Dar a voz ao poema. Deixar que ele encontre o papel. O verso molda-se «até onde se quer». Ele pode ser «tanto montanha como campo lavrado ou montra da cidade». Mas ele é sempre corpo, braços, cabeça, coração. O verso é isso tudo num amplexo humano ao mundo: «A agonia do espaço, a tortura do tempo,/ e assim, a luta: /longa necessidade, /em sobressalto: /a alma». Isto diz-nos Ana Luísa Amaral, nome grande da actual poesia portuguesa.
Depois de «A Génese do Amor», livro de 2005 com o qual venceu o Prémio Correntes d’Escritas 2007, a autora traz-nos «Entre dois rios e outras noites», Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE) 2008, para mostrar com que fios se tece a linguagem do silêncio, qual a matéria da poesia e que halo o liberta e lhe dá forma.
Radicada na memória, a poesia de Ana Luísa Amaral tem a originalidade de rasgar esse tempo, pois a poesia vive de «desconjunções» e do avesso, precisa de uma urgência, «o olhar que fala, fala de um ponto outro»: «As linhas todas tortas outra vez, /e a meia muito em seda e muito preta, / espreitando da gaveta, /enovelada e do avesso /em verso».
«Teia de espelhos», jogo entre «dois rios e outras noites», o poema é, então, o resultado do acaso: «Que mística haverá /neste colocar versos, uns sobre os /outros, peças de jogar, pirâmides / de plástico ou madeira, /os faraós ausentes? //Convoco o sol, que é meu, /mas não aquece / E sou quase completa nessa /imperfeição».
Nas «outras noites» para muitos encontros da alma com a palavra, surgem poemas como este «à distância do céu»:
Horror é conhecer
O fundo do abismo
ou da muralha
saber até à precisão mais certa
as unhas de distância
para o céu
Horror é conhecer
O vento mais macio
a bandeira mais clara
a que anuncia
mas sem dentes nem
mãos
Horror é conhecer:
tudo o resto se cura
com a vida
O fundo do abismo
ou da muralha
saber até à precisão mais certa
as unhas de distância
para o céu
Horror é conhecer
O vento mais macio
a bandeira mais clara
a que anuncia
mas sem dentes nem
mãos
Horror é conhecer:
tudo o resto se cura
com a vida
Fortíssimo ao longo de todo o livro, o jogo entre a memória e a urgência do novo olhar irrompe assim no poema sobre a alma oval das pontes:
(…)
«Podem ser do que forem
as pontes de que falo,
que nada lhes retira a alma mais oval
como a do espelho
que tive há muito tempo.
III
Tive um espelho em criança
que me lembrava um rio,
me fez lembrar um rio,
as suas pontes.
Falei. Que o coração possa Sonhar –
«Podem ser do que forem
as pontes de que falo,
que nada lhes retira a alma mais oval
como a do espelho
que tive há muito tempo.
III
Tive um espelho em criança
que me lembrava um rio,
me fez lembrar um rio,
as suas pontes.
Falei. Que o coração possa Sonhar –
Também, a ideia do poema como lugar dos sonhos, urdidores de histórias de utopia, acompanha este livro e está bem patente no longo e belíssimo poema «de sonhos e além: o guardador», em três andamentos, sobre um pastor estatutário que desejou um dia «além de guardar sonhos, /gravar uma paisagem», e «gravou-a num sonho, /que, um dia, tresmalhado, /o encontrou». Veja-se um extracto do final do poema:
(...)
E o pastor-estatuário,
que guardara e gravara o que de mais ninguém,
viu como o aguardava tudo, ou quase:
os mais perfeitos prados,
o absoluto e recortado amor,
em sonho: o mais tangível.
E aquilo que os seus olhos contemplavam
não tinha jeito ou modo
em tempo algum
E desejar
era maior que tudo
– o mais vivo navio
para a viagem
E o pastor-estatuário,
que guardara e gravara o que de mais ninguém,
viu como o aguardava tudo, ou quase:
os mais perfeitos prados,
o absoluto e recortado amor,
em sonho: o mais tangível.
E aquilo que os seus olhos contemplavam
não tinha jeito ou modo
em tempo algum
E desejar
era maior que tudo
– o mais vivo navio
para a viagem
Entre dois rios e outras noites, Ana Luísa Amaral; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
...Debaixo do fogão
só o silêncio frio...
Um beijo, Teresa
Artur
...mas é quente o sangue
a senha
para outro silêncio...
Beijo, Artur
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