quinta-feira, 26 de junho de 2008

Vidas que a literatura dá

Romance galardoado de Carlos Machado

João Hermínio teve a oportunidade de viver duas vezes. Por causa dele, Alcina, a sua namorada de sempre, «tomou consciência de que a sua individualidade encerrava outros seres» e também ela viveu duas existências. Por causa deles, pode o leitor viver muitas existências incentivado pelas páginas de uma narrativa exímia.

«O Homem que viveu duas vezes» é o título do romance a que nos referimos, e Carlos Machado é o contador habilíssimo de histórias que constroem vidas. Primeiro livro do autor, e logo galardoado com o «Prémio Alves Redol 2006», atribuído pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, este romance de prosa musculada, coloquial e imprevista, que ata o leitor às suas páginas e o mantém inquieto até ao final, entra na literatura portuguesa pela porta a que tem direito: a porta grande. A edição é da Presença, editora que tem a chancela de três títulos de David Machado, filho de Carlos Machado.

No interior deste «O Homem que viveu duas vezes» o leitor encontra dois livros – «O livro de Alcina», primeiro, e «O livro de Livro de João Hermínio», depois, cada um com 7 capítulos, o mesmo número da Criação, porque é criação, nas suas múltiplas aparições, que jorra das 289 páginas. Os livros, como dois capítulos ou dois caminhos de construção da identidade, apresentam as mesmas personagens, no mesmo espaço e tempo narrativo, porém com enredos divergentes e finais distintos, que, evidentemente, aqui não revelamos, tanto mais que ambos os livros têm espaço para o leitor tecer o seu enredo imaginativo e definir o final.

A acção decorre entre 1940 e 1975, na aldeia de Covelo, um lugarejo encravado entre o Gerês e Montalegre, vila esta onde o autor nasceu, em 1954, e onde escutou, desta a infância, “historietas” ancestrais, que agora esculpe na história maior do seu romance. Em Covelo a vida poderia parecer «constante e eterna», mas quem lá vivia sufocava dores e tentações que só um padre em corrupio tentava acalmar para que as almas não se perdessem, pois «locais como aqueles eram os preferidos do Diabo para atormentar gentes deste mundo».

É neste universo pejado de mistério humano, que Carlos Machado alimenta soberanamente parágrafo a parágrafo, que o leitor se embrenha, comandado por duas personagens: Alcina, professora de 45 anos, estimada por todos e João Hermínio que volta ao lugar 25 anos depois e após uma suposta ida para o Brasil para fazer fortuna.

O amor não consumado entre os dois antes dele partir deixou Alcina entregue à nostalgia, e a um «sentimento de fidelidade» que alimentou com um misto de amor e raiva por ele nunca ter dado notícias. João Hermínio, que tinha nas veias «o sangue do contrabando», herança do seu pai, regressa parecendo ele, mas parecendo diferente. Os ziguezagues da vida mudarão assim tanto as pessoas? E por que voltou João? Seria por essa coisa indefinida «das raízes, da terra», a crescer na alma com nome Saudade? Afinal, ele nunca esqueceu Alcina, revelam as cartas que ele lhe foi escrevendo durante a ausência, e que agora lhas entrega.

Mas por que razão lhas entrega ele se na última carta escreveu que elas chegarão às mãos de Alcina através de um mensageiro? «Só se deve buscar aquilo que tem a resposta que sabemos que nos agrada», ou devem enfrentar-se os medos mesmo que no ar paire o «cheiro de enxofre», ou a ameaça de trovoada? Será certamente cada um dos leitores a dar a resposta e a decidir a actuação. Este é um ardil de Carlos Machado com uma consequência clara: projectando-se nesta narrativa pela escolhas que faz, o leitor dificilmente a esquecerá. Não é esse o atributo da melhor literatura?

Extracto:

Desejou possuir Alcina numa vez derradeira e partir para sempre levando consigo apenas o perfume das flores do vestido e aquele cheiro a alfazema que desde o dia em que a encontrara no cemitério não mais o largara. Pensou como era injusta a vida que lhe trocava todas as voltas sem saber porquê. Repetidas vezes teve um arranco de contar tudo a Alcina, confessar-lhe quem era. Que João Hermínio não queria ser quem era, mas quem era abria-lhe de par em par o coração daquela mulher.

O Homem que viveu duas vezes, Carlos Machado; Editorial Presença, Lisboa 2007

© Teresa Sá Couto

Sem comentários: