O corpo do silêncio
Aqui me tens. E o texto.
Partículas. Partes sensíveis, pequenas
vísceras onde se ocultam vermes;
uma poeira doce;
depois uma ferida (1)
Armando Silva Carvalho
É neste inferno que se mascara o poema. (2)
Maria Quintans
“Agitas a exaltação do corpo em todas as direcções, ainda que tudo o que eu disser não signifique nada do que pretenderia dizer-te”, escreve Maria Quintans na Carta a António Ramos Rosa, que faz parte do último conjunto de textos de SE ME EMPURRARES EU VOU, plasmando a ideia do corpo como emblema da criação literária de António Ramos Rosa, outrossim da sua própria criação, ao mesmo tempo que nos dá a noção da palavra como fruto incapaz de ser possuído, porquanto a palavra morre ao ser dita. Mais à frente, na mesma carta, a autora dá-nos outras pistas de como concebe a criação: no corpo que sustenta outro corpo – o aparente que contém o invisível, a matéria que contém o espírito – , nos ombros que carregam o peso do mundo e a linguagem do caos subterrâneo do espírito em busca de um abrigo: “Não sei quantos ombros são necessários para levantar um poeta mas será pouco eleger-te grande, com determinante paixão e avanço de braços, porque macabramente, todos os poetas são engolidos pela terra. E na verdade, a condição primeira do poema é mesmo essa, um apelo da raiz dos sonhos, um prodigioso grito vindo das entranhas do fogo, consequente e brutal, em forma de sentido do não-sentido do poema, em forma de poeta a apertar a mão a um deus embranquecido nas sacadas dos prédios, no limite do fôlego." (p.p 61-62). O poeta é constituído por “partículas”, por “pequenas vísceras onde se ocultam vermes”, como expresso nos versos de Armando Silva Carvalho, em epígrafe, o homem sabe a vulnerabilidade da sua condição o que o faz, na sua humildade, “apertar a mão a um deus” forjado ao espírito, um aperto de mão silencioso, porque a palavra perdeu-se e ficou apenas a linguagem do corpo ou dito ainda assim por António Ramos Rosa: “O subterrâneo conduzirá ao diamante nocturno do sossego. O seu percurso é uma fuga porque a fuga é uma força e o desconhecido, na sua virgindade, será o supremo elemento de defesa.”.(5)
às vezes durmo
muito pouco
aí na clareira da cama soltam-se
animais bichos que nunca
vi irradiam até à minha boca cheia de
sal e terra e corrimento
bélico da boca aos pulmões qualquer
coisa estranha por dentro
do coração
aperta-me
os bichos põem-se de quatro a
alimentar a carne separam-se dois
a dois e copulam em todo o lado
rebentam os galhos das árvores
e abrem crateras no tronco das abelhas
abismo sonoro aberto à voragem dos ossos
só tenho de fechar os olhos na
angústia das pálpebras. pensar que
Deus é uma vertigem sem rosto engolir
o meu pulmão afogado
no bafo amniótico da água. respirar. (p.p.48-49)
a cama é um animal doméstico: esconde
o ombro esquerdo, lê a Bíblia e é o mais
completo sistema de precisão. não avalia
a razão, não acorda, encosta-se na acção
absoluta. a cama é pão e cão. (p.20)
nada existe
nem que criemos
as palavras a uma velocidade estrondosa não
sabemos onde começa a escrita
se na cabeça se
nos dedos se na infelicidade das chagas se na tex-
tura da madeira onde nos sentamos
para comer mais e
beber mais e saber mais e largar o
corpo à deriva da pele e
do desejo
que seja um país
inteiro o teu cheiro o teu mijo a tua cona a tua
invejável lucidez na largura das
caudas das putas
come a laranja
como a laranja espreme-a de encontro ao peito e
deixa escorrer o sumo até ao umbigo
e arde de prazer na
tontura da solidão.
o desespero é só
uma palavra na inocência da loucura.” (p. 42)
"há cidades que não têm nome. podemos beber, falar e comprar
bilhetes para o cinema nas cidades que não têm nome. como
os homens que caem para a frente nus e cegos de tristeza.
estes também não têm nome. podem um dia ou outro ter a
inocência da luz mas não têm nome. como as moscas. "(p.24)
ou no poema “exercícios de quem não dorme”:
“[…] pense-se.
não há nevoeiro que caiba num poema inteiro. E os talhantes a
cortar a carne. E os filhos-da-puta a comer bitoques. E a carto-
mante a ler as cartas.
e os poetas a arrancarem palavras ao significado da lagarta da
maçã. E os sem-abrigo com orelhas de sangue. E as mulheres a
crescerem filhos para crescerem depois a crescerem filhos. E os
autocarros cheios de gente às sete da manhã e cheios de gente às
sete da noite.
Pense-se. […]” (p.51)
"cai. deixa-te cair. as pessoas que caem ficam com os polegares es-
folados. cai.
abate a tiro a realidade de um crime suportado por qualquer in-
quietação. cria uma emboscada e cai. não é fácil criar uma embos-
cada e ferir de morte a imagem. peritos em emboscadas dizem que
é melhor na escuridão com os olhos feridos de luz. e a cabeça. E a
boca. e os sentidos magnetizados. irrigados pela tua insuportável
vulgaridade. respira. cai. a noite consente tudo. "(p. 46)
Notas:
(1) Armando Silva Carvalho, O QUE FOI PASSADO A LIMPO – OBRA POÉTICA, Assírio&Alvim,
Lisboa, 2007, p.159
(2) Maria Quintans, O SILÊNCIO, Hariemuj, Lda., Abril de 2013, p.51
(3) Maria Quintans, SE ME EMPURRARES EU VOU, Assírio&Alvim, Porto,
2019, p.18
(4) Armando Silva Carvalho, ob.
cit., p.379
(5) António Ramos Rosa, Antologia Poética, Publicações Dom
Quixote, Lisboa, 2001, p.410
SE ME EMPURRARES EU
VOU, Maria Quintans, Assírio&Alvim, Porto, 2019
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
Querida Teresa, muito obrigada! Adorei! Beijo enorme e saudoso
Saudades, Maria. Outro beijo maior.
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