segunda-feira, 7 de julho de 2008

«Venenos de Deus, Remédios do Diabo»

O novíssimo romance de Mia Couto

Aos 10 anos todos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que mais ninguém tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.

Estas são palavras de Bartolomeu Sozinho, um septuagenário da Vila de Cacimba, ex-mecânico no colonial transatlântico Infante D. Henrique, magnífica personagem do novíssimo romance «Venenos de Deus, Remédios do Diabo» de Mia Couto. Na idade da sabedoria, o escritor moçambicano semeia mais uma narrativa com a torrente e o exotismo do chão africano e almas que nele voam carregando a espessura dos segredos e das lembranças. Uma leitura de um fôlego por 188 páginas imperdíveis para estas férias.

Sidónio Rosa é o jovem médico português que vai para Moçambique para sossegar «um bater de pilão no peito», para encontrar Deolinda, uma mulata que ele conheceu em Lisboa durante um congresso. Mas Deolinda morreu, e o facto é-lhe inicialmente ocultado, e ela não era quem ele pensava. É ao embrenhar-se na África profunda – mesmo conhecendo apenas a rua de areia que liga a pensão ao posto de saúde e à casa de Bartolomeu e Dona Muda, pais de Deolinda – que este europeu descobre a sua missão naquele continente: a de acordar segredos e salvar as lembranças, já que a âncora é a lembrança ou, como diz Bartolomeu, «é o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida».

Com um narrador omnisciente que completa a fala e os pensamentos das personagens, e exímio a remexer nas emoções mais fundas, segue o leitor na vertigem narrativa para descobrir que «os segredos, em Vila Cacimba, não se enterram nunca em cova. Ficam em buraco aberto como ferida que nunca ganha cicatriz». Enquanto espera Deolinda, Sidónio Rosa, rebaptizado de Sidonho pelo povo, ocupa-se a tratar de uma epidemia de meningite, com rumores de obra encomendada, coisa de maus espíritos, doença que faz os homens vagabundearem enlouquecidos pelas ruas – os tresandarilhos – agitando os braços como se quisessem voar, e gasta os passos a caminho de casa dos Sozinhos.

Desde o início, o médico – que afinal não é médico porque ainda lhe faltam umas cadeiras do curso – é enredado numa teia de mentiras: «poucos e desamparados, partilhando secretas cumplicidades e sofrendo de um mesmo sentimento de orfandade. A cultura que os criou está longe, noutro tempo, noutro universo. A mentira é o único remédio que lhes resta contra essa solitária lonjura.». Deolinda fora amante de Alfredo Suacelência, o vitalício administrador da Vila e amigo de infância de Bartolomeu ou fora amante do próprio pai? Ou de nenhum dos dois? Morreu de aborto ou doutra doença? Era mesmo filha do casal Sozinho ou irmã de Muda e, assim, cunhada de Bartolomeu?

«A vida é um rio: a água junta e separa»

Bartolomeu e Muda são as duas personagens centrais, soberanamente desenhadas nos diálogos e nos silêncios que os diálogos ostentam, como, aliás, Mia Couto já nos habituou. À semelhança doutros títulos do autor, é aqui retomada, misticamente, a figura de um casal feito de duas águas do mesmo rio, duas vidas ondulantes distintas, mas partes do mesmo destino: «os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os passos dela são redondos: de quem anda em ilha».
Viviam «como o dedo e o anel: não nos fazemos falta, mas não vivemos longe um do outro», diz a mulher, que «partilhava a condição das demais mulheres da Vila: envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber morrer». «A vida é um rio, Doutor: a água junta e separa», diz ela, caracterizando a vivência da sua dor: «O meu chorar é feito à medida do lenço».

Moribundo, «sombra esvoaçando no escuro» de uma casa onde se mantinha fechado, com os pés cheios de escamas, o septuagenário padece de uma misteriosa doença que dizia ser de família: dizia estar a lagartar-se, pois já o avô tinha morrido lagarto. Ao médico, faz pedidos insistentes: para «alvoroçar o coração, solavancar o corpo», pede uma das novas «pretas loiras, de olhos azuis» ou uma catorzinha ou até a sua mulher, disfarçada de puta, pois foi sempre ela que ele quis; mas, sobretudo, ele que sonhou ser mecânico «para consertar o mundo», pedia ao médico que o curasse de sonhar, pois «sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco»: «Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é ao contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos».

«O tempo é o lenço de toda a lágrima»

«O sofrimento é sempre a nossa escola maior», diz Bartolomeu enquanto se deixava «existir, com a mesma inércia que o crescimento das unhas». A sua doença era a saudade, essa doença do tempo que semeia perdas e desata a vontade de nos unirmos a elas ou ressuscitá-las pelas lembranças: «O Homem entende a vida. Mas só os bichos entendem a Morte.». Também Muda padecia da mesma doença que a fazia, todos os finais de tarde, ir ao rio chorar ou derramar a sua tristeza junto da campa de Deolinda.

O jovem médico resolve cortar as amarras com aquela terra e regressar a Lisboa. Mas a ponte entre culturas fora erigida e ela é indestrutível, mostra-nos soberanamente, e uma vez mais, Mia Couto: o médico carregava com ele um novo possível encontro, com Isadora, verdadeira filha de Bartolomeu, fruto de uma das suas viagens de marinheiro a Portugal e que viveria perto de Lisboa. Por outro lado, o tempo da memória, lugar habitado pelas almas agarradas à terra, passa a ter outro representante; uma mulher misteriosa, vestida de cinzento, sentada à beira da estrada, por onde passa a camioneta que leva Sidónio, acabada de chegar com uma missão: semear por toda a Vila as flores brancas do esquecimento, flores que se plantam junto dos cemitérios «para que os mortos se esqueçam de que, em algum momento foram viventes».

Numa narrativa cristalina, que nos arranca sorrisos e estremecimentos, Mia Couto mostra-nos mais esta verdade existencial: todos somos feitos de tempo e na nossa alma vivente vivem também todas as almas que tocámos e que já partiram, mas que, desobedientes, recusamos deixar ir… Para «venenos de Deus, remédios do Diabo»...


Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto; Editorial Caminho, Lisboa 2008


Outros artigos meus sobre Mia Couto, editados há 3 anos:

http://www.triplov.com/letras/teresa_sa_couto/mia_couto.htm


© Teresa Sá Couto

2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Ainda vou ler o livro que tenho em casa autografado pelo Mia!


Tenho duas entrevistas dele no blog rendez-vous...em resposta a alguns detractores do Mia (eheheh...!)

Se quiseres lá passar...

Beijo grande.


CSD

Teresa disse...

Vou ler as entrevistas, Sim, Cláudia!
As leituras de Mia dão de beber a uma sede funda que tenho; não passo sem elas.
Vou preparar para a Orgia uma leitura comparada - partindo de três vertentes - entre este e o livro anterior.

Outro beijo grande!
TSC