Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir.
Alexandre O´Neill (1)
um método para salvar o vento, a chuva ou o fogo
CADÁVER ESQUISITO
Editada pela Edições Sem Nome, esta plaqueta, que também é sanguínea, titulada Cadáver Esquisito, é um feliz encontro de poesia colectiva da lavra de jorge velhote, também o autor das fotografias, m. parissy e vitor vicente, sendo o arranjo gráfico de Luiz Pires dos Reys.
À maneira do jogo do cadavre-exquis criado por André Breton em 1925, os poemas estão dispostos sem a sujeição da marca do autor, procurando evidenciar-se que o importante é a liberdade do texto e não quem escreve. São vinte e um textos sobre a metamorfose, transgressão e imaginação da palavra, com o último verso de cada poema a servir de mote ao seguinte, corpo completado com seis fotografias numa unidade irrepreensível onde a matéria e a forma coalescem revelando um projeto estético de admirável beleza.
Tratando-se de uma poesia obscura exige chaves que a desvendem delegando na leitura individual a capacidade de decifração, admissão da liberdade que o texto pretende evidenciar. A união entre o mundo interior e o mundo exterior faz-se através do olhar; a partir daqui a imaginação insurrecta acende-se para revelar o mistério, desvendar o que estava oculto, num movimento misterioso de expansão da consciência a que Baudelaire chamou “o gosto do infinito”. Diz-nos o texto:
e uma luz envolve de pólen os dedos deixando ver o que oculto / traz no olhar. No seu olhar peregrina uma fístula como uma paisagem. / Sobre si se dobra ao longe uma nuvem. E no seu olhar uma sombra / espera que a tarde decline as suas cores ou lágrimas. Que o mundo / goteje na precisão dos sonhos os seus muros. / A rudeza das palavras que transparecendo espiam no olhar / o irremediável momento da traição – um verso / como um selo adivinha-se nos seus lábios / como nas mãos a água se escapa
A palavra acede ao infinito para cair, irremediavelmente, no seu vazio. Eis a traição da palavra que ao desvendar-se oculta-se. Em subsídio desta formulação invoque-se o que é escrito por Mário Cesariny: “a sombra dita a luz / não ilumina realmente os objectos / os objectos vivem às escuras / numa perpétua aurora surrealista / com a qual não podemos contactar.”. (2)
A segunda fotografia revela-nos o céu pintalgado de nuvens efémeras espelhado na água ou projectado num vidro, numa referência ao horizonte ilusório e à noção de que o espelho é eco e reenvio tal como é a palavra renovada.
O sujeito tem a inquietação do jogador que se reinventa a cada instante com o seu ponto de apoio no vazio infinito. Ele eleva-se do chão para rasgar o ar como as aves, os anjos ou os bailarinos:
Das diversas razões para a criação de actores / a dança é a única que permanece intacta // eles também são cinza, ar, incenso / tudo o que de resto serve à morte
Cabe ao aprendiz de anjo a missão de recusar a palavra gasta e asfixiante, experimentar novas formas de dizer, empenhar-se no fulgor do movimento, embrenhar-se no ardor necessário “para que em laboratório se alimentem /aprendizes de anjos”. No laboratório testa-se o movimento delirante da metáfora indómita que procura o corpo visível, mistura o concreto e o onírico, o visível e o invisível atingindo níveis de significação e ressonância extremas. Confira-se:
Como se um dedo convulso o sangue lhe espetasse / como se luminosa fosse e táctil a nudez – / é uma ilha de palavras a surdez do silêncio, um lugar / mortal ou um golpe de luz rompendo / os ossos visíveis, as membranas do vento / onde sopramos a alta temperatura dos segredos / ou cravamos os olhos calcinados de pavor / e melancolia – / a dissonância obscura ou o dilúvio inenarrável / de quem regressa e perscruta anónimo a penúria / límpida dos seus passos a simetria dos seus dedos / como se nesse lugar excessivo o fulgor fosse a súplica
A nudez é a servidão do olhar que aqui se exprime na palavra e na fotografia. O jogo da revelação é, pois, “o jogo da cegueira” que não será apenas “um desejo obscuro”, porquanto é acção expressa em grito urgente, em “súplica”, ideia que se avista no pensamento de Georges Bataille:
"Quando solicito delicadamente, no próprio coração da angústia, um estranho absurdo, um olho abre-se no alto, a meio do meu crânio.
Esse olho, que, para o contemplar na sua nudez, a sós, se abre para o sol em toda a sua glória, não é um produto da minha razão: é um grito que me escapa. Pois no momento em que a fulguração me cega, sou o estilhaço de uma vida quebrada, e essa vida – angústia e vertigem –, ao abrir-se para um vazio infinito, dilacera-se e esgota-se de uma só vez nesse vazio." (3).
A quinta fotografia de Jorge Velhote (reprodução na imagem em baixo) atinge-nos com o grito que se solta pela acção da lança cravada como um dedo espetado no indecifrável.
(CADAVER ESQUISITO, interior)
Se as palavras se erguem em jogos de ruínas em busca do estímulo que as desnude, as fotografias são reverbero no mesmo fulgor: a abrir, deparamo-nos com a imagem de uma porta asfixiada, bloqueada por pedras como se uma explosão depositasse a sua violência na passagem para a qual foi concebida; ainda, contíguas, a terceira e a quarta fotografia dão-nos o silêncio prístino da água e os detritos humanos naquele silêncio. Por sua vez, diz-nos o texto:
Nessa casa onde o sol se debatia com o pólen / todos os animais rastejavam / era no leite que urdiam / entoavam loas // No fundo /a lama que se estendia por caminhos de esgotos / deixava que ao homem apenas um sorriso fosse permitido
ou rematado assim:
Eis o estuário. / Feito de fontes, fossas / e outros tubos científicos
Na última fotografia deste compêndio ergue-se uma parede de placas verticais a bloquear a luz subversiva que afia os seus braços pelas frechas incautas, em gumes ígneos que descarnam as feridas e que o texto esclarece assim:
(...) eis onde a sombra te lava e as serpentes ou as chamas, a caligrafia / breve de um poema como um espelho gota a gota / e na escuridão se ilumina o negrume dos lugares / o sábio esplendor do musgo onde atenuas o sofrimento
Com CADÁVER ESQUISITO a editora Edições Sem Nome inaugura a coleção Monte Côncavo: são bons auspícios para a concha devoluta da palavra.
Notas:
(1) Alexandre O´Neill, Poesias Completas, 5.ª edição, , Assírio &Alvim, Lx, 2007, p.43
(2) Mário Cesariny, Uma Grande Razão, Assírio &Alvim, Lx, 2007, p. 77
(3) Georges Bataille, A Experiência Interior, Edições 70, Lx., 2021, p. 113, tradução de António Hall e Lurdes Júdice
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
Está de volta o teu magnífico olhar sobre as palavras e desta feita... sobre outros olhares também. Ler-te é um prazer gigante.
Caramba, São: obrigada.
T.
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