorge Velhote, o corpo define a tempestade e a veia mais secreta, o pensamento, inventa os modos de dizer: “Há um excesso de luz zunindo húmida”, que é “como um eco/entreabrindo a pele com que cobrimos /os mortos de passagem”, e o poema tece-se procurando sempre o equilíbrio entre luz e sombra, pois sabe que esse equilíbrio dá harmonia à poesia, enunciado assim: “O peso de uma pedra que não sabes/ medir, a quantidade de luz /que compõe o granulado /de uma sombra, a temperatura /do frio que se estende no teu braço”.

  A escrita é “Um espelho onde cuspir a alma”, escreve o autor em Coisas Mínimas &Outras Coisas.  A palavra é respiração: “Alguém acorda e regressa à terra / subindo pelas sementes /resgatando o céu para respirar”; é um lugar onde se redimem os medos;  a página é  “ um mapa ofuscante” percorrido pelos olhos “à procura de uma fronteira ou de um caminho”; é um mapa onde pousa a mão frágil “que percorre /no papel os seus sinais, a invenção /dos nomes, o vento que desfaz /as dunas, o rascunho fiel / da luz e da morte”;  é um rio que faz sede; é um “lugar para morrer”, sempre que a luz encontrar a palavra secreta, e a palavra encontrar a noite;  acumulam-se palavras para “salvar o tempo”, para “salvar a alma” contra a dor, contra o esquecimento, contra a  morte.
 “O sangue embrulha a densidade da alma”, escreveu Jorge Velhote; Âmago é água em movimento cuja amplitude da corrente atinge, em aluvião, o leitor, pelo que o horizonte de leitura desta poesia depende do nosso “horizonte íntimo”, da capacidade de desviarmos o olhar para dentro de nós mesmos ou, como escreveu, ainda, o autor, “talvez um pouco de água baste”.

(1)    Jorge Velhote, Máquina de Relâmpagos, Ed. Afrontamento, Porto, 2005, p.51,
(2)    Antonio Gamoneda, Livro do Frio, tradução e nota biográfica de José Bento, Assírio &Alvim, Lisboa, 1998, p.25
(3)    Jorge Velhote, Coisas Mínimas&Outras Coisas -textos e fotografias, Edições Luz de Papel, 2017
(4)    Fernando Guimarães, Algumas Palavras, Poesia Reunida 1956-2008, Edições Quasi, Lisboa, 2008, p.79


--> © Teresa Sá Couto

2 comentários:

Maria Mesquita disse...

Um análise muito bem delineada e profunda sobre a Poesia de Jorge Velhote!
Tudo escrupulosamente ponderado, sem rocócos exibicionistas, mas sentidamente escrito sobre quem entende a poesia do autor e a ama. Por vezes hermética, esta não deixa porém de se abrir ao leitor nos seus contrastes de sombra e luz, nas suas interrogações implícitas sobre os temas que preocupam o ser humano, na sua contenção propositada do que possa soar a populismo.
Uma análise muito clara e brilhante sobre a poética de Jorge Velhote!
Os meus sinceros Parabéns, Teresa Sá e Costa!

António Teixeira e Castro disse...

A poesia, ou mais exactamente a casa poética que se destina a encobrir o que nos merece repouso e pensamento límpido, vem desde a a época de 60/70 tomando proporções inevitáveis de esclarecimento para o fulgor da luz, e da luz que escura é matéria indomável e libertadora na casa da razão das palavras em Jorge Velhote. E talvez por tal motivo houve a necessidade de "amantizar" a palavra com a insondável consciência interrogativa do zénite.
A poesia é uma armadilha a que JV não deixa avulsa uma insistência na formação do intelecto para que a palavra na construção poética não se desnorteie.
Jorge Velhote é um escrupuloso leitor de outros seus irmãos criadores e de si mesmo. Trabalha com dedicação a minúcia dos elementos para saber sem hesitações onde se vai elevar a metáfora na sua persistência de uma linguagem profundamente esclarecida. Talvez Camões não esteja só à sua cabeceira, mas sim no seu leito quente e frio no desajuste das horas de repouso!
Há uma verdade que se vai posterizar: que a poética de JV cumpre o sentido do desvendamento sem a qual a poesia em si é um chocalhar de ilusórias intenções! Que é da calma e da maturação que no futuro iremos ter uma mesquita de poetas com irão confirmar a decência da arte de organizar o sentido dos poemas!
António Teixeira e Castro