Sempre no destaque dos dias está Nome de Guerra de mestre Almada Negreiros. Mais uma prova da sua natureza inesgotável está o gesto da Fundação José Saramago que tem a decorrer o Prémio de Fotografia “Retratar um Livro” (ver no link), uma iniciativa apoiada pela Assírio&Alvim, editora deste e doutros títulos de Almada.
Nas suas páginas encontramos uma ração de combate ao marasmo, à vida insonsa à apatia que nos engole. O seu estandarte é a rebeldia, a arma é a acutilância vocabular, a originalidade e um humor delicioso compõem a estratégia. Haja um Nome assim que nos coaja a gritar «Basta, pum basta!».
A efervescência narrativa expande-se por sessenta e quadro capítulos curtos, que variam entre meia e quatro páginas, num total de 156 páginas. Nome de Guerra foi escrito em 1925, e os seus capítulos foram editados separadamente em várias publicações. Em 1938 é feita a primeira edição do romance, na Colecção de Autores Modernos Portugueses, pelas Edições Europa. João Gaspar Simões, que organizou e dirigiu a edição, escrevia no prefácio que o livro mantinha a actualidade do tempo em que foi escrito. Dizemos o mesmo, hoje. Em 1956, a Ática lança a 2ª edição com o subtítulo Judite.
O campo onde se trava este combate é a vida, ou o seu jogo de verdade e mentira, realidade e ilusão. Antunes é o protagonista «com um desequilíbrio entre a imaginação e a realidade», que «tentava agarrar a vida com as mãos, mas ou não tinha mãos para isso ou havia outras mãos metidas no assunto». Por ele somos levados para o palco da existência individual e comunicação com os outros: «a comunicação entre os humanos faz-se pela admiração(…) não há melhor compensação para a nossa vida do que a admiração dos outros(…) mas também não há pior momento humano do que aquele em que nos admiram sem acertar no nosso exacto valor(…); a pessoa verdadeira prefere inimigos autênticos a admiradores sem pontaria».
A Antunes aparece «uma Judite que não se chama assim» com um passado de equívocos e um presente sombrio. Ela desafia-nos à reflexão sobre «ser anónimo e proceder como anónimo» e se «há necessidade da mentira para defender a verdade». Judite e Antunes entram na intimidade um do outro «como ladrões que não sabem exactamente o que vão roubar», e as «suas intimidades são devassadas um pelo outro». Vão-se movendo no jogo inusitado e perverso da vida, de encontros e separações, pois «É sempre assim, temos sempre de perder o nosso tempo em desfazer o bem que os outros fizeram por nós.». Vale que «Os olhos da nossa memória vêem melhor que os nossos» e os defeitos da Judite começam a ser notados por Antunes que assim constata estar a "paixão" «a passar-lhe ou então era ele que estava já a ajudar-se para lhe passar a Judite».
A coloquialidade da escrita é tal, que as palavras tornam-se-nos audíveis, com as inflexões da ironia, do burlesco, da consideração obviamente óbvia. E não é raro respondermos a esta conversa bem montada, e rirmo-nos com ela. As questões levantadas, directa ou indirectamente, pelos títulos dos capítulos, e a cada passo da leitura, são um desafio sobremaneira apelativo:
«Cada um vai atrás da sua ideia, ou é a ideia que vai atrás de cada um?»; «Os lugares fazem mudar as pessoas ou o ar é o mesmo por toda a parte?»; «Quanto mais se sabe mais vai ficando por saber»; «quando se passa de um lugar para outro, levamos em geral o primeiro lugar connosco»; «os palermas que não percebem nada da vida são piores que os malandros»…
O pensamento humano quer exemplos pessoais de pensamento, «o trampolim do salto mortal» pois só ele tem o «poder de restituir a alma aos apavorados». Este livro, como um solavanco, acorda-nos para verdades que somos. São páginas adestradas contra a pequenez do quotidiano, contra a cobardia de não nos vermos, que terminam com uma moralidade: «Não te metas na vida alheia se não queres ficar lá». Indispensável ler ou reler.
José de Almada Negreiros, Nome De Guerra, Assirio & Alvim, 2001
© Teresa Sá Couto
1 comentário:
Obrigada, Fernando; tenho todo o gosto em divulgar iniciativas dessas. Abraço
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