domingo, 20 de julho de 2008

Idades eternas de Mia Couto

Livro de poesia do escritor moçambicano

A poesia capta o instante e solta-o na eternidade. Isso ensina-nos Mia Couto, o escritor e sempre poeta moçambicano, o que reparte o «doce milagre da refeição» da palavra. «A diferença /entre o poeta e a cigarra /é apenas a sinceridade», escreve. A diferença entre os outros homens e o poeta é que este conhece a pele da palavra, despe-a e ama-a, sabe-lhe o cheiro e a respiração, a luz e a treva, e solta-a porque sabe que ela não lhe pertence, que ela é livre e que o seu desígnio é o voo da eternidade. Depois de «Raiz de Orvalho e outros poemas», editado em 1999, e de vários poemas em prosa, que são todos os seus romances, Mia brinda-nos com o livro de poesia «Idades, Cidades, Divindades». E nele encontramos a palavra sem idade, a cidade universal, mestiça e inteira, o esplendor do voo vocabular que, místico e iniciático, transporta tudo o que somos.

Conjugando como ninguém as palavras que todos conhecemos, Mia Couto atinge-nos na liquidez primordial que nos corre nas veias, numa precisão que o próprio Mia desvenda: «fazer da palavra um embalo /é o mais puro e apurado senso da poesia». Talvez o destino de ser poeta nunca tenha estado tão depurado: «Meu vício /é vitalício: comer a Vida /deitando-a entontecida /sobre o linho do idioma. /Nesse leito transverso /dispo-a com um só verso. /Até chegar ao fim da voz. /Até ser um corpo sem foz.». Um vício assim radicado no chão: «Tenho a sede /do embondeiro: /ao invés de beber, /eu engulo o chão inteiro.».

Palavras de duas águas

Duas águas, duas culturas, Portugal e África: por diversas vezes Mia Couto tem abordado esta questão da identidade, dando-lhe forma nos seus romances, defendendo-a como filosofia da sua vida. Trata-se de um património que se transporta e que evidencia um sentido mais lato: não há identidades singulares, o ser humano tem identidades múltiplas, que constrói e reconstrói constantemente. Aliando-se o poeta ao contador de estórias, aquela filosofia é reiterada neste livro, como nos surpreendentes «O idioma» e «O outro idioma. Confira-se:

Silvestre quer saber /porque razão eu estrago o português /escrevendo palavras que nem há. /Não é a pessoa que escolhe a palavra. / É o inverso. /Isso eu podia ter respondido. /Mas não. /O tudo que disse foi: /é um crime passional, Silvestre. /É que eu amo tanto a Vida /que ela não tem /cabimento em nenhum idioma. /Silvestre sorriu. /Afinal, também ele já cometera /o idêntico crime: /todas as mulheres que amara /ele as rebaptizara, vezes sem fim. /Amor se parece com a Vida: /ambos nascem na sede da palavra, /ambos morrem na palavra bebida.

***

Inquirido / sobre a sua fluência /em português, respondeu: /- Tenho duas línguas: /uma para mentir,/ outra para ser enganado./ A professora /ainda perguntou: / - E qual delas é o português? /- Já não me lembro, respondeu.

Na curva do rio…

A água é um dos elementos omnipresentes na escrita do autor de Mar me Quer. Ela esculpe a dor, o amor e o sonho; ela é o princípio, o caminho, o fim; ela é a Espera. Talvez por isto, haja a metafísica de que «temos a raiz num rio /e é por isso que o mar /nos dá a tristeza de um destino»; será também essa a aclaração do segredo do poeta: «todas as noites /me deito num livro /para em outra vida desaguar. /Rio escapando da margem, /margem escarpando um rio.»; e é por aquela mesma razão que escorrem poemas como este:

(…)
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera

Mas eu deito-me no teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.



Idades, Cidades, Divindades, Mia Couto; Editorial Caminho, Lisboa, Setembro 2007
© Teresa Sá Couto

6 comentários:

P disse...

Excelente, este blog que ainda não tinha descoberto.
P.

Teresa disse...

Olá baudolino
Muito Obrigada e bem-vindo a esta minha casa de livros!

Um Abraço

TSC

Claudia Sousa Dias disse...

Sabes? Vou voltar a este post depois de ter lido os dois livros e tirado a outline e redigido o rascunho dos respectivos comentários!


Grande beijinho


CSD

Teresa disse...

;-))

E eu estou com 4 livros à frente e sei que estão mais dois a caminho (tudo literatura portuguesa e lusófona)..e não sei por qual começar...aiai..Vivam os livros!

c.a. (n.c.) disse...

Magnífica «nota» de leitura, T.! Assim dá mesmo gosto...
Mais um para a lista, claro... [lá cantava o Rui Veloso, «esta mulher é a minha ruína...» :-)))) ]
Abraço

Teresa disse...

Bom, digamos que ruínas com livros dão magníficos edifícios..rssss.
"descaramento" meu, bem sei :)

Abraço
TSC