sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A épica de Gonçalo M. Tavares

Está nas livrarias Uma Viagem à India, o novíssimo romance de Gonçalo M. Tavares, com promessa de futuros brados.
É uma edição esmerada, de capa dura, branca, com sobrecapa encarnada destacando-se um símbolo gráfico: uma linha recta, vertical, que parte de um ponto, um centro, ou se dirige para ele, como a linha da vida humana do nascimento para a tomada do mundo ou do nascimento em direcção à morte. No interior, a viagem em 10 cantos, eco de Os Lusíadas, cada canto com pequenos textos numerados e dispostos nas páginas como se fossem estâncias; nas últimas páginas, Melancolia contemporânea (um itinerário) dá-nos, graficamente, caminhos daquela linha recta numa espécie de cartografia da existência. «O dispositivo é o de um poema provocantemente épico e anti-épico», escreve Eduardo Lourenço, no Prefácio.
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Bloom é o herói e anti-herói desta singularidade literária, marca iniludível do autor, e é o espelho onde, como é apanágio da escrita de Gonçalo M. Tavares, inquietantemente nos revemos. A ler, de um fôlego. Transcrevo uns extractos com a formatação que se encontra nas páginas:
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77
.Há uma fenda entre o mais alto
da cabeça do homem e o céu; e nas minas
onde se exploram as riquezas que caíram
é evidente um outro embaraço antigo: a desligação
entre os pés do homem
e o que existe lá em baixo: o centro da terra.
Mesquinha coisa que existe entre o céu e o centro,
eis o homem. (Canto III, p.144)

38
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O mundo é redondo, mas todos os lados são iguais.
Os homens têm fome e adversários,
e outros têm prestígio e amigos e, nesta divisão rude,
encontrarás semelhanças evidentes
com a velha Europa, a Ásia, as Américas,
África, e com todos os continentes onde existem
seres vivos. A vida é invenção de demónios:
deram-ta: deves defender-te, deves atacar
(percebes, Bloom?). Percebo, responde Bloom com a cabeça. (Canto VII, p.304)

41
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Ninguém se encosta a si próprio tão
intensamente como quando sofre ou como
quando entra num mercado de uma
das nossas grandes cidades. O comércio
é feito de uma linguagem inesgotável:
sobra de um lado, falta de outro. O consumo,
por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo:
os deuses formaram homens incompletos,
com estômago, frio, vaidade, como queriam outro resultado? (Canto VII, p.305)
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Ver AQUI textos meus sobre obras do autor.

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

ai, sinto que me falta ler tanta coisa...e nunca mais vejo a pinha dos "não lidos" na estante a diminuir...

Eusébio Almeida disse...

Raro, faro, farol, quase como a janela da porta que faz parte da viagem-terra-mãe onde restam os ramos caídos duma velha árvore colorida. Rente aos ramos dessa velha árvore colorida ainda conseguimos encontrar o estômago dalguns dos frutos silvestres que viriam a fazer parte das páginas comestíveis dos seus livros quase pretos. Aliás, basta apenas escavar na brancura das páginas da maioria desses livros ou então nas margens do chão que se encontra ao lado da escada-máquina-guindaste da ainda árvore-casa-mãe para que tudo se transforme numa viagem. Ela que nos permite gemer de prazer só de ouvirmos os pássaros a subir a escada transparente da árvore colorida que entretanto terá sido abatida por um inesperado raio de luz. Livro cheio de poesia, cheio de raios de luz ou tão somente penas de pássaros que voam? Aqui há de tudo um pouco. Há dias, qualquer dia, um dia qualquer, também nós iremos passear com os pássaros que fogem da árvore abatida por um inesperado raio de luz...
Eusébio Almeida (nasceu escritor, mas não publica...).