Mulher Ao Mar é um título de que se tem falado muito, e justamente falado bem. É o livro de estreia de Margarida Vale de Gato, ela que nos tem brindado com traduções de excelência – é dela a tradução de Edgar Allan Poe no Obra Poética Completa, livro de beleza magistral editado no ano passado pelas edições Tinta da China.
Mulher Ao Mar reúne poemas narrativos lúcidos, limpos de artifícios, intimistas, dialogantes, interventivos, irónicos, de escrita lesta, rítmica, rigorosa, depurada e plástica.
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A abrir, uma Glosa, à maneira da poesia do Cancioneiro, a evidenciar as temáticas e os caminhos do olhar poético, assumidamente feminino, que encontramos ao longo dos restantes poemas; Mais enxergo três meninas/debaixo de um laranjal, /uma na roca a fiar, /outra sentada a coser, /a mais fermosa de todas /está no meio a chorar, lê-se no mote da «Glosa da Nau Catrineta», cujas glosas explanam «três irmãs mouras» a fiar, costurar e carpir a alma e os dias, enxergadas por um olhar feminino que lhes desvela a condição.
Mulher no mar da melhor escrita, para descobrir em 44 poemas. Transcrevo, na íntegra, o poema Intercidades:
Mulher no mar da melhor escrita, para descobrir em 44 poemas. Transcrevo, na íntegra, o poema Intercidades:
galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspirda terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
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preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
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preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
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preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
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meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre velas acesas
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barcos.
Margarida Vale de Gato in Mulher Ao Mar, p.13, Mariposa Azual, 2010
3 comentários:
Aqueles versos das três meninas não são do Afonso Lopes Vieira?...
é da Nau Catrineta, do Romanceiro de Almeida Garrett.
Devia (e vou) acrescentar essa indicação, tens razão :)).
Aliás, este texto de abertura chama-se precisamente "Glosa da Nau Catrineta".
Abraço, Paulo
T.
No livro «Onde a terra se acaba e o mar começa», do Afonso Lopes Vieira, também encontramos um poema «semelhante». Talvez seja isso, um clássico recorrente...
:)
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