«A minha pintura procura desnudar a própria sombra», diz Adão Cruz, médico cardiologista, ficcionista, poeta e pintor nascido em 1937. A pintura de Adão Cruz é «o canto da arte e da vida», disse o poeta Albano Martins. Para o conferir, ver, sentir e ouvir aquela «espécie de expressionismo ficcionista do sentimento» que nega a ditadura do tempo, temos o belíssimo e majestoso álbum «Hora a hora rente ao tempo», editado pela Campo das Letras, e a procurar urgentemente.
São sessenta e duas pinturas, distribuídas por outras tantas páginas feitas galerias de revelação indiscreta das nossas emoções, sentimentos, quimeras, frustrações, inquietações mais secretas que nos acordam, interrogam e reestruturam, possibilitando-nos uma experiência vivencial imperdível.
Precedendo as imagens, Adão Cruz apresenta um texto de reflexão sobre a Arte – preferindo designá-la por sentimento artístico –, sobre o que ela transporta e como deve ser recepcionada. Enquanto médico, remete uma possível definição a ser dada, um dia, pela neurobiologia; enquanto artista, recusa-lhe a amarra da definição e prefere deixá-la à sua natureza, soltá-la para que se cumpra em liberdade, tanto na liberdade de quem a executa como de quem a contempla: «o espectador deve deixar-se levar pelo que ecoa dentro dele, sem pretender colar-se ao que deve ser, ou àquilo que nos disseram que é ou que lá existe. A obra pode ser o que somos e muito pouco do que lá está.».
Uma utopia de liberdade
Escreve Adão Cruz no poema que abre o Álbum, e a voz do sujeito poético poderia muito bem ser a voz de alguém que observa, escutando-se, as telas do pintor e a partir delas se liberta: «Um dia me darei conta /do teu corpo infindável. /Um dia me darei conta /do tempo que não se perde para lá das formas /do tempo em que não murcham os rebentos /cálidos da minha carne /e o sangue não perde o fulgor /das cores abertas ao sol. /Um dia me darei conta /e nesse dia gostaria de partir.».
Tomar consciência e libertar-se, compreender e tomar a vida, sentir e comprometer-se na luz das novas emoções são os impulsos transmitidos ao espectador da obra de Adão Cruz.
São-no perante o abraço da mãe à criança ou o abraço do casal – a um mesmo tempo seguro e protector, intimidado e transitório –, na massa humana que reivindica a sua liberdade ou grita o seu sofrimento, no homem que trabalha semeando ou desfazendo a sua vida, mostrando-nos o chapéu que lhe esconde o rosto ( ver imagem).
A Arte é a descoisificação das coisas: «Os materiais em si são inertes. Mas ganham vida ao mais pequeno movimento», diz Adão Cruz, especificando: «a tela, os pincéis, as tintas são coisas que vão perdendo a sua natureza de coisas, à medida que as coisas vão sendo trabalhadas se vão transformando em imagens e em vivências».
Diz o pintor que a Arte é uma «criação mental gerada a partir das coisas da Natureza, transformadas pelo mundo interior do artista e plasticamente traduzidas em beleza por mãos ensinadas quer geneticamente quer de forma adquirida, só ganha vida se correr pelas suas veias o sangue da poesia. Por isso eu digo que a poesia é a alma de qualquer obra de Arte.»
Por isso, «a Arte é uma relação de vida»: ela é sempre uma «prática de meditação, uma tomada de consciência, a livre expansão de nós mesmos, inteligência viva, diálogo e libertação das forças vitais dentro de uma disciplina ética. Dito de outra maneira, a Arte é sempre impacto, desconcerto de espírito e agente de transcendência das formas físicas e de mudança das formas de ver e pensar.».
Hora a hora rente ao tempo, Adão Cruz; Editorial Campo das Letras, Porto 2007
página de Adão Cruz, AQUI
© Teresa Sá Couto
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