Envolvo de pele as pedras e as sombras brilham (1)
Jorge Velhote
Ponho os frutos negros na boca e a sua doçura é de
outro mundo
como o meu pensamento arrasado pela luz. (2)
Antonio Gamoneda
Luz e trevas, leveza e densidade,
despojamento e complexidade, desvelamento e ocultação, união entre realidade e
espírito são os elementos essenciais da
correnteza de Âmago, o mais recente livro de poemas e fotografias de Jorge
Velhote. Discreto, longe das luzes e fanfarras mediáticas, Jorge Velhote tem, no
tempo e no modo, dado à estampa alguns títulos sem preocupações de agenda, mas
sempre fiel à beleza e à exploração dos enigmas da linguagem poética. A
chancela é da zelosa, e também discreta, Edições Sem Nome dirigida pelo
incansável Luiz Pires dos Reys.
“Ofício
e peregrinação”: assim se assume este Âmago na epígrafe assinada por
Jorge Velhote, tendo o olhar como ofício e uma poesia que decanta a luz para
atingir a medula, o centro perdido. Logo a abrir, as trevas oferecem ao poema a sua resistência e a sua
impulsão e de imediato divisamos o programa poético do autor, irradiante neste
título, outrossim em títulos anteriores: surgem-nos as trevas de um “olhar
cego”, contrariadas por uma “luz virulenta” que faz acordar “o animal do poema”
a fim de cumprir “funções ásperas” : indagar a voz da solidão, da dor, da morte. Impelido pela busca, o “olhar dobra-se como um
seixo”, curva-se no jogo que a luz lhe dá a jogar: procurar o “segredo exclusivo” da voz poética, numa trama
que vai urdindo com fios de diferentes espessuras, num percurso labiríntico,
aracnídeo, como anunciado na fotografia que abre o conjunto de poemas seguida
de outra imagem com, interpretemos, a dissipação de uma “inevitável neblina”. A partir daqui, com “vagar luminoso que arde
inabalável e engenhoso”, o olhar ocupa-se
na sua missão de procurar a luz nas trevas, de levedar a imaginação:
Há uma luz branca que chega
Como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.
Canto das profundezas e de triunfo da dor,
esta poética não transmite, porém,
angústia ao leitor, mas uma inquietação agasalhadora, uma sensação de
consolo, de abrigo. Para tal concorrem a mestria do autor no declinar com
naturalidade a fragilidade, a efemeridade, a dor e a morte envolvendo tudo com
serena melancolia, pois são “simples e eternos /os instrumentos da agonia” ou
dito, ainda, assim: “Diante da chuva o medo cresce / como bosque inacessível. / Mais
tarde, destinaste à morte / Um relâmpago de tristeza. / E a serenidade das
sementes.”; também a musicalidade que atravessa, dominadora, todas as
composições, imprimindo no poema um jogo tensional e dramático enformado por metáforas
de beleza arrebatadora:
É a luz, dizias, essa fístula.
E no limite os vestígios da penumbra ou da tristeza
com que humedeces a música.
Lambes a vertigem como num espelho
os líquenes devoram a espessura da terra.
Um pastor vem e deixa indecifrável o seu rasto
como um rosto o seu destino.
E nos seus claustros a água apenas varre
os lilases do medo.
Por tudo isto
entendemos o que o autor nos quer dizer quando diz que “A beleza não é um lugar
maldito” (3). Se a
noite impulsiona a procura da luz, a luz
dispara os enigmas, torna leve a densidade, desnuda a complexidade e revela
outros enigmas num círculo infinito onde enreda o leitor, ou dito assim:
Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e
uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.
O poeta
Amadeu Baptista, na apresentação pública de Âmago, disse que a “metáfora na
poesia de Jorge Velhote integra-se no que os gregos dizem que ela é, um
transporte e um vínculo para que outros vínculos se expandam”. Com efeito, as metáforas
abrem sulcos, expandem-se em
portas, galerias, labirintos, qualquer lugar é outro lugar, “um enigma inaugura
um outro modo de ver”, o olhar declina-se no fogo, “declina infindo”, como uma “bactéria”. Muitas vezes o
palco é um abismo, o alvo da luz é o vazio, outras um círculo, não vicioso, mas
espiralado e, por conseguinte, infinito: “são paisagens incrementes e austeras
que figuram / o inextinguível, a quase escuridão ou alegoria /luminescente dos
labirintos e dos portais da voz”.
Amadeu Baptista referiu, ainda, que esta “poemática é
filha de um processo criador que vem do mundo antiquíssimo, de uma pangeia inerente ao mundo e à linguagem,
ao trabalho ancestral dos dias e das noites, em que tudo está à deriva para se
recolocar na vastidão da nossa ignorância e da nossa ousadia.”. Jorge Velhote procura o “nome despido”; atravessada pela meditação também sobre o
fazer poético, nesta poesia os sentimentos são categorias do pensamento, as
coisas desmaterializam-se, a realidade é metamorfoseada. Mais do que procurar o
sentido da palavra, procura interpelá-la, explorar-lhe a ambiguidade, dando ao
leitor espaço amplo de interpretação, desoculta a palavra original, liberta-a
dos grilhões do sentido, mas cujo poder de nomeação só é possível no “silêncio
de um nome” que não pertence a ninguém, na peugada do expresso por Fernando
Guimarães: “A poesia é o silêncio de um nome. Os caminhos a que ela nos conduz
são tão próximos como a intimidade de qualquer linguagem. Mas não é em nós que
essa linguagem existe. Há nela uma
realidade própria que vem recusar a presença de quem é capaz de a pronunciar,
porque só deste modo estaria ao nosso alcance revelá-la aos outros. É essa
realidade, que há-de ficar por fim repartida, se poderá chamar silêncio, para
que a ninguém pertença.”(4). Essa
brecha secreta, essa luz divida é o fundamento da poesia que Jorge Velhote
cumpre sabiamente.
A poesia é um
ofício carnal; “Procuramos o amor e a morte em cada rio / para que seja igual
ao mar da nossa vida”, escreveu, ainda,
Fernando Guimarães. Também na poesia de Jorge Velhote, o corpo define a
tempestade e a veia mais secreta, o pensamento, inventa os modos de dizer: “Há
um excesso de luz zunindo húmida”, que é “como um eco/entreabrindo a pele com
que cobrimos /os mortos de passagem”, e o poema tece-se procurando sempre o
equilíbrio entre luz e sombra, pois sabe que esse equilíbrio dá harmonia à
poesia, enunciado assim: “O peso de uma pedra que não sabes/ medir, a quantidade
de luz /que compõe o granulado /de uma sombra, a temperatura /do frio que se
estende no teu braço”.
A escrita é “Um espelho onde cuspir a alma”, escreve
o autor em Coisas Mínimas &Outras Coisas. A palavra é respiração: “Alguém acorda e
regressa à terra / subindo pelas sementes /resgatando o céu para respirar”; é
um lugar onde se redimem os medos; a página é “ um mapa ofuscante” percorrido
pelos olhos “à procura de uma fronteira ou de um caminho”; é um mapa
onde pousa a mão frágil “que percorre /no papel os seus sinais, a invenção /dos
nomes, o vento que desfaz /as dunas, o rascunho fiel / da luz e da morte”; é um rio que faz sede; é um “lugar para
morrer”, sempre que a luz encontrar a palavra secreta, e a palavra encontrar a
noite; acumulam-se palavras para “salvar
o tempo”, para “salvar a alma” contra a dor, contra o esquecimento, contra a morte.
“O sangue
embrulha a densidade da alma”, escreveu Jorge Velhote; Âmago é água em
movimento cuja amplitude da corrente atinge, em aluvião, o leitor, pelo que o
horizonte de leitura desta poesia depende do nosso “horizonte íntimo”, da
capacidade de desviarmos o olhar para dentro de nós mesmos ou, como escreveu,
ainda, o autor, “talvez um pouco de água baste”.
(1)
Jorge Velhote, Máquina
de Relâmpagos, Ed. Afrontamento, Porto, 2005, p.51,
(2) Antonio Gamoneda, Livro do Frio, tradução e nota
biográfica de José Bento, Assírio &Alvim, Lisboa, 1998, p.25
(3)
Jorge Velhote, Coisas
Mínimas&Outras Coisas -textos e fotografias, Edições Luz de Papel, 2017
(4)
Fernando Guimarães, Algumas
Palavras, Poesia Reunida 1956-2008, Edições Quasi, Lisboa, 2008, p.79
--> © Teresa Sá Couto
2 comentários:
Um análise muito bem delineada e profunda sobre a Poesia de Jorge Velhote!
Tudo escrupulosamente ponderado, sem rocócos exibicionistas, mas sentidamente escrito sobre quem entende a poesia do autor e a ama. Por vezes hermética, esta não deixa porém de se abrir ao leitor nos seus contrastes de sombra e luz, nas suas interrogações implícitas sobre os temas que preocupam o ser humano, na sua contenção propositada do que possa soar a populismo.
Uma análise muito clara e brilhante sobre a poética de Jorge Velhote!
Os meus sinceros Parabéns, Teresa Sá e Costa!
A poesia, ou mais exactamente a casa poética que se destina a encobrir o que nos merece repouso e pensamento límpido, vem desde a a época de 60/70 tomando proporções inevitáveis de esclarecimento para o fulgor da luz, e da luz que escura é matéria indomável e libertadora na casa da razão das palavras em Jorge Velhote. E talvez por tal motivo houve a necessidade de "amantizar" a palavra com a insondável consciência interrogativa do zénite.
A poesia é uma armadilha a que JV não deixa avulsa uma insistência na formação do intelecto para que a palavra na construção poética não se desnorteie.
Jorge Velhote é um escrupuloso leitor de outros seus irmãos criadores e de si mesmo. Trabalha com dedicação a minúcia dos elementos para saber sem hesitações onde se vai elevar a metáfora na sua persistência de uma linguagem profundamente esclarecida. Talvez Camões não esteja só à sua cabeceira, mas sim no seu leito quente e frio no desajuste das horas de repouso!
Há uma verdade que se vai posterizar: que a poética de JV cumpre o sentido do desvendamento sem a qual a poesia em si é um chocalhar de ilusórias intenções! Que é da calma e da maturação que no futuro iremos ter uma mesquita de poetas com irão confirmar a decência da arte de organizar o sentido dos poemas!
António Teixeira e Castro
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