Toda a criação é incompatível com a censura. Durante os anos de mutismo imposto pela ideologia politica do Estado Novo, ou de criação artística controlada, a arte literária livre encontrou a voz do NÃO com que se exprimiu. Recuperamos aqui rasgos de alma amotinada, estampidos que desassossegaram o silêncio cortado pela bala das palavras. São palavras com o peso da consciência e que erguiam «a fogo e a ferro /um palácio de força e resistência». Uma vez mais, o fulgor sanguíneo e a rebeldia da poesia iluminam-nos e ensinam-nos a combater a inoperância e a resignação.
Se aqui faço uma homenagem à luta por Abril, invoco também Soeiro Pereira Gomes, o autor do pungente romance "Esteiros", dedicado aos "filhos dos homens que nunca foram meninos», cujo centenário de nascimento se celebrou no passado dia 14 de Abril.
Se aqui faço uma homenagem à luta por Abril, invoco também Soeiro Pereira Gomes, o autor do pungente romance "Esteiros", dedicado aos "filhos dos homens que nunca foram meninos», cujo centenário de nascimento se celebrou no passado dia 14 de Abril.
O sentimento amotinado gera o ódio
Sabemos que calando-se um sentimento de injustiça gera-se o ódio. Os vergões e as cicatrizes que os poetas sofriam levavam-nos à configuração da ira, a levantarem as vozes, a assumirem-se como arautos das coisas que doíam.
Filhos de um deus selvagem, os poetas semeavam no terreno proibido a sua verdade, «Esta força selvagem e secreta, /Esta semente agreste que trazemos /E gera heróis e homens e poetas.». José Carlos Ary dos Santos vai ao abismo da raiva dizendo que «Chocalhamos a raiva quando calha /quando não calha calha-nos a vez / e falha-nos a voz e somos a escumalha /dum país vasilhado e pretoguês. / Ai dom Sebastião / tão tão tão / tão encoberto que pouca gente sabe /que o nevoeiro encobre /um português suave.». O poeta traça a sua missão onde «Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado não!».
Em "Turismo" por este seu/nosso país, diz-nos, ainda, gritando a denuncia: «Visitar este país /até à última gota: /O porco e o Porto a bola e a bolota /o que é como quem diz /itinerar a derrota. /Tudo tem lugar no mapa /Paris Washington Moscovo /Em Itália vê-se o papa /em Lisboa vê-se o povo. // Aqui ao pé do vento forjamos o lamento /dum país que se vende a peso nos prospectos /tanto de sol ardente tanto de cal fervente /e uma nódoa de céu nos xailes pretos. /Aqui ao pé do fel gritamos o segredo /do que parece fácil neste país de luz: /é apenas fome. /É apenas medo. /É apenas sangue. /É apenas pus.».
O poeta José Gomes Ferreira regista com a palavra o seu posicionamento ideológico, liberta a sua ampola de sangue, arremessa o seu grito de ordem, e ri, ri muito, para irritar os tiranos: «Sim, o meu filho está preso, /os nossos filhos, os nossos sonhos estão presos por dentro dos gritos. /Fechados à chave para se construir melhor o silêncio/ – e eu rio. //Rio /e escrevo nas paredes a giz: /FAZ DA TUA DOR UMA ARMA /para sofrer menos. / Covarde.».
O eco e o triunfo da Palavra proibida
Mesmo que algumas palavras sejam proibidas, elas são sempre vivas. Mesmo que mudas e anuladas, há palavras que, vivas, ficam hibernadas, protegidas de uma qualquer cilada, mas que ecoam no seio e por meio de outras palavras. Ary dos Santos dá-nos esse jogo ciciado, ou o que não se diz dizendo: «o coma das palavras não nos deixa /gritar que temos fome. /Todas as coisas morrem uma a uma /à míngua de outro nome.». E assim «a palavra será faca /o sentido será gume /a imagem será chama /mas a matéria é o lume. /Lume dos nervos riscados /pelo fósforo do medo /lume dos dentes serrados /pela goma dum segredo.».
José Gomes Ferreira, com a energia que lhe conhecemos, incentiva o grito, a raiva, o protesto contra um mundo forrado de muros: «Ó camponês, /não me dês /os bons dias. /Nem tires o chapéu /à morte dos dias. / Berra! /Não queiras o céu /antes da terra». É objectivo da palavra que recusa amarras, penetrar, para libertar, outras almas humilhadas pelo enxovalho da prisão. É este o caminho trilhado por Ary dos Santos: «Abre os olhos e vê. Sê vigilante / a reacção não passará diante / do teu punho fechado contra o medo /Levanta-te meu povo. Não é tarde. /Agora é que o mar canta é que o sol arde /pois quando o povo acorda é sempre cedo.». Poeta de palavras resolutas, dele recebemos a seiva que nos impele ao combate. É, afinal, o combate, o que nos espera a vida inteira:
«Lutar é tudo quanto sou capaz. /Não me pari para viver em paz. /Tudo o que eu sou é menos do que eu quero.», e ainda, «Isto vai meus amigos isto vai /um passo atrás são sempre dois em frente /e um povo verdadeiro não se trai /não quer gente mais gente que outra gente. //Depois da tempestade há a bonança /que é verde como a cor que tem a esperança /quando a água de Abril sobre nós cai. /O que é preciso é termos confiança /se fizermos de Maio a nossa lança /isto vai meus amigos isto vai.».
Bibliografia consultada: José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Ed. Avante, Lx, Julho 2002; José Gomes Ferreira, Poesias II e IV, Dom Quixote
© Teresa Sá Couto
4 comentários:
Óptimo texto a lembrar os momentos de dor e glória do antes 25 de Abril, em que o povo estava mudo há tantos anos que muitos nem se apercebiam dessa mudez! Vozes corajosas se levantaram, homens e mulheres decididos tornaram possível o 25 de Abril! Assim continuem a haver pessoas empenhadas em manter o espírito abrileno, a despertar as atenções daqueles que começam de novo a ser silenciados sem que disso se apercebam!
Que surpresa boa, Helena, vê-la aqui nesta minha casa de palavras.
A "garra" é o que nos mantém vivos. E para isso há que estar sempre acordado!
Beijinhos
Teresa
Bons textos (este e o do Sol).
Um beijo e um cravo :)
hb
Obrigada!
Um beijo e um cravo também para ti, Hugo
:)))))
Teresa
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