sexta-feira, 4 de julho de 2008

O DOMADOR DE VENTOS

«Aonde o Vento me Levar» é um título de Manuel Jorge Marmelo. Título ardiloso que indicia o grande jogo que se joga entre a palavra na deriva do vento e o único que os pode dominar: o escritor. E este é o grande e misterioso jogo entre o criador e a criação que o autor cumpre com engenho, também no desafio com o leitor.

«O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, por ter bebido de todos», escreveu Jorge Luís Borges. Também Manuel Jorge Marmelo se propõe, e nos propõe, «descobrir esse rio» onde se mata a sede de quem somos e onde, mirando-nos nas suas águas, nos podemos redescobrir. O livro que agora sugiro dá conta dessa demanda, é um espaço cósmico, espelho e mapa do universo, o Aleph, lugar onde confluem «sem se confundirem, todos os lugares» da terra, todos os livros e todos os homens. E cumpre-se uma leitura de alquimias.

Todos temos algo de fixo e de movediço. Também nesta ficção, o narrador, o Eu, propõe-se escrever um livro de viagens sem sair do seu lugar. Assim, envia a personagem «M.» para que lhe envie notas que ele converterá em literatura. Mas o que acontece ao projecto literário quando a personagem tem ganas de autonomia e subverte os papéis tornando-se ela no escritor, deixando o primeiro escritor à deriva? Podem as personagens escrever um livro relegando o escritor para o papel de observador? E pode esta peleja ser substantiva ao ponto de com ela se urdir uma narrativa? Manuel Jorge Marmelo responde-nos em 158 páginas de reboliço, como sempre o são as da melhor literatura.

O escritor e a criação

«Começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca?», escreveu Jorge luís Borges em «O Aleph» (1949). Também Manuel Jorge Marmelo, detendo-se nessa tensão entre ficção e realidade, e como elas se contaminam, apresenta-nos a quimera literária através de um narrador céptico que maldiz o método utilizado para escrever, lamentando-se por «ter deixado entrar tanta realidade no casulo de livro» que construiu dentro de si, concluindo: «eis, pois, o que me falta: copiar, inventar e mentir.

A isto se resume a literatura.». Este princípio de ocultação da realidade como motor da obra literária é veiculado por Enrique Vila-Matas no seu último romance Doutor Pasavento, com a personagem que, de um quarto e cidade reais, passeia «por alamedas mentais nesse fim do mundo onde se colocou» o seu cérebro: «desaparecer é ceder lugar ao outro» e, «quem quiser ir mais além terá de desaparecer».

Em «Aonde o vento me levar» mostra-se como a ficção é um caminho de introspecção e, por isso, gerador de realidade: «M. talvez nem sequer exista. Tê-lo-ei arrancado de dentro de mim, como um pedaço inútil das minhas entranhas, e, ao fazê-lo, dei-lhe uma vida que jamais terei. Mesmo se não devo excluir completamente a possibilidade, nada remota, de me ter ele inventado a mim, enche-me de um peculiar orgulho saber que essa porção daquilo que sou (ou julgo ser) foi já tão longe.»

Homenagem a África

Com o narrador, anda o leitor de cá para lá, entre páginas de outros livros que ele lhe abre, a sorrir pela consentida sujeição à leitura – ou deslumbrado com o Aleph de Manuel Jorge Marmelo, que o envolve em sons, cheiros e texturas de África –, pouco se importando com os seus lamentos por não conseguir uma história que dê corpo ao seu livro.Escreveu, ainda, o escritor argentino: «Vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que escreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.».

De incertos e longínquos locais da África profunda, descalço para se fundir com a terra, “M.”, que não está quieto, «escreve e escreve e escreve» e vai enviando aerogramas que o narrador reproduz, não sem se questionar sobre a inutilidade da viagem e sobre o espaçamento com que lhe chegam alguns dos bilhetes de M. que, «Se está num sitio e, depois, aparece escrevendo em outro bastante distante, algum caminho há-de ter feito». Metáfora da inventiva literária, que pode atravessar fronteiras onde bem entende: «Não tenho passaporte e sou quase incorpóreo (…) Afago a casca grossa dos embondeiros e neles sinto a muda palpitação da terra. Faço amor com as árvores e acaricio a pele dos rios. Mergulho os dedos na terra para fecundá-la de mim.».

«Aonde o vento me levar» é a «síntese imperfeita de um livro sobre coisa nenhuma e no qual nada acontece»: “M.” viaja «sem rumo predefinido», como tantas vezes qualquer um de nós o faz; a viagem de “M.” é «destrambelhada, temerária e estéril» como sempre o é, nalgum ponto, a existência humana; “M.” tem um «segredo, uma contra-senha, um abracadabra», como todos nós. Cabe-nos, pois, usar a chave que nos coube para acedermos à nossa outra porção. E há que partir e ir até aonde o vento nos levar.

Aonde o Vento me levar, Manuel Jorge Marmelo; Editorial Campo das Letras, Porto

© Teresa Sá Couto

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