sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O desejo das palavras de Leonard Cohen

Confessional, intimista, espiritual, lúcido, irónico, Leonard Cohen apresenta-se-nos em Livro do Desejo - Book of Longing, no original - com letras arrebatadoras, reconstrói memórias, detém-se em sonhos e perdas, observa a passagem do tempo no corpo e na alma, interpreta o mundo, dialoga com a vida. São poemas e textos em prosa, ilustrados com desenhos do próprio Cohen, feitos durante os vinte anos que esteve sem publicar, um «Atraso» dito assim: «Consigo aguentar bastante; não falo /enquanto as águas não transbordarem das margens /e rebentarem a represa. //Daí ter sido capaz de atrasar este livro bem para lá/do final do século XX.».
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(clicar na imagem para aumentar)
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Publicado entre nós em 2008, com justas honras mediáticas, o Livro do Desejo é uma edição bilingue, tem a chancela das extintas edições Quasi e tradução de Vasco Gato. A obra foi base do espectáculo A Song Cycle Based on the Poetry and Images of Leonard Cohen, de Philip Glass, e alguns dos poemas foram adaptados a canções. Agora, no seu regresso a Lisboa (a 10 de Setembro), este título recorda-nos que o canadiano nascido em 1934 antes de ser cantor foi poeta - com o primeiro livro de poemas, Let Us Compara Mythologies, em 1956, a que se seguiram doze livros, entre os quais dois romances - e é, indubitavelmente, essa corrente primeira a geratriz da magia que recebemos ao ouvir as canções de Leonard Cohen.
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quatro poemas:
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Corpo de Solidão
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Ela entrou no meu pé com o pé dela
e entrou na minha cintura com a neve dela.
Entrou no meu coração a dizer,
"Sim, é isso mesmo."
E foi assim que o Corpo de Solidão
se viu coberto por fora,
e por dentro se viu
o Corpo de Solidão abraçado.
Agora sempre que tento inspirar
ela segreda à minha falta de ar,
"Sim, meu amor, é isso mesmo, isso mesmo." (p.40)
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Gravidade

Nunca tentei ver o teu rosto,
Nem sequer quis conhecer
Os pormenores de um lugar inferior
Para onde teria de ir.
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Porém o amor é forte como a gravidade,
E toda a gente tem de cair.
Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
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Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
E depois de ti e depois de mim
E depois de um e de todos. (p.212)
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Metade do Mundo

Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade. (p. 226)
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A inundação
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A inundação está a acumular-se
Em breve mover-se-á
Sobre todos os vales
Contra todos os telhados
O corpo afogar-se-á
E a alma libertar-se-á
Anoto tudo isto
Mas não tenho prova alguma  (p.229)

2 comentários:

Pedro disse...

cativante

Isabel Victor disse...

Excelente, este "comLivros_Teresa"