Dois livros num só: Acto Sanguíneo e Dentro de mim faz Sul: o iniciático – escritas do fim da adolescência, editado há dez anos – e o mais recente livro de poesia de Ondjaki. É uma «celebração», diz-nos o escritor angolano em nota introdutória, desse «mistério chamado poesia». São pedaços da existência, fragmentos de interioridade desenhados em palavras: o «ritmo do sangue», o afecto do chão, o canto das estrelas da infância, rituais de encantamento, cicios de perdas, saudades, ecos longínquos que a memória foi transfigurando também ao longo de dez anos.
«dez anos antes ou depois, há frases que nos vão resumindo – cicatrizam-se em nós (porque o mundo /assim como sou /não me basta). Pensei também em dizer que, algures, entre estes dois livros, seguem longas linhas de uma sincera confissão. Mas depois vi que isso seria uma redundância humana.», diz Ondjaki, no presente livro.
Com várias obras para crianças, contos, romances e um texto dramático, as razões da poesia (recordo que Ondjaki publicou também há prendisajens com o xão, em 2002, e, no ano passado, Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristeza – ver texto meu sobre este último título) poderão encontrar-se logo em Acto Sanguíneo : «regresso porque me dói /a parte escondida da perna //e peço, com a mão mais direita /para escrever em ti .//regresso porque /acima de tudo /me quero experimentar.//a mim: sanguíneo. //o actor sanguíneo.» (p.125).
Poemas:
(dentro de mim faz sul)
que língua falam os pássaros
de madrugada
que não a do amor?
escuto a madrugada
- lento manancial de céus.
os pássaros
São mais sabedores. (p.17)
***
chove.
o mundo húmido, poético
ganha outra densidade
- longe do medo.
gosto de observar a chuva
a paz
nas suas vestes
a chuva é plena de instantes intocáveis
nós somos
simplesmente humanos. (p.49)
***
(acto sanguíneo)
há uma valsa lenta neste
baixinho barulhar.
um vermelho odor, qualquer coisa de baço
no olhar.
seios brancos, um soutien escondido
um par de óculos
uma doce morosidade.
há algo de erótico na casa da idade
um suspiro estalando no ar
ou uma valsa quente
no repouso de um lar. (p.104)
2 comentários:
mto bom! gostei bastante das escolhas.. nunca li nada dele mas tenho lá um daqueles livros que estavam à venda por um euro que tinha poesia dum lado e prosa do outro (da mm colecção em que saiu Maria Teresa Horta, altura em que me "apaixonei" por ela)
A escrita de Ondjaki é delicada. Lê; creio que gostarás.
De Maria Teresa Horta aconselho... a "Poesia Reunida", editada no ano passado pela Dom Quixote :)
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