quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

«Emendar a Morte, Pactos em Literatura»

Como vive a literatura «a nossa forma de morrer»? Ela é capaz de “enganar” a morte pela sua emenda, oferecendo-nos a correcção de vida? Que pactos e emendas nos dá ela? Afinal, não é a literatura um lugar de relações que o indivíduo estabelece consigo mesmo, com os outros e com o mundo, um lugar de diálogo com as formas de viver, de morrer e como morrer, onde se criam pactos e emendas para os limites da condição humana?

Interceptar pactos, segui-los, questioná-los, inquirir-lhes os jogos, as premissas, as tensões e as metáforas é a proposta do Ensaio «Emendar a Morte – Pactos em literatura» assinado pela escritora e professora universitária Helena Carvalhão Buescu. Com o título emprestado de palavras de Luiza Neto Jorge, «Emendar a Morte» é um magnífico projecto de grande fôlego, que se ancora na diversidade dos pactos, «ensaiando olhar para o literário como um dos modos maiores da discursividade pelos quais a humanidade-enquanto-relação (e por isso pacto) é pensada», refere a ensaísta. São 308 páginas que compreendem três grandes partes, por sua vez organizadas de forma minudente em capítulos.

A proposta é irrecusável, e assim anunciada: «O que queremos dizer quando dizemos que "emendamos um vestido", ou que "emendamos um erro" (não morremos todos por engano, no fim de contas? Sempre pelo menos um pouco por engano?): "emendar a morte" significa que é precisamente através da múltipla plasticidade dos nossos gestos humanos que nos podemos pensar como dirigidos a uma morte que entretanto nunca deixamos que dissolva aquilo que em nós responde, aquilo que em nós a entende como intolerável.» Assim, acrescenta-se: «os pactos em literatura propostos neste volume representam alguns dos modos em que essa emenda ou correcção se pode verter: os pactos que estabelecemos são outras tantas formas de responder à morte, de a situar no terreno do pensável, ela que não pode ser pensada por dentro.».

Na primeira parte, detendo-se na problemática do cânone e no estatuto da literatura, a ensaísta convoca diversos autores, para argumentar que a literatura emenda a sua própria morte, enfrentando a era tecnológica, pós-industrial, com a capacidade de se transformar para poder sempre falar-nos, sendo as obras o resultado da «errância colectiva da imaginação humana criadora em permanência de novas configurações porque inventora», no dizer de Eduardo Lourenço. A negociação do literário será, pois, o pacto que a literatura estabelece com a sua própria morte ou, ainda, como escreveu Calvino: «a função da literatura varia de acordo com a situação. Durante longos períodos de tempo a literatura parece trabalhar no sentido da consagração, da confirmação de valores, da aceitação da autoridade. Mas em determinado momento, alguma coisa é despoletada no mecanismo, e a literatura faz nascer um movimento na direcção oposta, recusando ver coisas e dizer coisas da forma como tinham sido até aí vistas e ditas.».

Na segunda e terceira partes, a autora segue os pactos em literatura, inquirindo textos de autores tão diversos como Proust, Dostoiévski, Lobo Antunes, Saramago, Stendhal, Garrett, Lídia Jorge ou Coetzee, procura-lhes «rastos, ecos e sombras», intercepta «ligações perigosas» entre autores, como Stendhal e Garrett, Pessoa e Mallarmé, Dostoiévski e Vergílio Ferreira ou Saramago e Dostoiévski. Texto após texto, um tapete infinito e complexo que, soberano, este Ensaio desenrola. São papéis e encenações do humano na literatura, mostruário do que acontece e do que pode não ter acontecido, jogo jogado entre a consciência e a premência de atentar no real, a escrita enquanto engendramento antropológico, social e político. Um complexo engendramento que se encontra, fulgurantemente, no discurso vergiliano, assim apresentado por Helena Carvalhão Buescu:

«se é certo que nele a intensidade de uma voz pessoal se faz sempre sentir, não é entretanto menos visível que essa voz não coincide com os estritos (e estreitos) limites daquilo que usualmente consideramos como “o indivíduo”. Este indivíduo é sobretudo, para Vergílio Ferreira (aqui uma vez mais com Dostoiévski), o lugar onde repercutem as várias vozes do mundo: passados e presentes; classes e pertenças diferenciadas; realidades vividas e outras tantas imaginadas, ou temidas; géneros de identidade sexual que se falam; memórias e futuros que se encontram nodularmente no momento intenso do presente; idades do homem para quem o passado nunca está encerrado e para quem o futuro faz parte do agora – todos estes discursos entretecem e em última análise produzem o discurso individual, nele fazendo cristalizar os múltiplos e mutáveis pactos pelos quais tecem a sua vida.».


Emendar a Morte – Pactos em literatura, Helena Carvalhão Buescu; Editorial Campo das Letras, Porto 2008


nota: Helena Carvalhão Buescu editou em 2007 o livro de poesia Ardem as Trevas e Outros Lugares, que aconselho vivamente


© Teresa Sá Couto

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