quinta-feira, 23 de abril de 2009

Poesia que negou a mordaça do silêncio

Toda a criação é incompatível com a censura. Durante os anos de mutismo imposto pela ideologia politica do Estado Novo, ou de criação artística controlada, a arte literária livre encontrou a voz do NÃO com que se exprimiu. Recuperamos aqui rasgos de alma amotinada, estampidos que desassossegaram o silêncio cortado pela bala das palavras. São palavras com o peso da consciência e que erguiam «a fogo e a ferro /um palácio de força e resistência». Uma vez mais, o fulgor sanguíneo e a rebeldia da poesia iluminam-nos e ensinam-nos a combater a inoperância e a resignação.

Se aqui faço uma homenagem à luta por Abril, invoco também Soeiro Pereira Gomes, o autor do pungente romance "Esteiros", dedicado aos "filhos dos homens que nunca foram meninos», cujo centenário de nascimento se celebrou no passado dia 14 de Abril.

O sentimento amotinado gera o ódio

Sabemos que calando-se um sentimento de injustiça gera-se o ódio. Os vergões e as cicatrizes que os poetas sofriam levavam-nos à configuração da ira, a levantarem as vozes, a assumirem-se como arautos das coisas que doíam.

Filhos de um deus selvagem, os poetas semeavam no terreno proibido a sua verdade, «Esta força selvagem e secreta, /Esta semente agreste que trazemos /E gera heróis e homens e poetas.». José Carlos Ary dos Santos vai ao abismo da raiva dizendo que «Chocalhamos a raiva quando calha /quando não calha calha-nos a vez / e falha-nos a voz e somos a escumalha /dum país vasilhado e pretoguês. / Ai dom Sebastião / tão tão tão / tão encoberto que pouca gente sabe /que o nevoeiro encobre /um português suave.». O poeta traça a sua missão onde «Serei tudo o que disserem:/ Poeta castrado não!».

Em "Turismo" por este seu/nosso país, diz-nos, ainda, gritando a denuncia: «Visitar este país /até à última gota: /O porco e o Porto a bola e a bolota /o que é como quem diz /itinerar a derrota. /Tudo tem lugar no mapa /Paris Washington Moscovo /Em Itália vê-se o papa /em Lisboa vê-se o povo. // Aqui ao pé do vento forjamos o lamento /dum país que se vende a peso nos prospectos /tanto de sol ardente tanto de cal fervente /e uma nódoa de céu nos xailes pretos. /Aqui ao pé do fel gritamos o segredo /do que parece fácil neste país de luz: /é apenas fome. /É apenas medo. /É apenas sangue. /É apenas pus.».

O poeta José Gomes Ferreira regista com a palavra o seu posicionamento ideológico, liberta a sua ampola de sangue, arremessa o seu grito de ordem, e ri, ri muito, para irritar os tiranos: «Sim, o meu filho está preso, /os nossos filhos, os nossos sonhos estão presos por dentro dos gritos. /Fechados à chave para se construir melhor o silêncio/ – e eu rio. //Rio /e escrevo nas paredes a giz: /FAZ DA TUA DOR UMA ARMA /para sofrer menos. / Covarde.».

O eco e o triunfo da Palavra proibida

Mesmo que algumas palavras sejam proibidas, elas são sempre vivas. Mesmo que mudas e anuladas, há palavras que, vivas, ficam hibernadas, protegidas de uma qualquer cilada, mas que ecoam no seio e por meio de outras palavras. Ary dos Santos dá-nos esse jogo ciciado, ou o que não se diz dizendo: «o coma das palavras não nos deixa /gritar que temos fome. /Todas as coisas morrem uma a uma /à míngua de outro nome.». E assim «a palavra será faca /o sentido será gume /a imagem será chama /mas a matéria é o lume. /Lume dos nervos riscados /pelo fósforo do medo /lume dos dentes serrados /pela goma dum segredo.».

José Gomes Ferreira, com a energia que lhe conhecemos, incentiva o grito, a raiva, o protesto contra um mundo forrado de muros: «Ó camponês, /não me dês /os bons dias. /Nem tires o chapéu /à morte dos dias. / Berra! /Não queiras o céu /antes da terra». É objectivo da palavra que recusa amarras, penetrar, para libertar, outras almas humilhadas pelo enxovalho da prisão. É este o caminho trilhado por Ary dos Santos: «Abre os olhos e vê. Sê vigilante / a reacção não passará diante / do teu punho fechado contra o medo /Levanta-te meu povo. Não é tarde. /Agora é que o mar canta é que o sol arde /pois quando o povo acorda é sempre cedo.». Poeta de palavras resolutas, dele recebemos a seiva que nos impele ao combate. É, afinal, o combate, o que nos espera a vida inteira:

«Lutar é tudo quanto sou capaz. /Não me pari para viver em paz. /Tudo o que eu sou é menos do que eu quero.», e ainda, «Isto vai meus amigos isto vai /um passo atrás são sempre dois em frente /e um povo verdadeiro não se trai /não quer gente mais gente que outra gente. //Depois da tempestade há a bonança /que é verde como a cor que tem a esperança /quando a água de Abril sobre nós cai. /O que é preciso é termos confiança /se fizermos de Maio a nossa lança /isto vai meus amigos isto vai.».


Bibliografia consultada: José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Ed. Avante, Lx, Julho 2002; José Gomes Ferreira, Poesias II e IV, Dom Quixote

outro texto meu sobre Poesia da Resistência, AQUI

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Helena Guterres disse...

Óptimo texto a lembrar os momentos de dor e glória do antes 25 de Abril, em que o povo estava mudo há tantos anos que muitos nem se apercebiam dessa mudez! Vozes corajosas se levantaram, homens e mulheres decididos tornaram possível o 25 de Abril! Assim continuem a haver pessoas empenhadas em manter o espírito abrileno, a despertar as atenções daqueles que começam de novo a ser silenciados sem que disso se apercebam!

Teresa disse...

Que surpresa boa, Helena, vê-la aqui nesta minha casa de palavras.

A "garra" é o que nos mantém vivos. E para isso há que estar sempre acordado!

Beijinhos
Teresa

hb disse...

Bons textos (este e o do Sol).

Um beijo e um cravo :)
hb

Teresa disse...

Obrigada!
Um beijo e um cravo também para ti, Hugo

:)))))

Teresa