Não é esquecida, tampouco tardia, esta oferenda com nome Jorge Pinheiro! O deslumbramento não se olvida nem tem um tempo para acontecer. Sabe-o João Miguel Fernandes Jorge, autor dos textos que acompanham as fotografias de telas daquele pintor. Sabe-o a editora Campo das Letras que, em colaboração com a Galeria Palmira Suso, editou o esplendor em livro. É este, dos vários livros que nos trazem Jorge Pinheiro para nossas casas, que chamo à atenção. A capa dúctil e discreta guarda, convidativa, uma grande viagem: a dos sentidos desassossegados por dezasseis telas de pureza policroma, metaforização e teatralidade composicional.
«O som aniquila a grande beleza do silêncio», disse Charles Chaplin. Daí o grito dos seus filmes mudos. Por isso, Chaplin surge nas telas de Jorge Pinheiro, pintor que pinta com singularidade o silêncio estrídulo da alma inconformada e intervencionista.
Jorge Pinheiro nasceu em Coimbra, em 1931. Em 1963, quando concluiu a sua formação académica na Escola de Belas-Artes do Porto, criou com os amigos Ângelo de Sousa, José Rodrigues e Armando Alves o grupo artístico "Os Quatro Vintes", numa alusão às classificações obtidas na Academia. Foi com esse nome que o grupo expôs no Porto, em Lisboa e em Paris (1968-1971). Com vários galardões pela sua pintura, Jorge Pinheiro está representado em diversos museus, como o Soares dos Reis, Serralves ou o Museu Nacional de Arte Contemporânea. Vive e trabalha em São Pedro do Estoril, Lisboa.
Pintar a intensidade do silêncio
O silêncio metafísico está em todas as pinturas coligidas no livro «Jorge Pinheiro – Oferenda Tardia». A abrir, a tela «Porquê?» – com data de realização de Março de 1991 a 2 de Fevereiro de 1992 – e é com esta pergunta, em crescendo inquietante, que se percorrem, em catarse, todas as imagens até à última, «Stabat Mater», de 2006.
Deus apareceu a Abraão em Berseba e disse-lhe: ´Toma o teu filho e sobe com ele a uma montanha que eu te indicarei na terra de Moriá`. Abraão respondeu:
- Senhor, tenho dois filhos. Qual deles devo levar comigo?
- O teu único filho.
-Senhor, cada um é o filho único de sua mãe.
- Leva o filho que tu amas.
- Senhor, amo os dois.
-Leva o filho a que tens mais amor.
- Senhor, o que devo fazer na terra de Moriá?
-Oferece um holocausto no meu altar.
- Senhor, tenho dois filhos. Qual deles devo levar comigo?
- O teu único filho.
-Senhor, cada um é o filho único de sua mãe.
- Leva o filho que tu amas.
- Senhor, amo os dois.
-Leva o filho a que tens mais amor.
- Senhor, o que devo fazer na terra de Moriá?
-Oferece um holocausto no meu altar.
João Miguel Fernandes Jorge transcreve de Génesis XXII este diálogo terrível para ilustrar o seu comentário das pinturas O Sacrifício de Isaac, de 2002, e da série O Jogo da Macaca – O Jogo da Macaca I de 2004, O Jogo da Macaca II e O Jogo da Macaca III, de 2004 – as quatro numa alusão ao conflito israelo-palestiniano.
Nas telas, as personagens «movem-se entre um grito de terror e o sacrifício». Nem falta o holocausto no altar de pedra, nem o grito da mulher e mãe que ressoa num infinito sofrimento – à maneira de O Grito de Munch –, a evocar e a convocar toda a humanidade. E o silêncio está lá, denso na tragédia, estridente na denúncia da ruína humana, instigando à reflexão: «Qualquer morte é um sacrifício, um drama que desce sobre a pedra do sacrifício.».
Palcos onde se encena o grande jogo da vida construído alegoricamente: eis as telas de Jorge Pinheiro. Palcos onde se representa o ser humano, andarilho, Charlot, «The Tramp», o niilismo, mas também a esperança.
Metáfora da vida é, também, o grande jogo da macaca que um rapaz percorre, em figura invertida (imagem), «pé-ante-pé, quadrado a quadrado, desenhados a azul, num azul de giz de quadro negro de escola. «Num cuidadoso equilíbrio jogado com todo o corpo, não vá o menino, duplo de si, despertar para a crueldade do mundo», diz o magnífico texto de João Jorge.
O movimento que «incendeia»
Não é só o silêncio que dá forma à inquietação do espectador. Ela advém também do movimento das pinturas com mensagens que nos atingem, espectadores, fazendo-nos interlocutores das narrativas. Para esse movimento concorre a Luz que incendeia as telas, e nos incendeia, que foca argumentativamente pontos ou personagens, como que projecções da consciência – da ficção, do autor, do espectador.
«Jorge Pinheiro: um pintor, um signo. Na procura de uma verdade pictórica, o pintor deixa percorrer a sua obra de uma luz que ’incendeia’, com uma arqueologia nostálgica e com a fragilidade de uma existência longínqua, ícones, índices e símbolos», escreve João Miguel Fernandes Jorge sobre a pintura de Jorge Pinheiro.
E ecos, acrescento eu. Ecos longínquos oriundos dos primórdios da existência da alma humana, ecos fundos da alma que aprendeu a observar e a não se conformar. São os ecos da insanidade da guerra que encontramos na série de pinturas «O jogo da Macaca», onde se representa esse jogo ignóbil dos homens, e que nos remetem para outros ecos de denúncia que nos chegam de António Gedeão: «Não há mas. /Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal. /Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro /e sem lhes perguntar porque maltratam. /Eu sei porque é que morro. /Eles é que não sabem porque matam.».
Jorge Pinheiro - Oferenda Tardia, textos de João Miguel Fernandes Jorge; Editorial Campo das Letras, Porto, Dezembro 2006
© Teresa Sá Couto
2 comentários:
Pinturas! Arte! Expressão do subjetivo! Do inconsciente! Belo!
Obrigada pela visita, Marcelo.
Um abraço
Teresa Sá Couto
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