sexta-feira, 1 de maio de 2020

Jorge Velhote: O olhar desagregador








Assim respira /a mão /enquanto escreve: mancha //
                                                              ensaiando /o espasmo, aguda //nota, ponto / desfeito.


José Carlos Soares (1)



                                                        É inesgotável o ar que as palavras essenciais produzem

Jorge Velhote (2)



Em Coisas Mínimas & Outras Coisas, título de 2017, Jorge Velhote reúne poemas e fotografias da sua autoria em diálogo raro, enigmático e cúmplice.  Se “luz” e “sangue” são substantivos genesíacos que deflagram a “voz” desta poética e da poética deste “olhar”, o verbo revela a capacidade desagregadora da linguagem, o  que se insere num percurso de busca de um dizer sempre novo e de um olhar inusual a urdir um mapa de possibilidades inesgotáveis. Acresce que, enquanto objecto, Coisas Mínimas & Outras Coisas é um altar do Belo: páginas longas, rectangulares, papel de alta gramagem sensível ao tacto, fotografias a toda a página, capa dura forrada a tecido cru com o título e o nome do autor gravado singelamente a negro; é a face de quem gosta de fazer livros infelizmente arredados do grande público porque fora dos circuitos comerciais. 

Nada aqui é de entendimento imediato; o verbo dentro do sangue desta poesia de palavras e fotografias é o verbo indagar. Nada aqui está ao acaso. A abrir, depara-se o leitor com o fundo negro e uma fractura no negro:  nervuras de luz assomam, insones, por uma portada a dizer-nos que é no escuro queo sangue embrulha a densidade da alma”, é na correnteza de águas profundas que se encontra a luz da palavra oculta, pronunciado já assim por Jorge Velhote no seu livro Os Mapas sem fronteiras sufocam os lugares: “Leio o que os meus olhos vêem, o laço de sangue que os dedos suportam, a sua voz é um grito /no rumor da minha respiração”. O olhar nas fotografias persegue o mesmo escopo. “Entras na sombra como mensagem”,  diz o texto a apresentar a chave da sua laboração e a assumir a virtualidade do sentido, a desafiar o leitor para múltiplas interpretações: na imagem do Cristo Crucificado,  “um homem antigo como um clarão”, iluminado na sua dimensão humana, dividido pela luz e sombra, com o rosto pendente mergulhado na zona escura, pois “aquilo que ilumina fica sempre na sombra” (3), numa formulação de Edgar Morin, como que  “rasurando o sangue” para escutar “pequenas coisas impronunciadas” ou, noutra fotografia,  a silhueta de uma gaivota que debate o voo na zona escurecida paralela à estrada que a luz desenha sobre o mar; o texto confirmá-lo-á num desenho assim:

Há um excesso de luz zunindo húmida, indagando sob as ruínas

do céu o seu esplendor atónito. É como um eco

entreabrindo a pele com que cobrimos

os mortos de passagem.

Ou devolvemos à chuva a sua geometria ácida.[...]



Já o referi, a propósito de Âmago, livro publicado em 2019, que a máquina poética de Jorge Velhote inscreve-se na linha da auscultação da palavra, no caminho da busca do silêncio intacto.  A voz da linguagem procura a palavra para habitar, um espelho onde se plasmar, mas só encontra a palavra inominável, o eco da origem e “um silêncio de espelhos carbonizados”;  a voz que surge em presença a desvelar uma ausência é uma “chaga”, “frenesim”, uma “canção”, um “sudário”, “quase sopro em declínio”. E o poema questiona: “será isso a luz?”, questiona porque interpela os seus limites, e só pode questionar, porquanto sabe que a sua missão é essa. Confira-se com as palavras todas no lugar certo:

Um silêncio de espelhos carbonizados

Uma chaga propagando a fértil irrisão da morte.

Um frenesim de formigas e cotovias tristes

convocando a cegueira sobre as margens –

canção que humedece nos teus lábios como urtigas – ,


sudário de agulhas ávidas

cravando as unhas

nos teus bolsos –


O que se extingue no rumor das moradas

em uníssono – quase sopro em declínio?


na deriva ou infinitude anunciada?


decompondo apenas o negrume

nos seus orifícios e raízes


– será isso a luz?

A voz da origem é movimento e a voz poética sabe que para a capturar tem de se mover com ela: "Vou com as sementes pelo interior da luz. Vou com as folhas, /com o vento", já escrevia o poeta em 1983, no livro Os Sinais Próximos da Certeza, com a certeza de que o caminho que então iniciava jamais terminaria. Na persecução da tarefa inesgotável, Jorge Velhote imprime à sua voz deslocações constantes: na forja poética a carne da palavra é inquirida, sujeita à desagregação, liquefeita até ao osso; na bigorna, a palavra é amansada e libertada, metaforizada, metamorfoseada com Labor limae verso a verso, poema a poema, livro a livro; por isto a palavra poética é constante e inevitavelmente o “ponto desfeito” aludido por José Carlos Soares, na citação em epígrafe; noutro poema, José Carlos Soares diz que a linguagem poética  “Não é segredo, é / interpretação, voo / e casa, //provação”: é a provação, a ausência, o sentido de falta que impele a busca. A espessura discursiva e a aparente opacidade da poesia de Jorge Velhote advém da condição de um texto que obriga o leitor a estar atento e a tornar-se sensível à linguagem poética que tem perante si, um texto que obriga o leitor ao diálogo. Na tarefa inesgotável de actualização da palavra,  o poeta segue com as "mãos cheias da terra" e com tudo o que tem – e quer isto dizer que esta poesia é também o registo de uma experiência de vida, a meditação de quem habita e como habita o mundo  : o sangue, o corpo, a memória , os encontros e desencontros, as conquistas e as perdas, a dor, a solidão, a agonia, o sacrifício da jornada; também aqui é inevitável o diálogo com a fotografia que mostra parte da estrutura em madeira de uma janela que o tempo puiu – uma janela dá para o infinito, como referiria Baudelaire no poema Le Gouffre , janela que Jorge Velhote fotografa do lado de dentro, onde está a intimidade, onde está o turbilhão e o abismo, imagem interrompida por um ferro – dito assim porque o objecto grita a sua memória da forja – de ponta enrolada a lembrar um ceptro, como que a aludir que o ceptro desta poesia é de agonia enrolada sobre si mesma, que escava a memória, incansável e infinitamente, para se libertar na voz que a reverbere, para habitar na cal, mesmo que transitoriamente, ou dito assim:

O que se observa na brisa ou na espuma simples de um desenho

que se perde na combustão do olhar começa contido nas arestas

que florescem nos dedos que limitam o corpo, nessa deslocação

suspendes a intimidade como se atravessasses um jardim.

Definisses qual o ângulo puro da ausência. Uma medida trazida

pelo alento de uma voz inacabada. Um murmúrio entoando

secreto a simetria de uma sombra perfeita como os lábios de

um coral. Nessa haste ambígua em que a metamorfose decifra

um pressentimento há um labirinto imprevisível onde dissolves

a pele e fechas os olhos. Então o que escutas como se viesse

de algum lado pulsa nessa mão que levas à boca carregada de

vento como hóspede esquecido. Enquanto ao teu lado o vestígio

de um esforço ou anel de grafite se inscreve lentamente na cal.





Se o texto se oferece ao leitor como espaço indefinidamente aberto à interpretação, o mesmo acontece com as fotografias do autor. Entre o sujeito e o objecto há uma fractura onde se sobrepõem o imaginário e o real e é no intervalo que a criação acontece. Apresentado em certos ângulos, o real fotografado ganha vida, força, movimento, torna-se mistério. É disso exemplo a fotografia com o pormenor de uma estrutura em madeira que parece sair do olhar de quem a olha, para entrar na página e apontar a um horizonte branco e infinito ou aqueloutra onde figura um tronco decepado, porém reanimado por ramagens que o vento escolheu. Estamos perante o olhar do poeta  “vidente”, como se assumia Rimbaud (4) , o “ladrão do fogo”, o que encontra uma linguagem capaz de revelar a magia das coisas que não sabemos ver, capaz de libertar o real para atingir a verdade, i. é., a sua “essência”, a qual, porém, será de imediato questionada uma vez que esta poesia, que diz que  “todos os jardins são invisíveis / mesmo que os observes com os verbos /roubados às cicatrizes”, situa a sua intimidade na indefinível essência, nos vestígios, nos ecos, nos rumores, nos murmúrios, em infinitos movimentos de avanços e recuos que o poema averba assim:

É um desenho nos seus vestígios o que se afasta em presença

luminosa. Uma substância íngreme que toca as narinas com

cheiros que fulgem e suspendem os passos. Como se num

espelho a imagem devolvida abandonasse a simetria

ou despedisse a humidade do olhar.

Então a noite virá com as suas escamas escorrendo de lentidão

pelas paredes em rumor cúmplice dos bichos até que na terra

se elevem as sementes trazidas pelo vento.



Coisas Mínimas & Outras Coisas  é um livro sobre coisas mínimas donde nascem todas as coisas. É respiração. É um livro sobre os labirintos do sangue em busca da luz, sobre o pensamento e a criação artística,  sobre dar voz à voz líquida que nos habita. Jorge Velhote é um observador, um intérprete, um lapidário, um filigranista da voz que se oculta e que procura uma linguagem que a possa nomear. Por isto a sua poesia é necessária e cada livro seu é entusiasticamente acolhido.





(1)    José Carlos Soares, Sottovoce, edições Debout Sur L'Oeuf, 2019, p.11
(2)    in Os Mapas sem fronteiras sufocam os lugares, poema 6,  livro de textos de Jorge Velhote e fotografias de João Paulo Sotto Mayor
(3)    Edgar Morin, O Paradigma Perdido – a natureza humana, Publicações Europa-América, tradução de Hermano Neves, 5.ª edição, p.131
(4)    Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações, Uma Cerveja No Inferno, tradução de Mário Cesariny, Assírio&Alvim, p.192



 © Teresa Sá Couto

1 comentário:

António Teixeira e Castro disse...

A poesia de Jorge Velhote chega-me aos olhos ao mesmo tempo, tempo ido e já catapultado para outras cintilações, num momento em que um outro autor, José Carlos Soares, acolhiam em amizades uma fusão de tendências poéticas a mim desconhecidas... De Jorge a poesia sempre me vinculou a uma metáfora do inexistente visível, quer dizer, que as palavras já tinham nascido num vínculo harmonioso com a placenta da câmara «intrusa» num quotidiano baralhado em afirmações ruidosas de artefactos meramente estabelecidos em "demandas de exibição comercial".
Assim, o que hoje posso sentir de uma poesia de um profundo desgaste de busca do alterável fixo, não compromete a casa poética do poeta ao dizer claramente que: Jorge Velhote é categoricamente um "lorde" impaciente que frequenta a poesia com tal lassidão e incisão fecundantes que nos permite emoldurá-la como uma fotografia que se reconhece pelo bisturi mimético com que se apoderou da sua «amante», raptada num instante de sofreguidão passiva, para logo depois a exaltar no imaginário surpreso de cada um dos seus leitores... Velhote é um poeta com uma exaltação sensorial que só a lente lhe pode confinar objectivos surpreendentes! Com estima um abraço ao poeta!
ANTÓNIO TEIXEIRA E CASTRO
(DUAS DA MANHÃ, DE 07-05-2020), PORTO