sábado, 10 de julho de 2010

A Chave premiada de Rui Herbon

(versão do texto da Apresentação Pública, a 25 de Maio último, editada no sítio da Orgia Literária em 09 de Julho)

Prémio Branquinho da Fonseca de Conto Fantástico, 2009, A Chave é o novíssimo título de Rui Herbon. Em epígrafe, versos do poema Xadrez de Jorge Luis Borges – Deus move o jogador que move a peça. / Que deus atrás de Deus o ardil começa / de pó e tempo e sonho e agonias? – fazem-nos prever a influência borgiana e lobrigar a urdidura do conto com as declinações do jogo que é a vida onde todos somos jogadores e jogados, peões no imenso acaso que nos governa.
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No centro da narrativa está um jogador e um jogo: Michel Lemercier, um xadrezista francês de renome, com livro publicado sobre o métier, enredado numa só partida de xadrez que lhe ocupa dezassete anos de vida (de 1958 a 1975). O mistério chega-lhe de forma «enviesada, oblíqua» sob o aspecto duma bela e enigmática mulher, alta, esbelta, longos cabelos pretos, olhos grandes, com voz «grave e obscura» a evocar o «rumor do fogo», de nome Lucrezia, e pela qual se sente imediatamente enfeitiçado. Não é a Dama Pé de Cabra da narrativa de Alexandre Herculano, tampouco as fatais Cleópatra e Medusa ou a estonteante Lucrécia Bórgia, mas o leitor é, logo na primeira página, catapultado para todas elas; trata-se do início da negociação do fantástico com o leitor, lançada a ambiguidade essencial nesse tipo de narrativa, mantida durante todo o conto a construir e fortificar a dúvida entre o real e o irreal.
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Tratando-se de uma narrativa breve, célere e concentrada, o texto lança mão a diversos recursos industriosos como o de um narrador que sabe tudo e mostra-o pelo que cala no momento certo, em cortes cirúrgicos que nutrem a atmosfera do enigma; ainda no jogo com o leitor, porque na inversão do esperado, a relação do jogo de xadrez com o jogo da vida não é feita alegoricamente, mas evidenciada directamente no texto: «o xadrez é a vida», «Dois princípios opostos debatendo-se sobre um tabuleiro cósmico: branco contra preto»:
apenas um lance, pelo que aquela jogada adquire uma relevância absoluta. A vida inteira gira em torno desse lance, e a sua execução converte-se no objectivo básico, na razão final de cada jogador. A vida, portanto, transforma-se numa partida de xadrez, e o xadrez deixa de ser uma abstracção para se converter em vida. (p. 53)

Sempre na construção da ambiguidade, o texto vai alternando, numa espécie de camadas, elementos realistas com situações do dia-a-dia, a conferir verosimilhança à narrativa, e fraturas da racionalidade com elementos do Fantástico a tecerem a magia (um peão de prata, que Michel recebe de Lucrézia, e um minúsculo estojo de xadrez composto por peças feitas por um ourives florentino, no séc. XVI, que a mulher transporta na sua mala). Assim, A Chave radica-se num jogo dual com que se pretende explicar o mundo e o indivíduo, um jogo entre enigmas que procuram ser racionais e aquela «espécie de escândalo da razão» – referida por Borges no conto “O Aleph” – a registar «um processo não acessível aos homens».

Construindo-se a acção central, a mulher, amadora do xadrez, propõe ao jogador uma nova concepção do jogo, e, não obstante o desdém manifesto num encolher de ombros, o xadrezista aceita o jogo do acaso que a mulher lhe propõe: executar um lance duma partida de xadrez iniciada no séc. XIV, entre duas famílias poderosos e rivais, os Bianco e os Zwart (branco e preto como as pedras do xadrez), que depois de 200 anos a digladiarem-se em lutas e vinganças fratricidas decidiam que o xadrez fosse o campo de batalha, que fosse a mente e a inteligência a combater e não o músculo e o aço; jogariam apenas uma partida, cuja duração se mediria em termos geracionais, um lance em cada meio século, estando, pois, naquela altura, cumpridas catorze jornadas. É o jogo do tempo desatado pela mulher que, depois deste primeiro encontro, desaparece para reaparecer dezassete anos depois, com a beleza intacta, como se o tempo não tivesse passado por ela, a dizer ao jogador que ele já tinha feito o seu lance e a fazê-lo «compreender a ordem oculta que regia a sua própria vida».
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Para o tempo do jogo, o texto constrói a psicologia do jogador em princípios aproximados dos expostos por Dostoievsky, exactamente em O Jogador: «a alma do jogador exige sensações até à fadiga definitiva», escreveu o romancista russo, e o jogador do conto de Rui Herbon parece movido por um estranho capricho, pela sede de risco e pela obsessão: durante três anos isola-se do mundo, afasta-se da alta competição para preparar a partida; obcecado com o mistério para o qual não divisava sentido, investiga, muda progressivamente o seu carácter, torna-se taciturno, «enche a casa de tabuleiros de xadrez, desenvolvendo em cada um deles dezenas de posições alternativas, e os seus dias convertem-se numa irracional partida múltipla, numa confrontação desmedida entre ele e o infinito»; imagina o prémio prometido e os objectivos daquela estranha partida de xadrez, especula possibilidades esotéricas daquele prémio, procura explicações mais racionais, desenvolve desde teorias fantasiosas às mais prosaicas, tudo formas da narrativa introduzir rupturas, desvios, jogos mentais da personagem que lhe dão frustração perante a impossibilidade de conhecer a verdade.
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Ainda no poema Xadrez, Jorge Luis Borges escreveu: «E quando os jogadores tiverem ido, / Depois do tempo os ter já consumido, / Decerto não terá cessado o rito.». Trata-se do tempo da longa memória, esse mesmo que desfila neste A Chave, o do labirinto paciente desse novelo secreto que molda o universo. É feita de Tempo, a chave desta narrativa. Como é a escrita; e nesta, Rui Herbon tem-nos dado grandes jogadas.

Rui Herbon, A Chave, Parceria A. M. Pereira, 2010
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Nota: versão do texto que serviu de base à Apresentação Pública

© Teresa Sá Couto

5 comentários:

Manuela Freitas disse...

Este seu blogue é de consulta assídua. Para quem gosta de livros, não conheço melhor. Por aqui sou informada e orientada para as minhas leituras.
Não é habitual deixar comentário, mas hoje quero deixar, para lhe dizer muito obrigada.
Beijos,
Manuela

Teresa disse...

Obrigada, Manuela, pelas palavras e pela companhia.

Beijos
T.

Carlos Ramos disse...

Não conheço a escrita de Rui Herbon, mas pelo que aqui se descreve parece muito apelativa. Gostaria de dar (lhe)os meus sinceros parabens por este espaço onde as letras respirar o ar correcto. Também pelo projecto "Orgia Literária" que seguido atentamento aqui fica a minha homenagem, simples mas sincera.

Abraço

Teresa disse...

Obrigada, Carlos

outro abraço
TSC

Claudia Sousa Dias disse...

tenho de comprar...esse e outros..

quero também muito aquela correspondência entre Miguéis e Saramago.

e também mais um livro de Umberto Eco.


;-)

CSD